Senso Incomum

Juízes devem fazer ou usar a doutrina somente na hora do lazer?

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1 de janeiro de 2015, 8h52

Spacca
Em primeiro lugar, quero desejar a todos um Feliz Ano Novo. Foi um belo ano. Se o próximo for igual para esta coluna, já está bom. Para registro: em apenas uma vez em 2014 Senso Incomum ficou fora do ranking dos dez textos mais lidos da ConJur. No ranking da semana passada, Senso Incomum ficou em segundo, sendo que uma coluna anterior (Novo CPC terá mecanismos para combater decisionismos e arbitrariedades?) ficou em décimo lugar; lá no meio, em sétimo lugar, artigo que escrevi, em conjunto com meu grupo de pesquisa Dasein, sobre a cooperação processual. Três em dez! Obrigado aos meus leitores.

Última coluna de 2014 – Gustavo Lima e os embargos
Refugiado na Dacha já quase um mês, tenho lido de tudo um pouco e escutado música (de vários tipos: das óperas – minha paixão – ao rock heavy, tudo em minha coleção de vinil, na minha vitrola; só não gosto de sertanejo universitário, que me faz lembrar os livros simplificados de direito; fico pensando em Zezé de Camargo explicando a ponderação; Gustavo Lima e os embargos; e Bruno e Marrone falando do ECA; e não sou dado a frescuras em termos de música – não saio por aí dizendo “só gosto de MPB e Ernesto Nazareth é o cara…").

Tenho várias colunas feitas. Hoje deveria ir ao ar a coluna sobre O Livre Convencimento e os motivos que fizeram com que fosse banido do novo CPC. Nela também declinaria os motivos pelo quais o juiz Mauricio Botelho (não) deve se mudar para os Isteitis. Mas pensei que, com a folga da maioria dos leitores (feriado, praia etc), o melhor é tê-los (os leitores) mais disponíveis na volta.

Pois já ia separando uma coluna sobre uma estranha decisão judicial do Rio grande do Sul quando entrou o e-mail do leitor Ricardo Diego, de Minas Gerais, que me remeteu matéria da Folha de S.Paulo que havia me passado despercebida. Questionado acerca do fato de 30% dos processos atrasados no Tribunal de Justiça de São Paulo estarem na mão de poucos desembargadores (portanto, a maioria está em dia com os feitos), o presidente do tribunal paulista, José Renato Nalini, afirmou que a produção doutrinária nas decisões judiciais deve ficar para horas de lazer. Disse também que muitos dos desembargadores que atrasam processos ainda fazem citações doutrinárias e trabalham artesanalmente.

Tenho enorme apreço pelo desembargador Renato Nalini, presidente do TJ-SP. Ele mesmo é doutrinador dos bons. E com grande produção, abrangendo vários temas (lembro de um livro coletivo em que estivemos juntos, para minha honra, organizado por Wilson Levy, nosso amigo comum). Sei que gosta de Filosofia do Direito. Sinto-me, pois, à vontade para escrever esta coluna, para dizer que me preocupou sobremodo a sua observação acerca da doutrina (e de seu uso e/ou função). Há muito estou em uma luta para prestigiar a doutrina. “A doutrina deve voltar a doutrinar”, disse eu pela primeira vez há alguns anos em conferência em Coimbra. Ela não pode se contentar com reproduções assépticas (ou adesísticas) daquilo que os tribunais decidem. Aliás, com raras exceções, a doutrina contenta-se em fazer compilações – reconheço, algumas até razoáveis – das decisões tribunalícias. Só que, atenção, isso não produz possibilidade de avanço, uma vez que, estando a doutrina-a-reboque-dos-tribunais, o direito será aquilo que o judiciário disser que é. E, é claro, isso não pode ser assim.

Não faz muito, tivemos a declaração escandalosa do então ministro Humberto Gomes de Barros, que disse, em alto e bom som, que a ele não interessava o que dizia a doutrina (“Não me importa o que diz a doutrina…” – aliás, fui o primeiro a criticar o referido ministro, aqui na ConJur, em 2006. Também já li voto de Ministro do Supremo Tribunal (v.g., Eros Grau na Recl 4335) dizendo que é a doutrina que deve amoldar-se ao que a Corte decide. É claro que não estou dizendo que a declaração do desembargador Nalini tem esse mesmo contexto ou a mesma consequência (deletéria) para o direito daquela que teve a do ministro Barros. Não é disso que se trata. Trato do tema utilizando a declaração do presidente Nalini como pano de fundo para ir mais a fundo na discussão, se me permitem o uso chamativo da linguagem.

