Segunda Leitura

Além de inclusão, portadores de deficiência têm de ter boas condições de trabalho

Autor

  • Giselle de Amaro e França

    é mestre e doutoranda em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela Universidade de São Paulo juíza federal titular da 6ª Vara Previdenciária/SP e ocupa o cargo de Diretora do Foro da Seção Judiciária de São Paulo.

18 de janeiro de 2015, 7h00

A legislação brasileira contempla expressamente a inclusão de pessoas portadoras de necessidades especiais no mercado de trabalho, tanto na esfera pública como na privada.

As empresas privadas com mais de cem empregados devem preencher uma parcela de seus cargos com trabalhadores assim qualificados (artigo 93 da Lei 8.213/1991); os órgãos da Administração Pública, por sua vez, são obrigados a reservar de cinco a vinte por cento das vagas oferecidas nos concursos públicos às pessoas com deficiência (artigo 37, VIII da Constituição Federal; artigo 5º, parágrafo 2º da Lei 8.112/1990; artigo 37, parágrafo 1º do Decreto 3.298/1999).

Sem prejuízo das profundas discussões filosóficas e sociológicas suscitadas pela lei de cotas, na perspectiva jurídica é incontroverso o objetivo perseguido: a redução das desigualdades entre os trabalhadores, no mínimo em relação aos critérios de admissão.

Tratando especificamente da esfera pública, para que o princípio da isonomia seja assegurado em sua plenitude, não é suficiente que a administração apenas cumpra os requisitos formais para o ingresso de pessoas portadoras de necessidades especiais (PNE) em seus quadros; é essencial, ainda, oferecer condições de trabalho adequadas.

Tais condições englobam não só os aspectos estruturais dos prédios (usualmente denominados de “acessibilidade”), mas também um ambiente de trabalho propício às diferenças.

Nos últimos anos, a administração pública tem realizado reformas em seus espaços, buscando adaptá-los e torná-los acessíveis a todos que os utilizam, eliminando ou minimizando — tanto quanto possível — eventuais barreiras que dificultam ou impedem o acesso. Os prédios estão sendo equipados com rampas, guichês rebaixados, banheiros especiais adaptados com puxadores, corrimão, cadeiras de rodas, entre outras medidas.

Trata-se de uma nova mentalidade que está sendo incorporada, aos poucos, pelos órgãos públicos.

O Ministério Público tem exercido um importante papel fiscalizatório, buscando o cumprimento da legislação ora na própria esfera administrativa, através dos expedientes adequados, ora na via judicial.

A realização de obras e reformas nos prédios públicos é disciplinada por regras e procedimentos específicos, a serem necessariamente observados. Na maioria das vezes, o cumprimento de todas as etapas demanda um tempo razoável, o que nem sempre é bem compreendido por quem está do lado de fora da administração.

Em alguns casos, é aberto o processo de licitação, mas não surgem interessados; em outros, há excesso de participantes e o procedimento se prolonga indefinidamente em razão dos recursos (administrativos e judiciais) interpostos; há também os casos em que o imóvel é locado e as reformas, por disposição contratual, devem ser feitas pelo proprietário, que muitas vezes não concorda com as exigências da Administração; há situações outras em que simplesmente não há orçamento para a execução.

Ou seja, construir e reformar prédios públicos ou ocupados pelo Poder Público é tarefa que demanda tempo, recursos orçamentários e estrita observância da legislação.  A questão do espaço é um dos aspectos relativos à inclusão, mas há outro tão importante quanto: o ambiente de trabalho.

Os servidores públicos devem estar capacitados para trabalhar com os portadores de necessidades especiais. Neste sentido, há comando legal determinando, por exemplo, que os órgãos públicos tenham um número mínimo de servidores capacitados na Linguagem Brasileira de Sinais (Libras) para atender aos deficientes auditivos, eliminando as barreiras de comunicação.

Mas existem outros obstáculos, de natureza psicológica, a serem enfrentados. Em tese todos aceitam a inclusão, mas na prática a convivência exige esforços. Recentemente foi publicado pela Companhia das Letras um livro que trata da questão das diferenças no âmbito familiar: Longe da árvore – pais, filhos e a busca da identidade, de Andrew Solomon, que pode nos auxiliar a compreender as dificuldades de aceitação, próprias da natureza humana.

O autor parte da premissa de que em regra os filhos não caem longe da árvore que os gerou, ou seja, são bastante semelhantes aos seus pais, herdando suas características físicas e comportamentais. No entanto, há situações em que os filhos caem longe da árvore, apresentando diferenças significativas de seus genitores.

Tradicionalmente, nossa cultura não prepara os pais para lidar com filhos diferentes e o livro narra diversas histórias descrevendo como as famílias enfrentaram e superaram os desafios encontrados ao longo do caminho.

São destacadas duas formas de identidade: as identidades verticais, que são aquelas impostas ou transmitidas de geração em geração, através de normas culturais compartilhadas e das expectativas dos pais (para o Autor, “contamos com a garantia de ver no rosto de nossos filhos que não vamos morrer[1]); e as identidades horizontais, que são as que nós criamos ou às quais adotamos em razão de nossas escolhas pessoais.

Embora a cultura moderna nos estimule a viver com liberdade para construir nossa identidade (horizontal), a realizar nossos sonhos e a buscar nossos próprios caminhos, há um desejo dos pais (consciente ou não) de que os seus filhos reproduzam, com sucesso, suas histórias, ou melhor, que os filhos revivam as histórias dos pais com o êxito que eles não tiveram.

O livro mostra, assim, o paradoxo enfrentado por esses pais: mesmo desejando que os filhos deem continuidade à sua história (preservando a identidade vertical), devem aprender a amá-los como entes separados deles, respeitando sua trajetória (ou seja, sua trajetória horizontal).

Foram colhidos inúmeros depoimentos de pais e mães, demonstrando as inúmeras batalhas, internas e externas, que eles tiveram que travar para cuidar de seus filhos. E o quanto a aceitação das diferenças foi compensador.

Estas reflexões podem ser de alguma valia a todos que convivem, em seu ambiente de trabalho, com pessoas portadoras de necessidades especiais.

Inúmeras experiências enriquecedoras podem ser colhidas neste encontro; o pressuposto é que mentes e corações estejam abertos para lidar com as diferenças.

O papel da administração, mais do que cumprir as cotas legalmente estabelecidas, é realizar as adequações necessárias no espaço físico e estimular o bom convívio entre seus servidores. Todos tendem a ganhar.

*O colunista Vladimir Passos de Freitas está em férias e volta a escrever em fevereiro.


[1] In Solomon, Andrew. Longe da árvore – pais, filhos e a busca da identidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª reimpressão, 2013, p. II.

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  • Brave

    é mestre e doutoranda em Direito do Trabalho e Seguridade Social, pela Universidade de São Paulo, juíza federal titular da 6ª Vara Previdenciária/SP e ocupa o cargo de Diretora do Foro da Seção Judiciária de São Paulo.

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