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Uma nova perspectiva para a caixa preta da Fundação Casa

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12 de janeiro de 2015, 7h00

Sabidamente o sistema de internação e semiliberdade de adolescentes e jovens – que o Ministério Público deve fiscalizar –, administrado pela Fundação Casa do Estado de São Paulo, possui inúmeros e graves defeitos (muitos destes são históricos, infortunadamente). A novidade, entretanto, é uma das formas de abordar a problemática, e consequentemente tentar solucionar ou minorar as falhas – o panorama orçamentário.

Dentre outras várias mazelas do processo socioeducativo gerido pela Fundação Casa, os serviços por ela prestados há muito estão conspurcados por unidades sob forte presença e influência de organizações criminosas, insalubridade das instalações e das condições de trabalho dos funcionários, carência de vestuário, superlotação, rebeliões e tumultos, torturas, índices de reincidência de 54% (consoante CNJ), inexistência de vagas em locais próximos a residência familiar, e ausência de formação e supervisão adequadas que viabilizem capacitação e aperfeiçoamento dos servidores da entidade.

A situação, caracterizadora de inaceitável violação dos direitos humanos, configurava descumprimento do artigo 94, incisos I, IV, VII e VIII, e do artigo 124, incisos V, IX e X, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente, além do artigo 49, inciso III da Lei 12.594/12 (Sinase), e exigia providências.

Consequentemente, há anos muito vêm sendo feito para tentar combater as mazelas do sistema internação/semiliberdade. E as iniciativas são diversas. Somente no Ministério Público existem dezenas de investigações para esclarecer os crescentes e frequentes episódios de torturas e maus tratos, e foram propostas incontáveis ações civis públicas para responsabilizar os envolvidos. Inauguraram-se inquéritos civis e ações judicias para combater a superlotação que atinge mais de 91% do sistema de internação. Foram designadas centenas de reuniões na busca de soluções para a consabida insalubridade das condições de moradia de adolescentes e jovens. Determinou-se a investigação policial de milhares de crimes noticiados.

Inobstante, o serviço socioeducativo da Fundação Casa continuava apresentando inúmeros e inadmissíveis vícios.

A partir de 2013, então, o Ministério Público passou a realizar visitas bimestrais a todas as unidades da Fundação Casa – oportunidades em que foram colhidas diversas informações e identificadas ainda mais irregularidades. Foram flagrados adolescentes dormindo no chão, menores com vestígios aparentes de agressão ou tortura, internos há mais de 48 horas com as mesmas roupas (dia e noite – inclusive após a prática de atividades esportivas ou do banho), odor de maconha, salas de aula abarrotadas, banheiros sem condições de uso, unidades sem áreas de lazer, pichações alusivas a organizações criminosas, além de outros sérios problemas.

A conclusão foi intuitiva: as ilegalidades que por tanto tempo se enfrentou não apenas persistiam como, em alguns aspectos, apresentaram agravamento. Deste modo, embora fosse imperiosa a adoção de providências, as medidas até então tomadas, contanto valorosas e elogiáveis, não conseguiram alcançar soluções satisfatórias para os problemas ou atingir todos os efeitos necessários.

Por estes e outros motivos, em setembro de 2014, o Ministério Público do Estado de São Paulo iniciou uma ampla investigação nas contas da Fundação Casa, cujo orçamento-base, naquele ano, abrangeu R$ 1.211.310.964,00 (um bilhão duzentos e onze milhões trezentos e dez mil novecentos e sessenta e quatro reais). Quatorze Promotores de Justiça, com apoio da Procuradoria-Geral, formaram um grupo de trabalho que pretende acessar e analisar as contas da entidade dos últimos quatro anos.

Não há notícia de equivalente tentativa precedente.

Com isso, almeja-se avaliar e fiscalizar a qualidade e quantidade dos gastos públicos da Fundação Casa, inclusive naquilo atinente a eventual repasse ou contratação de organizações sociais ou não governamentais, terceirização de serviços, bem como dos procedimentos licitatórios e contratos firmados. Trata-se, evidentemente, de uma apreciação diversa daquela realizada pelo Tribunal de Contas ou Assembleia Legislativa, pois feita à luz do princípio da eficiência e dos postulados da proteção integral e da prioridade absoluta.

E desde o princípio da investigação constatou-se dado surpreendente, obtido a partir de singela divisão aritmética – o Estado de São Paulo gasta por mês, em média, R$ 10.094,25 com cada adolescente internado ou em semiliberdade.

Não se questiona o volume dos recursos empregados na fundamental reeducação de jovens em conflito com a lei, e que gozam de prioridade absoluta. Mas explicitamente o valor despendido, muito superior àquele que a média das famílias brasileiras dispõe para cuidar de cada filho, não parece compatível com muitas das irregularidades já apuradas – como a carência de material de higiene íntima e de vestuário, por exemplo.

Obviamente, ocasional má gestão dos recursos, desvio, improbidade, ineficiência, ou má qualidade dos gastos, compromete integralmente o processo de socioeducação dos adolescentes e jovens – o que poderia explicar muitas das deficiências apontadas.

A finalidade maior, sempre, é buscar, conjuntamente com outras investigações e a partir de uma abordagem inédita, soluções para antigos, graves e persistentes problemas. Nos próximos meses, possivelmente, surgirão os primeiros resultados destas análises.

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