Mas que há problemas na (e a partir da fala) do desembargador Nalini, ah, isso há, por mais razões pragmáticas que ele tenha para acelerar os processos que tramitam no TJ-SP. Afinal, é o gestor e é cobrado por isso. Entretanto, o que se pode colocar como solução para quem trabalha, digamos assim, mais artesanalmente? Uma produção em massa “tipo indústria de carro” (modelo fordista ou toyotista)?

Posso até concordar com o que disse Nalini. Mas, então, temos que assumir que o Direito é uma mera técnica, uma mera racionalidade instrumental. E que não é necessário muito brilho ou raciocínio sofisticado para produzir sentenças, as quais, pelo visto – em face da exigência de efetividades quantitativas (e esse problema não se restringe a SP, é óbvio)  devem ser seriadas. Assim, se as efetividades devem ser apenas quantitativas, teremos que admitir que:

Primeiro, devemos parar de fazer mestrados e doutorados, pelo menos aqueles mais sofisticados (como se sabe, tem mestrado que produz dissertação que não passa de TCC e tese de doutorado que, de tese, possui apenas o nome). E paremos de investir em pós-graduação. Hoje tem juiz, promotor, defensor, procurador do estado na Europa e nos Estados Unidos, com tudo pago (imagine você: a R$ 20 mil por mês, por baixo, ficando dois anos, um curso desses fica para a Viúva no valor de R$ 620 mil, uns 260 mil dólares – some-se, em alguns casos, uma bolsa Capes de R$ 2 mil, são mais R$ 100 mil reais), estudando para sofisticar o Direito (pelo menos, a maioria). Não-estou-dizendo-que-não- devamos-fazer-esses-investimentos. Pelo contrário. Mas, se uma sentença ou decisão deve ser feita em série e destituída de (boa) doutrina, então é melhor doar esse dinheiro para os hospitais, onde as pessoas estão tomando soro em pé (na verdade, confesso que vendo alguns temas que estão sendo estudados no exterior, penso que seria melhor mesmo dar o dinheiro para a compra de soro).

Segundo, paremos de escrever textos doutrinários (falo dos mais sofisticados, é claro). Sim, porque se a doutrina não serve – ou não deve ser usada  para embasar sentenças e acórdãos, ela serve para quê? Para as salas de aula? Ora, é lá, nas salas de aula, que a doutrina de verdade cada vez entra menos (está praticamente banida!), porque perdeu espaço para uma produção meramente técnica, standard, composta de resumos, resuminhos, direitos facilitados, mastigados e simplificados. Há livros para concursos vendidos a R$ 2 no balaio.

Terceiro, dispensar ou dar pouca importância para a doutrina ou relegá-la às horas de lazer é como dizer para o médico que ele deve se dedicar às leituras sobre a doutrina médica (por exemplo, a operação cardíaca ou do cérebro) apenas quando não está em cirurgia ou atendimento. Parece-me que isso é correr o risco, mormente no direito, de dar espaço para a mediocretização do ensino e da escrita sobre e do direito. Quanto mais deixarmos de lado a doutrina sofisticada ou a ela dermos pouca importância, mais daremos espaço para que os néscios invadam esse espaço e, perdendo a timidez, metam-se a escrever sobre qualquer coisa. Aliás, se examinarmos alguns livros que surgiram nos últimos tempos destinados a concursos públicos tratando das “disciplinas humanistas”, constataremos que isso já aconteceu (é o Waking Dead do Direito). Já escrevi muito sobre isso. Eles acaba(ra)m com Kelsen, Hart, Rawls, chutam acerca do que é positivismo, massacram Kant e até mesmo nos temas dogmáticos um pouco mais sofisticados eles não conseguem passar da primeira raia. Sem contar o que fazem com a filosofia do direito e a hermenêutica. Insisto: se enfraquecermos a doutrina, estaremos facilitando a nesciontologia, novo “paradigma” em que o Direito é ensinado e discutido com a profundidade dos calcanhares de uma formiga (anã).

De todo modo, penso que não podemos dicotomizar a discussão, com algo do tipo "ou o julgador é rápido e raso ou ele é lento e profundo". Nem de longe o desembargador Nalini, magistrado e intelectual reconhecido, pensa assim. E nem eu. Ambos não seríamos ingênuos para dizer isso. Deve haver outro modo – e sei que há – para que não precisemos escolher entre um modelo socrático e um modelo fordista para o Direito. Ou seja: uma decisão não precisa ser um livro ou um tratado; mas, por favor, também não deve ser uma mera reprodução de um dispositivo de lei ou de uma ementa jurisprudencial (no mais das vezes sem contexto). Nem oito, nem oitenta.

