MPs 664 e 665

Medida Provisória da previdência agride direito à estabilidade

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11 de janeiro de 2015, 16h08

No primeiro dia de 2015, em seu discurso de posse para o segundo mandato, a Presidenta (como gosta de ser chamada) da República traçou um perfil do como deve ser a continuidade de seu governo. Chamou atenção, conforme amplamente noticiado pela mídia, trecho no qual, diante do parlamento, afirmou ser necessário realizar uma reforma nas contas do Estado, garantindo, todavia, que não irá suprimir direitos sociais conquistados.

Soou estranho aos ouvidos tal afirmação. É que, há apenas dois dias, no apagar das luzes do ano de 2014 (quando os holofotes costumam se ausentar, ao menos parcialmente, do cenário político) houvera sido publicadas as Medidas Provisórias 664 e 665, de autoria daquela que discursava, as quais modificaram regras para a percepção de benefícios previdenciários (especialmente a pensão por morte) e trabalhistas (como o seguro-desemprego).

Especificamente quanto a MP 664, verifica-se que, por meio dela, acabou-se por realizar uma minirreforma previdenciária. Além dos ares de estranheza que permeiam a medida, essa é inconstitucional, considerando que qualquer medida provisória deve observar dois requisitos: relevância e urgência (Art. 62 da Constituição Federal de 1988 – CF/88). No caso, à evidência, ausente o último.

Demais disso, é vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada entre 1º de janeiro de 1995 e 11 de setembro de 2001 (Art. 246 da CF/88), caso do artigo 201 da Carta Magna, modificado pela da EC 20 de 1998 – Reforma da Previdência.

Há que notar, ainda, que medidas as quais reduzam benefícios previdenciários, a exemplo da MP 664/2014, devem ser acompanhadas de contrapartida — no caso, minoração das contribuições (por interpretação do artigo 195, parágrafo 5º da Constituição Federal) — o que não se verificou no evento sob análise.

Ao invés da edição de uma Medida Provisória, deveria ter ocorrido uma ampla discussão no Congresso Nacional com o fito de debater eventuais mudanças por meio da edição de lei. A presidenta usurpou a competência do Poder Legislativo, alvoroçando-se com instrumento inadequado sobre matéria da qual não poderia tratar.

Além do aspecto formal, deve-se observar, ainda, que o objeto das MP´s é composto por direitos de natureza fundamental. Destarte, resta violado o Princípio da Proibição de Retrocesso Social (mencionado, pelo Supremo Tribunal Federal, dentre outros, no ARE 727864 AgR / PR, no qual se decidiu pela responsabilidade do Estado no custeio de serviços hospitalares prestados por instituições privadas em benefício de pacientes do SUS atendidos pelo SAMU nos casos de urgência e inexistência de leitos na rede pública), tendo em vista que se retrocedeu na garantia de direitos fundamentais conquistados e garantidos pela própria Constituição Federal.

De mais a mais, não obstante saibamos que o Supremo Tribunal Federal já decidiu, reiteradas vezes, não haver direito adquirido a regime jurídico (ARE 841830 AgR / RS e ARE 833399 AgR / PE) há, indiscutivelmente, violação à segurança jurídica.

Para além do Regime Próprio de Previdência Social, restou alterada, também, a lei 8.112/90, que trata das regras concernentes aos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.

As pessoas que optam pela carreira pública no Brasil o fazem como um projeto de vida (o direito ao projeto de vida é citado no REsp 1183378 / RS e reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Loayza Tamayo vs. Peru). Portanto, é totalmente ingênua a afirmação daqueles que sustentam que caso o servidor esteja insatisfeito deve procurar outro cargo (não atingido pelas medidas) ou, até mesmo, migrar para a iniciativa privada, como se o acesso por meio de concurso público fosse algo simples e não dificultoso e a mudança de um projeto de toda uma vida pudesse se (re)fazer de forma repentina.

Um dos principais motivos que levam à opção pela carreira pública é a estabilidade. Sem ela milhares de (bons e capacitados) servidores e agentes públicos estariam auferindo salários infinitamente maiores junto à iniciativa privada. As medidas que atingem direitos sociais agridem, em última análise, o direito (constitucional) à estabilidade.

Se limitado pelos recursos o governante tem a difícil missão de realizar “escolhas trágicas” (STF. ARE 639337 AgR / SP), as medidas provisórias já cidades representam uma tragédia cruenta. Escolheu-se, como sói ser, o caminho mais fácil: esfaqueou-se a parte mais fraca. É que, não obstante muitos não saibam, as castas sociais mais privilegiadas de nossa sociedade (sim, temos castas no Brasil!) não são afetadas pelas medidas, a exemplo dos militares, magistrados e membros do Ministério Público – esses dois últimos agraciados, no final de 2014, com aumentos salariais, juntamente com os próprios Deputados e Senadores, os quais, alegando falta de orçamento, negaram a mesma benesse a carreiras outras, como a Defensoria Pública da União e Advocacia Geral da União. Aqueles (privilegiados) continuam a dormir tranquilos na certeza de que, se um dia, repentinamente, faltarem, seus dependentes gozarão de uma boa pensão integral e vitalícia.

Enquanto as medidas passam a vigorar sob o fundamento da necessidade de readequação dos gastos públicos, a Presidência da República vai gastar trezentos e vinte quatro mil reais com flores nobres, tropicais e de campo, conforme noticiou a Folha de São Paulo no primeiro dia do ano. Quiçá alguma dessas será enviada para as viúvas que ficarão sem pensão por não terem firmado matrimônio dois anos antes da morte de seus esposos (segundo as regras da MP 664 não há direito à pensão nesses casos, salvo situações excepcionais que lista).

Restam-nos duas esperanças. Torçamos, assim, para que, ao final, as noveis e malsinadas normas ou não sejam convertidas em lei pelo Poder Legislativo (muitas vezes corrompido); ou sejam afastadas pelo Judiciário (muitas vezes míope) por vício de inconstitucionalidade. Devemos ficar alertas, mas sem muita vibração, pois não podemos correr o risco de falecermos de uma parada cardíaca deixando nossos dependentes a mercê do instável sistema de direitos fundamentais de nosso país.

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    é defensor público federal. Foi defensor do estado do Maranhão. Coautor do livro Dicionário de Ministério Público e autor da obra A Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais – sua vinculação às relações entre particulares. Especialista em Direito Processual.

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