Vitimologia

Para análise de crime tributário é preciso separar personagens e cenários

Autor

  • Antônio Celso Nogueira Leiria

    é advogado especialista em Direito Penal pela UFRGS especialista em Direito Econômico e Financeiro pela FGV foi professor nos cursos de graduação e especialização na UFRGS e de especialização da Fundação Irmão José Otão (PUC-RS).

27 de fevereiro de 2015, 7h15

O Direito Penal tem servido para fazer cumprir obrigações originárias de outras áreas. Como aponta Salgado Martins[1], é o mais impregnado de sentido ético. Porém, não visa regular uma ordem moral superior ou ideal; reflete apenas os imperativos de uma ordem moral política. Pois, “o crime, como objeto do Direito Penal, é a ação que lesa ou põe em perigo a própria conservação da sociedade e do Estado”[2]. A tutela penal é dirigida aos bens jurídicos de maior relevância na escala dos valores éticos e sociais.

No campo de integração entre o Direito Penal e o Direito Tributário, duas correntes se apresentam diante da sanção penal tributária: uma que admite a pena como forma de defesa de valores significativos e outra que questiona sua aplicação, não admitindo a pena quando outros meios de direito bastarem. Com razões relevantes e sem um antagonismo vigoroso, ambas focalizam o tema sob uma ótica de valor e sem analise de realidade mais aprofundada.

O crime tributário é um segmento secundário, não faz parte do Direito Penal Clássico, cuja tutela é dirigida a bens jurídicos que integram os valores indispensáveis para a sociedade, tais como a tríade vida, liberdade e propriedade. Porém a interpretação do delito é única: ou o fato é típico ou não é típico. Portanto, Secundário ou Tradicional as regras permanecem as mesmas diante do fato típico penal.

O crime, como fato típico, antijurídico e culpável, realiza-se através da vontade, da ação e do resultado. O comando esta na vontade humana que muda a realidade fenomênica. Sendo a consciência da ilicitude e a autonomia da vontade o fundamento da responsabilidade penal[3].

O tipo penal, em seu elemento subjetivo definido através da culpabilidade, tipifica a intenção do autor como elemento propulsor da vontade. Entretanto, a vítima também carrega ações que merecem ser observadas. Situando o Direito Tributário com as ciências penais, observa-se  importância do juízo de realidade no fato típico penal tributário em que a vitimologia  busca compreender a ação do autor diante da ação do sujeito passivo no delito e sua a atividade provocativa na ação típica.

O juízo de valor esculpe a intensidade da pena. As Ciências Penais emitem juízos de realidade sob múltiplos aspectos. A Criminologia integra estes estudos para a compreensão realística do fato, já é parte da inteligência que formula o juízo de valor. Como valorar sem compreender as circunstâncias da realidade?

O Direito Penal tem emprestado sua força coercitiva em diversos segmentos jurídicos. No Direito Tributário esta coerção tem servido como ferramenta para a cobrança de tributos com critérios e interesses questionáveis, porque políticas de arrecadação tributária não têm considerado hipóteses de risco relevante. Não sendo observados os perigos da sanção, a resposta penal inadequada poderá produzir efeitos graves e danosos.

A elaboração e a aplicação da pena não é suficiente apenas através de juízos de valor, é necessário o juízo de realidades para dar compreensão ao crime como fato. Não há espaço para critérios empíricos, elaborados por políticas e interesses de arrecadação. A pena, além de exigir cautelas para não causar desastres sociais, tem se revelado como uma providência extrema, classificada, inclusive, como medida de ultima ratio.

O ajuste ontoaxiológico do Direito Penal, para ser utilizado no Direito Tributário depende da relevância do bem tutelado, o que varia no tempo e no espaço. Este grau de relevância é alterado em decorrência da própria evolução social, como por exemplo, o adultério, que já existiu como fato típico. Significa que antes teve uma densidade axiológica para ser tipificado como crime, mas deixou de ter importância para ser categorizado como um ilícito penal. No caso dos tipos penais de natureza tributária, a questão deve ser enfocada pela mesma forma  para definir a adequação e a relevância axiológica da imposição penal.