O furo, claro, é sempre mais embaixo. O problema de São Paulo (e do resto do Brasil)  e as declarações do pesidente do TJ estão inseridas em algo bem maior – é a crise de paradigma(s) que atravessa(m) o Direito. E isto é assim porque estamos lidando com o “que está aí” a partir de um conjunto de sentidos coagulados. Há uma grande poluição semântica cobrindo e recobrindo as significações do direito.

Assim, para dizer o mínimo:

a) vivemos um problema no qual entramos de cabeça e não conseguimos nos desvencilhar das armadilhas que o “sistema” produziu. Falo do processo eletrônico, que trouxe, sim, efetividades quantitativas, com o sacrifício, entretanto, das efetividades qualitativas; como sair dessa?

b) ainda não se construiu um modelo de ensino que “supere” a leitura de leis e códigos comentados (na maioria das vezes, reproduzindo conceitos lexicográficos e sem nenhuma sofisticação teórica); portanto, o problema começa lá na base;

c) a doutrina, a cada dia, doutrina menos, estando dominada por produções que buscam, nos repositórios jurisprudenciais, ementas que descrevem, de forma muito breve, o conceito: uma simples decisão de tribunal vira referência – plenipotenciária – para a atribuição de sentido do texto, perdendo-se a especificidade da situação concreta que a gerou; matamos, pois, o caso concreto (já denominei a isso de casoconcretocídio);

e) nem sequer conseguimos elaborar um novo modelo de provas de concursos públicos, valendo consultar a pesquisa coordenado pelos professores Fernando Fontainha, Pedro Geraldo, Alexandre Veronese, Camila Alves, Beatriz Figueiredo e Joana Waldburger; nossos concursos viraram quiz shows, justamente porque estes, os concursos, viraram reféns dos cursinhos de preparação; ou se inverte isso – urgentemente  ou a coisa só tende a piorar;

f) na medida em que o direito é visto como um saber prático-técnico, os professores (e juízes, etc) dizem que o que importa é a prática; ou dizem frases como “na prática, a teoria é outra”, como se uma coisa existisse sem a outra. Sem a teoria, de que valeria ter a maçã caído na cabeça de Newton? Aliás, os nazistas, por serem excessivamente práticos e terem preconceito com o pensamento abstrato dos teóricos judeus, não conseguiram “sacar” a questão da divisão do átomo (neste caso, ainda bem que os nazistas eram práticos – mas isso só vale para eles e para aquele caso; graças a isso eles não conseguiram fazer a bomba atómica);

g) estamos inseridos em um imaginário facilmente perceptível em salas de aula, nas práticas judiciarias, nos sites jurídicos e nos livros de resumos e facilitações, em que o esporte preferido é desconhecer-ignorar-desdenhar o conhecimento reflexivo-sofisticado. Veja-se que a falta de um conhecimento mais aprofundado pode ser detectado nas mínimas coisas, como, por exemplo, na descrição dos temas escolhidos de Filosofia do Direito, especificamente, no item 3 da Resolução do CNJ, para os concursos públicos para magistrados: “A interpretação do Direito. A superação dos métodos de interpretação mediante puro raciocínio lógico-dedutivo. O método de interpretação pela lógica do razoável”. De onde teriam tirado isso? Isso é tão velho que, fosse na medicina, seria mais ou menos a descrição do uso de sanguessugas para combater gota. Desde quando Siches (parece que é disso que o CNJ falava) é algo contemporâneo e compatível com as viradas que ocorreram no último século? Quem diz o que é razoável? O intérprete? Nem Siches era tão ingênuo a ponto de deslocar a produção dos sentidos em direção, pura e simples, ao sujeito solipsista. Poderia trazer outros exemplos, mas trouxe esse do andar de cima, do CNJ. E foi só para mostrar que “o furo é mais embaixo”.

Numa palavra final
Imagino o dilema ou o drama do presidente Nalini. O intelectual e o gestor em um lugar só, tendo que dar conta de demandas pragmáticas que somente se realizam, pelo menos no imaginário jurídico dominante, por intermédio de efetividades quantitativas. Metas: eis a palavra de ordem do CNJ. Sabemos todos das dificuldades que a operacionalidade do direito enfrenta em um país em que, depois da Constituição, a falta de políticas públicas fez com que a cidadania fosse toda “transferida” para os fóruns e tribunais. Presidencialismos de-coalisão-e-de-emendas-parlamentares geram poucas políticas; e como os direitos estão previstos na Constituição, corramos todos ao Judiciário. Resultado? Lotação esgotada. Bingo!

