Liberdade de Expressão

Não há justificativa legal para que se criem barreiras ao humor

Autor

  • Alexandre Fidalgo

    é doutor em Direito pela USP mestre em Direito pela PUC-SP advogado e sócio do escritório Fidalgo Advogados. Integrante do conselho jurídico da Fiesp e do conselho de liberdade de expressão da OAB Federal.

25 de fevereiro de 2015, 8h23

Spacca
Alexandre Fidalgo [Spacca]“…a importância, para o homem e a sociedade, de que se garanta plena liberdade à natureza humana para se expandir em inumeráveis e conflitantes direções”[i]

J.S. Mill

Ano passado, em um debate sobre liberdade de expressão, para o qual fui honrosamente convidado, em determinado momento perguntaram-me se havia de existir limites para o humor. Efetivamente se questões religiosas, étnicas, bem como opções sexuais seriam os limites intransponíveis para o exercício do riso, a ponto de qualquer assunto desse chamado núcleo duro constituir uma ilegalidade.

Recentemente dois episódios colocaram o assunto novamente em destaque. O primeiro evento foi o atentado ao jornal francês Charlie Hebdo, que havia publicado em suas páginas caricaturas de Maomé; e o segundo, acontecido em terras nacionais, trata-se da veiculação, pelo grupo de humor — interessantíssimo, e conhecido de todos — Porta dos Fundos, de sátira das passagens bíblicas relacionadas ao nascimento e crucificação de Cristo.

Se adotarmos o conceito de que o humor é qualquer mensagem cuja intenção é a de provocar o riso ou um sorriso, entenderemos que através de filmes, do teatro, da música, da literatura, dos jornais, das revistas, dos programas radiofônicos, da internet e da televisão faz-se humor.

Segundo registros, o humor foi estudado pela primeira vez na Antiguidade, talvez com Aristóteles. Cícero também é fonte do vocabulário romano de humor[ii]. Não há como esquecermos dos chamados bobos da corte, que, entre os séculos XIV e XVI, tinham como objetivo fazer rir reis e rainhas da monarquia. Pelo humor, os “bobos” estavam até autorizados a criticar o comportamento da monarquia. Mais recentemente, pelo século XVI e XVII, o dramaturgo Willian Shakespeare produziu inúmeras obras que tinha o humor como forma de expor suas observações.

Percebe-se, portanto, que o humor sempre fez parte do caminho da humanidade.

Shakespeare talvez seja um bom exemplo para partirmos para a análise dos limites do humor, tendo em vista que suas obras, ainda que na roupagem do humor, tinham como finalidade muito mais do que provocar o riso. As obras do referido dramaturgo impunham uma reflexão dos conflitos da humanidade, das crises de amor, de comportamento e de preconceitos sociais.

Lendo as obras de Shakespeare, ou mesmo estudando as funções do bobo da corte, é que podemos entender melhor a finalidade do humor, admitindo que o riso talvez não seja a principal finalidade da obra, mas sim apenas um brinde, um algo a mais, em que o tema central sejam a verossimilhança dos fatos retratados, a permitirem uma reflexão, uma crítica.

"Humorismo não é apenas uma forma de fazer rir. Isto pode ser chamado de comicidade ou qualquer outro termo equivalente. O humor é uma visão crítica do mundo e o riso, efeito colateral pela descoberta inesperada da verdade que ele revela", asseverou o então ministro Carlos Ayres Brito no julgamento da ADI 4.451.

O humor, além de evidentemente ser marcado pela descontração, vale-se do exagero, da hipérbole, do óbvio, do absurdo como premissa para qualquer análise a respeito da possibilidade de se impor limites a esse tipo de comunicação.

Nos anos 80, no auge do grupo Os Trapalhões, a troça que mais se fazia era a de brincar com a etnia do personagem Mussum, com a característica do personagem negro e que gostava de tomar um “mé”. Também Zacarias era um personagem central da graça, em razão de suas características físicas, como também fora Didi, um personagem que encarnava o nordestino por vezes inocente e outras tantas perspicaz, tal qual em Macunaíma. Todos que assistiam ao programa tinham como premissa para as suas interpretações, mesmo que inconscientes, que se tratava de graça, de humor, cujas palavras expressadas pelos personagens não podiam ser interpretadas literalmente.

Em tempos mais presentes, podemos citar a frase de Danilo Gentili postada na internet, em que, diante da possibilidade de o bairro de Higienópolis receber uma estação de metrô e dos moradores desse antigo e tradicional local terem se manifestado contrariamente à linha metroviária, o humorista assim escreveu: "entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz", em clara referência ao campo de concentração nazista e por conta de o bairro concentrar inúmeros descendentes de judeus.

Em nenhuma dessas passagens percebe-se a vilania da ofensa como propósito da graça. Este é ponto central para, a nosso ver, afastar o policiamento que se faz a respeito do humor, buscando-se defender que determinados assuntos não podem ser objeto dessa forma de manifestação do pensamento.

Lembrando do que falamos no primeiro artigo desta coluna, o legislador constituinte deixou bastante claro a impossibilidade de intervenção estatal no exercício da manifestação de pensamento (artigo 5º, inciso IX e artigo 220, parágrafo 1º da CF). E nesse sentido não há justificativa legal para que se criem barreiras ao humor, mesmo para os assuntos duros como etnia, sexualidade, política e religião.