Como acontece nos costumes, em que a realidade altera o sentido dos valores, no crime tributário o mesmo irá ocorrer, porque valores sociais e outras relevâncias irão determinar a conveniência e a exigência da elaboração de um tipo penal tributário. Nos crimes tributários valores se concentram na liberdade e no patrimônio, apesar de posições mais específicas apontarem ainda a verdade fiscal. Assim, quando corrompido o destino dos recursos destinados ao Estado, este é prejudicado, logo a sociedade é lesada não mais ter recursos. Isto é uma verdade incontroversa, impossível de ser derrubada em seu valor real e concreto diante do que pertence a sociedade contribuinte.

Porém, se a preservação do patrimônio estatal carrega densidade suficiente de valores, justificando dispositivos penais para garantir que não seja violado este bem, por outro lado há um administrador do patrimônio fiscal: o Estado, que através dos seus representantes tem a missão de administrar, receber, investir, paga compromissos, tomar providências, e tudo o mais que exige recursos provenientes da arrecadação pública.

Diante desta realidade, duas posições se definem: uma que confere importância a forma de administração adotada pelo Estado e outra que entende ser a necessidade de arrecadação independente de qualquer que seja a forma administrativa do Estado.

José Carlos Tórtima afirma que “nas nações mais desenvolvidas , de há muito cristalizou-se a consciência de que não se pode alcançar as desejáveis paz e estabilidade sociais sem uma eficiente rede de proteção social, só financiáveis mediante cargas tributárias razoavelmente elevadas”. Na continuidade o jurista segue apontando que mesmo com o poder público fazendo uma má administração “não se poderia deslegitimar, em razão disso, o dever do Estado de arrecadar impostos”[4].

Num outro lado esta instalada a teoria da norma de rejeição social, que entende que sendo o Estado um mau administrador e ainda por cima palco de escândalos de corrupção, a sanção penal perderia sua força, tendo em vista o esvaziamento ético e moral descolorindo o seu próprio valor.

Apesar da referência feita sobre a densidade axiológica necessária para que se justifique o tipo penal tributário, o comportamento da vítima é circunstancial. Ou seja, sua avaliação é feita com base no fato e só ai sua conduta poderá ser relevada.

As posições apontadas ilustram a necessidade de ser analisada a postura da vítima nos crimes tributários, pois ambas as correntes não descartam a má administração estatal como um fato, inclusive, uma delas a tem como admissível, por ser assim, eventualmente, o comportamento humano no poder. Isto tem influência no cenário do delito tributário, porque é o Estado agindo de forma contrária aos valores da sociedade que o instituiu. Independente da relevância do tipo penal tributário, bem como da sua densidade axiológica, o comportamento da vítima terá influência na ação do autor quando aquele estiver em desacordo com os princípios e valores regrados na norma.

Sujeito passivo do crime é o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado pela conduta criminosa. No caso dos Crimes Tributários é o Estado na sua qualidade de pessoa jurídica de direito público.

O fato típico no âmbito tributário realiza-se através da atividade humana de um sujeito ativo sobre outro passivo.  Eles incorporam o cenário do fato pela mesma forma dos crimes comuns. Se há uma vítima e um autor, existe percepção sensível e concreta destes dois entes. Ou seja: existe razão e vontade manifesta.

Na dimensão jurídica a que pertence o Direito Penal, a vítima e o autor habitam a realidade e nela produzem efeitos. Porém, se os entes ideais não podem se constituírem em autores, salvo algumas concepções extravagantes, por não ser possível a aplicar a sanção penal, a vítima pode se apresentar tanto como um ser real como ideal.

O Estado não comete genocídio, quem comete são os seus dirigentes. A empresa não poderá receber uma pena privativa de liberdade por ferir o meio ambiente, mas o seu presidente e diretores podem.