Resposta do establishment: súmulas vinculantes e repercussão geral, enfim, a famosa jurisprudência defensiva. E pau no utente. Tudo para tentar, por dentro, minimizar o caos. Adaptação darwiniana – é isso que vem ocorrendo paulatinamente.

Mas, convenhamos, também a comunidade jurídica “ajudou” nisso tudo. Paradoxalmente, enfraquecemos a cidadania ao proporcionar uma corrida ao (pai) Judiciário. Ou seja, em vez de as pessoas reivindicarem no plano da política (e com os políticos), o establishment colocou a disposição do pobre do utente um advogado para entrar em juízo. É mais fácil resolver o problema do utente a partir de uma atitude ad hoc do que implementar politicas para todos. Simbólico disso é que o Ministério da Saúde tem até um roteiro no seu site para ensinar o utente a entrar em juízo. Binguíssimo! Preciso dizer mais? A população de Santa Clara do Herval, em vez de batalhar por ônibus escolares, vai na Defensoria. Que entra em juízo. Com pedido liminar. Que é concedida. Que enseja recurso. E outro recurso. Mas, o que falta mesmo são “recursos públicos”. Como administrar a escassez? Um ônibus “conquistado” em juízo para as crianças do lugar X, representa recursos retirados de outros para fazer a felicidade daquelas. Isso fere a igualdade (é como isentar o IPI de quem compra automóvel às custas de quem anda de ônibus!) E isso não pode ser tarefa do Judiciário. O Judiciário de São Paulo sabe de tudo isso e/ou deveria saber. Basta ver quantas decisões liminares determinando a abertura de vagas em creches foram concedidas em 2013 e 2014. E assim por diante.

Sabemos de tudo isso. Mas isso não quer dizer que dvamos transformar o direito em um jogo de várzea, em que basta fazer uma sentença ou um acordão “seriado” (ou fordista) que estaremos contribuindo para uma boa estatística. Perdão, mas efetividades quantitativas não são necessariamente (ou quase nunca) qualitativas.

Façamos tudo junto, então. E juntos. Iniciemos algo novo, aproveitando o novo CPC. Decisões bem fundamentadas ensejam menos recursos. Embargos declaratórios têm servido para que o juiz se livre de um processo, porque, na maior parte das vezes – não ignoro, por óbvio, os advogados irresponsáveis – aproveitam-se de algo que só o direito de Pindorama possui: uma autorização para que uma decisão seja obscura, omissa ou contraditória. Ovidio Baptista, de saudosa memória, dizia: os recursos se multiplicam porque as decisões são fragilmente fundamentadas: “Deem-me uma boa biblioteca (portanto, muita doutrina) e uma semana para decidir, que farei uma sentença imune a recurso” (é uma metáfora o que ele disse, mas pensemos: decisões bem fundamentadas fariam com que o sistema” não fosse invadido por recursos buscando coisas prosaicas como “primeiro, há que se embargar…” etc).

São pequenas coisas que podemos fazer desde já. O ponto de estofo é: ter presente que o direito é um fenômeno sofisticado; ele precisa de teoria; ele não vive sem doutrina! O direito é alográfico, porque precisa de teoria para explica-lo. Caso contrário, qualquer pessoa poderia manuseá-lo (embora hoje isso já esteja ocorrendo, com o nível do nosso ensino jurídico). Pegando um exemplo do meu amigo Paulo de Barros Carvalho, se uma lei diz que três pessoas disputarão uma cadeira no Senado, um marceneiro pode pensar que a disputa se dará em torno de um móvel…mas, com certeza, um jurista saberá do que se trata. Porque o Direito não é como uma obra de arte abstrata, em que cada um dá o sentido que quer; ao contrário, o direito pode ter previsibilidade; desde que haja uma teoria da decisão e uma criteriologia, evitando-se que cada um decida como quer. Com isso, com certeza, o número de embargos já diminuiria em muito; e os agravos daí decorrentes também; enfim, decisões (bem) fundamentadas (com boa doutrina) geram menos recursos e menos efeitos colaterais. E assim por diante! Viva a doutrina! Essa é a minha luta cotidiana. Ao final de 2014, Feliz 2015 a todos (sabem todos que não uso “todas”). O ano que vem será de muita luta para implementar o novo CPC. E a doutrina – essa da qual falei com tanto carinho – será testada todos os dias. Como ela se comportará? Saberemos.

Saludos!

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