Daí porque acertada a decisão da justiça paulista que determinou o arquivamento do procedimento instaurado contra o grupo Porta dos Fundos, que satirizava o nascimento e crucificação de Cristo. Como também temos de lamentar a agressão ao jornal francês, por conta das charges de Maomé estampadas em seu periódico, pois elas, de bom ou mau gosto, representam uma forma de exercício da palavra, uma manifestação da democracia.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.451, assim se manifestou a respeito do humor:

“O humor presta serviço à Democracia. Com seu modo elegante ou um tanto agressivo, fino ou mais explícito, direto ou por ironia, ele consegue escancarar os conflitos sociais, políticos e culturais de uma forma não violenta, mas reflexiva. E reflexiva da melhor maneira, através do sorriso.”

Nesse sentido, Bobbio[iii] e Alexis de Tocqueville[iv] há muito sustentam que a democracia pressupõe o exercício do juízo crítico pelos cidadãos, de modo que privar a sociedade de separar a hipérbole da realidade é negar ao país uma maior democratização.

Há uma confusão estabelecida para se defender a condenação do mau humor como se ato ilícito fosse, muito possivelmente por conta de uma interpretação canhestra dos que defendem o politicamente correto. Na passagem do humorista Danilo Gentili, acima citada, em que faz alusão a Auschwitz, como nas caricaturas de Maomé feitas pelo jornal francês, ou ainda a brincadeira feita pelo Porta dos Fundos, podemos condenar o mau gosto, a desnecessidade dessa abordagem ou a forma dessa abordagem, mas em hipótese alguma concordamos que se trata, por si só, de violação às normas jurídicas. Como faço questão de sustentar, mau gosto não é ilícito.

A propósito, o Superior Tribunal de Justiça analisou demanda que discutia a prática de humor e assim se manifestou:

“…a respeito do ‘nível’ do humor praticado pelo periódico – apontado como ‘chulo’ – não é tema a ser debatido pelo Judiciário, uma vez que não cabe a este órgão estender-se em análises críticas sobre o talento dos humoristas envolvidos; (…) Não cabe ao STJ, portanto, dizer se o humor é ‘inteligente’ ou ‘popular’. Tal classificação é, de per si, odiosa, porquanto discrimina a atividade humorística não com base nela mesma, mas em função do público que a consome, levando a crer que todos os produtos culturais destinados à parcela menos culta da população são, necessariamente, pejorativos, vulgares, abjetos, se analisados por pessoas de formação intelectual ‘superior’ – e, só por isso, já dariam ensejo à compensação moral quando envolvessem uma dessas pessoas…”[v]

Não se quer dizer, contudo, que o humor é uma excludente de ilicitude, de modo a permitir que o uso da palavra na forma de humor não possa resvalar numa ilegalidade. Dependendo das circunstâncias, poderá haver ofensa ou qualquer outra violação a direitos. Mas toda interpretação nas questões que envolvem o humor devem ser por demais elásticas, na medida em que é da essência da "caricatura, da sátira e da farsa operarem mediante deformações hiperbólicas da realidade, residindo nesse exagero ou distanciamento dramático em relação ao real, que pode ser tanto dos eventos históricos-sociais, como das pessoas ou das coisas o fator específico da identidade dessas formas de criação artística e da sua comicidade mesma, cujas manifestações, neste caso, constituem o elemento alegórico de uma crítica severa, mas justa, inspirada por motivo de grande valor social" (Cesar Peluso, ADI 4.451).

A elasticidade para a interpretação do humor deve levar em consideração as pessoas, os fatos e as circunstâncias objeto da graça. Da mesma forma que para uma crítica jornalística em que os atores da vida pública devem tolerar mais as notícias, o mesmo deve acontecer para o humor.

Nos tempos atuais há, sem dúvida alguma, uma suscetibilidade exagerada, em que uma crítica ou uma sátira mais cáustica provocam toda sorte de intolerância, como a que motivou o deputado Marco Feliciano a representar o site Porta dos Fundos por conta da esquete intitulada Especial de Natal, bem como contribuiu — além evidentemente de um radicalismo religioso —, para o atentado ao jornal francês Charlie Hebdo.

É fácil defender a liberdade de expressão, a Democracia, quando temos de apenas concordar com o direito que entendemos como certo. Na medida em que somos objeto dessa liberdade, agimos como tiranos contra a nossa própria conquista. Como escreveu o articulista da Folha de S. Paulo, Contardo Caligaris, "a liberdade do vizinho (sobretudo se ele for muito diferente de mim) é sempre a melhor garantia da minha própria liberdade."


[i] Mill, John Stuart. A liberdade: Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000

[ii] Conf. Bremmer, Jan e Roodengurg, Herman. Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000, p. p. 17

[iii] Bobbio, Norberto. O futuro da democracia;

[iv] Tocqueville, Alexis de. La Democracia en América

[v] RESP 736.015

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  • Brave

    é sócio titular do escritório Fidalgo Advogados, doutorando em Direito Constitucional na USP; mestre em Processo Civil pela PUC-SP; especializado em Direito da Comunicação e Direito Penal.

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