Apesar de não haver uma formulação efetiva, tradicional e possível de responsabilizar o autor quando este for uma entidade jurídica de natureza pública ou privada, os seus administradores responsáveis o serão. Mas o Estado, como sujeito passivo, também não tem mentes que pela mesma forma da ação agem neste mesmo universo? Não importa que a vítima seja um ente abstrato. Ela incorpora a vontade humana em sua força ativa, realizando feitos e efeitos, pois nunca deixará de haver a vontade humana.

A Vitimologia, como ciência complementar no estudo do crime, vê a vítima inserida na sua verdade diante da realidade e da ação do autor. Trata-se de um enquadramento de cena e personagens através de uma ótica ainda nova. O termo – vitimologia – foi utilizado pela primeira vez em 1945 por Benjamim Mendelson. Portanto, se trata de um estudo ainda recente.

O código Penal, em seu artigo 59, refere orientação ao julgador para observar e avaliar o comportamento da vítima. Isto irá pautar o próprio princípio da íntima convicção. Logo, a análise da vítima e sua interferência na realização do fato típico penal não são temas tão inusitados e inovadores como parece. Observa-se a redação do artigo citado: Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.

Diante das classificações de diversos tipos de vítimas, a que interessa para o estudo do delito penal de natureza tributária são as vítimas reais provocadoras. Um polo ocupado pelo Estado quando suas ações, protagonizadas por seus representantes, causam na consciência social uma censura moral. Neste sentido o modelo de Estado poderá obter uma resposta social através daquele poder cuja moralidade esteja inteiramente preservada ou parcialmente.

Consequentemente, diante de vícios de vontade e de inteligência das administrações públicas, não há como deixar de observar o produto do efeito na consciência da sociedade que legitima o Estado para defender e preservar princípios de ética e moralidade. Princípios estes que, inclusive, integram a constituição da Carta Magna do Estado.

O julgador não poderá deixar de pautar-se pelo artigo 59 do Código Penal com enfoque específico aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, para estabelecer, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Laércio Pelegrino diz: “não poderá deixar, por conseguinte, o juiz, ao final do processo, quando sentenciar, se vier a condenar o réu, de apreciar a conduta da vítima, perquirindo de que maneira agiu ela na sua relação com o criminoso. Terá, assim, no Brasil, por força de lei, pra reprovação e prevenção do crime, de apreciar o comportamento da vítima na origem da ação ou omissão delituosas”[5].

Em termos conclusivos, observa-se que para uma análise precisa sobre o crime tributário, é necessário o enquadramento do tipo penal dentro de sua formalidade técnica, separando personagens e cenário. O primeiro definindo as partes e as ações, o segundo a realidade e as suas influências.


[1] SALGADO MARTINS, JOSÉ – Direito Penal – Introdução a Parte Geral, 1974, Ed. Saraiva, p.35,36.

[2] SALGADO MARTINS, JOSÉ, Direito Penal- Introdução a Parte Geral, São Paulo, Editora Saraiva, 1974, p.35.

[3] ANTÔNIO JOSÉ FABRÍCIO LEIRIA ensina que a responsabilidade apresenta-se como uma decorrência necessária da culpa latu sensu que, por seu turno, tem como pressuposto indispensável o status de imputabilidade moral do agente capaz de entender e de querer. (Fundamentos da Responsabilidade Penal, p. 64.)

[4] TÓRTIMA, JOSÉ CARLOS – Sanções Penais Tributárias –Coordenador Hugo de Brito Machado – Ed. Dialética – São Paulo – Publicação do Instituto Cearense de Estudos Tributários – Ano: 2005 – pg.476, 477, 478, 479, 480, 481, 483.

[5] PELLEGRINO, LAERCIO, Obra citada, pg.36

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    é advogado, especialista em Direito Penal pela UFRGS, especialista em Direito Econômico e Financeiro pela FGV, foi professor nos cursos de graduação e especialização na UFRGS e de especialização da Fundação Irmão José Otão (PUC-RS).

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