Je suis Locke

Charges do Charlie Hebdo: liberdade de expressão x tolerância religiosa

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16 de janeiro de 2015, 16h15

Lamento profundamente o assassinato dos jornalistas da Charlie Hebdo. Repudio o terrorismo e a violência. Mas não sou Charlie. Je suis Locke, que em fins do século XVII escreveu sua “Carta sobre a tolerância”, um dos textos fundantes da modernidade sobre a laicidade e a convivência entre as religiões. Não se trata de tolerância com os intolerantes. Nenhuma trégua ao terrorismo. Nenhum recuo na laicidade conquistada a duras penas nos países ocidentais. A imposição de preceitos religiosos na vida civil já era rejeitada por Locke. Mas a laicidade existe justamente para que as religiões possam conviver em paz.

Todo direito tem limites, mesmo os direitos fundamentais. Nenhum direito é absoluto, eis a lição comezinha dos manuais de direito constitucional. A regra geral da liberdade pode ser atribuída ao utilitarista John Stuart Mill, com seu princípio do dano (harm principle): somos livres para fazer o que quisermos, desde que não prejudiquemos o outro. As fronteiras entre os direitos e o que pode ou não ser considerado prejuízo para os outros variam, evoluem. Alguns consideram que os direitos fundamentais têm limites intrínsecos — ninguém, em nome da liberdade artística, tem direito de armar seu cavalete e pintar atrapalhando o trânsito. O limite integraria o conceito do próprio direito em questão. Outros entendem que direitos fundamentais são a priori ilimitados e os limites só aparecem se e na medida do necessário, segundo a lei do sopesamento entre os princípios e direitos em colisão. Controvérsias teóricas à parte, a ideia de limites aos direitos é intuitiva e aceita amplamente no mundo jurídico.

A liberdade de expressão tem lugar de destaque entre os direitos fundamentais. Em termos de importância talvez só sofra concorrência da liberdade de locomoção. E se desdobra numa miríade de outros direitos: liberdade política, religiosa, de imprensa, liberdade artística e científica, etc. É extremamente difícil lhe impor limites. Mesmo o politicamente correto em voga não pode servir de censura. Lolita, de Nabokov, considerada uma obra-prima da literatura universal, trata de um caso de pedofilia, narrado com vigor, erotismo e profundidade psicológica. Querer suprimir trechos supostamente racistas de Mark Twain e Monteiro Lobato é ridículo.

Mas os limites existem. Alguns mais banais, como a proibição de caluniar, difamar e injuriar. Outros podem surpreender. Em alguns países da Europa é crime praticar o “negacionismo”: não se pode negar que o Holocausto existiu. Jean-Marie Le Pen, ex-líder do Front National-FN, que propõe agora o fechamento das fronteiras da França, já foi condenado criminalmente por declarações desse tipo. O artigo 20 da nossa Lei 7.716/89 assevera ser crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”

E em 2003 o Supremo Tribunal Federal manteve a condenação de Ellwanger por crime de racismo, em razão de publicações de conteúdo nazista.

A pergunta que me faço, e que de alguma forma foi ventilada nos últimos dias, ao lado da indignação com os atos terroristas, é se as charges do Charlie Hebdo não extrapolam esses limites. Se não do ponto de vista jurídico, quiçá de uma perspectiva ética ou política. Não sou religioso, mas as religiões fornecem a seus fiéis suas crenças e valores mais caros. Será que precisamos desse humor? Um ato sexual entre Deus, Jesus e o Espírito Santo, a nudez de Maomé com alusão à estrela de Davi, etc? Parece divertido para alguns, podemos admirar a irreverência e coragem dos cartunistas, mas por que se veria aí uma liberdade ilimitada, incapaz de respeitar o sentimento religioso?

Devemos tentar conviver melhor com o islamismo moderado, ele existe e é majoritário. Levá-lo a criticar o extremismo “de dentro”. Com os que são capazes da tolerância, ela é o melhor, talvez o único caminho para o século XXI. E tolerância exige aceitação do outro, consideração por seus valores, respeito e comedimento: até quanto aos limites do nosso riso. 

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