Paradoxo de poder

Juiz não pode suspender efeitos de decisão do CNJ

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20 de janeiro de 2015, 15h16

No dia 19 de dezembro de 2014, uma juíza federal, no bojo dos autos 5082603-57.2014.404.7000/PR, deferiu pedido que antecipou os efeitos da tutela em decisão interlocutória para suspender os efeitos de uma decisão do Conselho Nacional de Justiça, tomada em Procedimento de Controle Administrativo em que se determinou o prosseguimento do certame público para serventias extrajudiciais de responsabilidade do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (clique aqui para ler a decisão). Embora os fundamentos sejam sustentáveis, fiquei intrigado com o seguinte: como uma decisão de primeiro grau pode anular uma decisão de um órgão de cúpula como o CNJ?

Ora, a resposta é simples: em tese, a magistrada não poderia anular, porquanto estaria vinculada à própria decisão do CNJ, já que todos os órgãos do poder executivo e judiciário, dentre eles os magistrados federais de primeiro grau, devem obediência à decisão do dito Conselho (CRFB, artigo 103-B, caput, incisos II e III).

Eis aqui o busílis. E se um candidato, sentindo-se prejudicado com a liminar da magistrada, propor reclamação administrativa, perante o CNJ, pugnando pela efetivação de suas decisões? Se der cumprimento à sua decisão e cassar a liminar da juíza, caberá Mandado de Segurança para o Supremo Tribunal, em face do direito líquido e certo de acesso à uma prestação jurisdicional. Mas, por outro lado, se o CNJ não cassar a decisão da juíza, o candidato que propôs a reclamação administrativa poderá impetrar o mandamus ao STF também, mas com fundamento no direito líquido e certo de previsto no artigo 103-B da Carta Republicana, pois não?

Em suma: de um modo ou de outro, tudo acaba por desaguar no excelso pretório… Mas, por que a competência para todas as ações (além das “ações constitucionais”) contra o CNJ não são da competência do Supremo? Simples: Esta contradição sistêmica teve origem em um entendimento do próprio STF, que já denunciei na ConJur não faz muito tempo (clique aqui para ler). Diante da aludida decisão, decidi republicar os fundamentos utilizados naquela coluna para melhor explicar como tudo começou…

Explicando o problema concreto
A Constituição do Brasil, em seu artigo 102, inciso I, alínea ‘r’, estabelece que “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processo e julgar originariamente as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público”.

Pois bem. Ao ser ajuizada a Ação Ordinária 1.706-DF na Suprema Corte, a União postula a declaração da nulidade da decisão do CNJ em um determinado Processo de Controle Administrativo (PCA), na parte em que considerou legais os pagamentos efetivados pelo Superior Tribunal de Justiça e pela Justiça Federal a seus servidores em desacordo com o Acórdão 582/2003 do TCU, a fim de que os processos individuais de cobrança retomem os seus respectivos cursos. No entanto, a discussão voltou-se para uma questão de ordem processual precedente à análise do mérito da demanda. E então a coisa complica.

Conforme a decisão do STF em Agravo Regimental, a sua competência originária no que tange às causas de impugnação a deliberações emanadas do CNJ alcança tão somente “as hipóteses de impetração, contra referido órgão do Poder Judiciário (CNJ), de Mandado de Segurança, de Habeas Data, de Habeas Corpus (quando for o caso) ou de Mandado de Injunção, pois, em tal situação, o CNJ qualificar-se-á como órgão coator impregnado de legitimação passiva ‘ad causam’ para figurar na relação processual instaurada com a impetração originária, perante a Suprema Corte, daqueles ‘writs’ constitucionais”.

Para tais casos, entendeu o Supremo que o CNJ, “por ser órgão não personificado, define-se como simples ‘parte formal’, revestido de mera ‘personalidade judiciária’, achando-se investido, por efeito de tal condição, da capacidade de ser parte, circunstância essa que plenamente legitima a sua participação em mencionadas causas mandamentais”.

Ou seja, tratando-se de ações originárias que tem como sujeito passivo o CNJ (como no caso da Ação Ordinária sob comento, mas existem outras ações)[1], entende o Supremo que não se configura a sua competência originária. Para ele, nas hipóteses não compreendidas no artigo 102, inciso I, alíneas “d” e “q”, da Constituição, a legitimação passiva ‘ad causam’ referir-se-á, exclusivamente, à União Federal, pelo fato de as deliberações do Conselho Nacional de Justiça serem juridicamente imputáveis à própria União Federal, que é o ente de direito público em cuja estrutura institucional se acha integrado o CNJ.

