Política antitruste

Herança da ditadura está em mais lugares do que pensamos

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7 de janeiro de 2015, 8h29

Recentemente, a Comissão Nacional da Verdade entregou à sociedade relatório sobre graves violações de direitos humanos ocorridas no Brasil durante o regime que se iniciou em 1964. Diferentemente do que proclamou a Folha de S. Paulo em seu editorial “Página virada”, de 12 de dezembro, não se trata de “período já esmiuçado na história recente”. Há muita coisa ainda por esmiuçar. O legado — se é que se pode usar o termo  da ditadura ainda precisa ser melhor analisado, em suas diferentes facetas.

Uma delas é a econômica, mais especificamente a política antitruste nos anos do regime autoritário.

A política antitruste no Brasil é de responsabilidade do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Além de analisar e poder vetar fusões e aquisições entre grandes empresas (“controle de estruturas”), o Cade é responsável por investigar cartéis e outras condutas anticompetitivas (“controle de condutas”).

O órgão foi criado com base na Lei 4.137, de 10 de setembro de 1962, aprovada nos últimos dias do gabinete Brochado da Rocha, segundo primeiro-ministro do excêntrico arranjo parlamentarista que impediu João Goulart de assumir a presidência com plenos poderes após a renúncia de Jânio Quadros. Os projetos que deram origem a esta lei enfrentaram resistência de setores das elites econômicas locais e também de corporações multinacionais que aqui atuavam. Entre idas e vindas, as propostas legais ficaram aproximadamente 14 anos em trâmite no Congresso Nacional.

Apesar de existir desde 1962, sabe-se que a atuação do Cade do seu surgimento até meados da década de 1990 foi, no mínimo, tímida. Guilherme Canedo de Magalhães, conselheiro do Cade nos anos 1970, registrou que, do início de suas atividades até 1975, apenas 11 processos haviam sido julgados pelo órgão, sendo que em somente um deles houve condenação. Mal comparando, entre janeiro e fevereiro de 2014, o Cade julgou 15 processos para apurar infrações concorrenciais, tendo havido condenação em nove dos casos.

Uma análise dos Planos Nacionais de Desenvolvimento, planos econômicos dos governos Médici (1969-1974) e Geisel (1974-1979), permite observar que o favorecimento à concentração econômica foi uma opção deliberada da ditadura. Estímulos a fusões e incorporações — como o Fundo de Modernização e Reorganização Industrial (FMRI), o Programa de Modernização e Reorganização da Comercialização (PMRC) e a Comissão de Fusão e Incorporação de Empresas (COFIE) serviram ao projeto "Brasil Potência".

O II PND (1975-1979), em particular, ilustra bem a posição do regime em relação à defesa da concorrência. De um lado, o plano assinalava a necessidade de incentivos "à emergência de estruturas fortes e dinâmicas, através de fusões, incorporações e conglomerados". De outro, pregava uma "política contra os abusos de poder econômico", mas sequer citava o Cade, referindo-se como instrumentos dessa política "o crédito e os incentivos fiscais" e o "sistema de controle de preços". Aliás, foi no âmbito do próprio Estado que vários cartéis foram organizados, como acontecia no Conselho Interministerial de Preços (CIP), criado em 1968.

O Cade já existia desde 1962, mas o regime abdicou dele ou, na mais benevolente das hipóteses, não enxergou a potencialidade da política antitruste.

É preciso refletir: se tivéssemos, desde a década de 1960, uma política antitruste vigorosa, teríamos tanta dificuldade de assentar uma cultura concorrencial no Brasil? O que explica setores em que, mesmo com uma forte atuação do Cade (e de outras instituições, como o Ministério Público), há continuamente a formação de conluios que geram prejuízos à coletividade? O lapso de pelo menos 21 anos na implementação de uma efetiva política concorrencial teve alguma contribuição na concentração de poder econômico que marca o Brasil?

São perguntas cujas respostas são de difícil obtenção. A tentação de cair em um determinismo histórico é grande. A reflexão, contudo, precisa ser feita. Em um momento importante como o atual, de revisitação da nossa história recente, vê-se que a herança do regime autoritário pode estar em mais lugares do que estamos acostumados a pensar.

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