Refira-se que esse entendimento que não reconhece a competência originária do STF para processar e julgar ações ajuizadas contra o CNJ — exceto os casos do artigo 102, alíneas “d” e “q” — e, portanto, torna competente para processar e julgar as demais causas a justiça federal comum, tem sido reafirmado em outros julgamentos do próprio Supremo.

Pergunto: Seria a União contra a União? Por certo, há sobejadas razões de ordem pragmática que conduzam a esse entendimento do STF. Mas não é disso que se trata. Na verdade, está em jogo algo maior, que é a força normativa da Constituição. 

Crítica ao entendimento do STF
Do que se viu acima, o caso é simples. O STF declinou de sua competência para julgar ações do CNJ, dizendo, mutatis, mutandis, que onde está escrito “ações” contra o CNJ (artigo 102, I, r da CR/88), isto não quer dizer “ações”, mas apenas quer dizer que o Supremo deve julgar MS, MI e HC. Exatamente assim.

Mas, como isso é possível, hermeneuticamente falando? Eis a questão. A começar: o que fazer com as alíneas "d", "i" e "q" do mesmo artigo, que tem redação explícita sobre quais ações cabem? Ou seja — e aqui usarei coisas da “velha hermenêutica — se o constituinte quisesse restringir as ações contra o CNJ, o teria feito como nas demais alíneas. Trata-se, aqui, daquilo sobre o qual venho escrevendo de há muito: os limites semânticos da Constituição não estão sendo respeitados. Por vezes, é preciso ter claro e se render ao fato de que o texto aponta tão nitidamente para algo que se torna impossível ignorar esses indícios de sentido. Como diz Gadamer, se você quer dizer algo sobre um texto, deixe, primeiro, que o texto lhe diga algo! E aqui parece que o “dedo do texto” aponta para algo bem explícito… Não se trata, obviamente, de defender literalidades como se estivéssemos no século XIX. E nem vou me repetir nesse sentido.[2] Quero só dizer que a redação do artigo 102, inciso I, alínea r, da Lei Maior, não é ambígua e tampouco vaga.

De que modo um hermeneuta pode concluir que “onde está escrito ‘ações contra o CNJ’ não se incluem ações ordinárias, apenas as mandamentais”? Trata-se de um caso de jurisdição contra a Constituição? Com toda a vênia, essa interpretação do STF compromete a ossatura do texto constitucional, a lógica do sistema constitucional, além de quebrar a ordem e a hierarquia constitucionalmente prevista no artigo 103-B.

Por fim, é incorreto também o argumento do STF que o levou à conclusão para declinar a competência, isto é, como o CNJ não é pessoa jurídica de direito público, a União Federal responde por ele e a União responde no primeiro grau, não no STF.

Mas, ainda não estou satisfeito. Veja-se o surrealismo que isso acima relatado gera: ao invés de entrar com Mandado de Segurança contra o CNJ, o interessado entra com Ação Ordinária, que estaria na competência da Justiça Federal de primeiro grau, segundo esse entendimento do STF. Daí o paradoxo (e paradoxos são coisas das quais não se pode sair): o CNJ que é órgão de cúpula, julga até ministros do STJ e, a vingar a tese do STF, tem seus atos sujeitos à fiscalização de juiz de primeiro grau! E aí vem a consequência: o fiscalizador é julgado pelo fiscalizado.

Imaginemos a decisão do Corregedor Geral de Justiça — que é ministro do STJ — que foi referendada pelo Plenário do CNJ e que determina o afastamento de um presidente de Tribunal de Justiça por improbidade ou ainda o caso de um Tribunal da Federação — no caso, o do Paraná — em que o CNJ proibiu o referido TJ de repassar o dinheiro dos fundos depositados para o Governo do Estado. A jurisdição é do primeiro grau?

Por que o STF não fala da Constituição?
Ao que se pode alcançar em termos de pesquisa sobre a tese (discussão) em pauta, tem-se que os ministros Marco Aurélio (veja-se a ainda não julgada AO 1.814), Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa e Luiz Fux (os três primeiros não estavam presentes na decisão do AR ora sob comento) posicionam-se pela não declinação de competência. São, portanto, minoria. No caso da ministra Cármen Lúcia, ela votou pela incompetência do STF, mas posteriormente, mudou de posição dizendo que era competente na Recl 15.551-GO (proferida em 10 de fevereiro de 2014) e depois alterou novamente sua posição. A posição mais contundente pela competência do STF é a do ministro Gilmar Mendes, que pode ser lida em seu voto na decisão do RE 744.590, julgado em 21 de junho de 2013.

De todo modo, penso que a nossa Suprema Corte poderia se fixar mais na discussão sobre os limites da dicção do texto constitucional. Claro que o texto não é tudo. Mas também não pode ser um nada.

Os limites da interpretação e a democracia
O caso acima relatado pode até não ser relevante na sua leitura individual e solitária. Mas seu aspecto simbólico é transcendente. Real por excelência, simbólico na sua “essência”, diria Castoriadis.

E, por favor, entendam-me: isso não é implicância minha. É apenas compromisso com a democracia. Isso não quer dizer que outros, que pensam diferente de mim, não estejam comprometidos com a democracia (digo isto porque aqui na ConJur sempre aparece alguém para comentar: “quer dizer, então, que só você é democrata?”). Apenas explicito o lugar de minha fala. E a hermenêutica não quer ser a Rússia tomando o território da Crimeia ou da Ucrânia. Hermenêutica, ao contrário de qualquer perspectiva imperialista, de invasão de sentidos, é conservadora. Ou seja, quer, sim, conservar a “ossatura constitucional”. Nela está implícito muito mais que o mero texto, ou seja, nela está a construção social da cidadania e do Estado Democrático. Que não pode depender de alguns. Mesmo que seja um Supremo Tribunal.  Como tenho referido em livros e artigos, por vezes é necessário lembrarmos do Fator Julia Roberts, em que a personagem do filme O Dossiê Pelicano[3] diz para o seu professor: a Suprema Corte errou nesse caso. E isso é tarefa da doutrina. Não é um “poder fazer”. É um “dever-fazer”.

Numa palavra
A interpretação que o STF deu ao dispositivo em tela continua equivocada. O Supremo Tribunal não dispõe do texto constitucional. A prevalecer esse entendimento do STF — que, efetivamente, pode ser enquadrado naquilo que se chama de “jurisprudência defensiva”, de nítido caráter consequencialista — permite-se (e permitir-se-á) aos afetados que escolham a jurisdição que lhes convém apenas com a troca do nomen iuris da ação. O caso relatado no inicio da coluna é um bom (ou mau) exemplo disso. Escolha: Mandado de Segurança para competência do STF ou Ação Ordinária para Justiça Federal de primeiro grau.

Uma questão final: Resta saber o que fazer com o artigo 106 do Regimento Interno do CNJ. Tem força de lei complementar, é válido e vigente. Foi questionado pela Associação dos Magistrados Brasileiros na ADI 4.412/DF, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, mas não foi suspendido cautelarmente. Dispõe o artigo 106 do RICNJ: “O CNJ determinará à autoridade recalcitrante, sob as cominações do disposto no artigo anterior, o imediato cumprimento de decisão ou ato seu, quando impugnado perante outro juízo que não o Supremo Tribunal Federal”. Trocando em miúdos, a regra significa que todos os juízes e tribunais, com exceção do Supremo Tribunal Federal, estão submetidos à autoridade das decisões do Conselho Nacional de Justiça. 

E o que fazer com o  preâmbulo do RICNJ? Ele prece não deixar dúvida quanto à sua força de lei, visto que disciplina diretamente dispositivo de caráter constitucional: o Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça, na forma do artigo 5º, parágrafo 2º da Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004, tem natureza e força de lei complementar.

E mais não é necessário dizer.

 


[1] Por todas, ver ACO 1.733/DF, Rel. Min. AYRES BRITTO – ACO 1.734/DF, Rel. Min. AYRES BRITTO – Pet 4.309-TA/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO – Pet 4.404/DF, Rel. Min. EROS GRAU – Pet 4.492/DF, Rel. Min. EROS GRAU – Pet 4.571-MC/MS, Rel. Min. CELSO DE MELLO.

[2] E nem se trata de falar do mérito da tal Ação Ordinária. Como Victor Hugo em Os últimos Dias de um Condenado, a questão é de princípio.

[3] Artigos não têm espaço para explicitar o caso. Recomendo a leitura do original (478 U.S. 186 (1986), do caso Bowers v Hardwick. Dezessete anos depois, a Suprema Corte mudou de ideia, agora por 6×3. Desta vez, disse ser inconstitucional. No livro Crime e Constituição (Forense, 2003), Luciano Feldens e eu explicamos o caso amiúde.

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