"Lava jato"

Especialistas criticam vazamento de conversa entre cliente e advogado

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25 de fevereiro de 2015, 6h50

“Você está com o mandado na mão para ver o número do processo?”. “Cara, eu estou no banheiro, te ligo em seguida.” Não se sabe como curtos diálogos como esse podem ajudar nas investigações da chamada operação “lava jato”, mas a gravação de conversas entre Renato Duque, ex-diretor de Serviços da Petrobras, e o advogado Renato de Morais foram vazadas à imprensa e divulgadas nesta terça-feira (24/2) no blog do jornalista Fausto Macedo, do Estado de S. Paulo.

Criminalistas que atuam no caso e especialistas ouvidos pela revista Consultor Jurídico consideram o vazamento grave, pois viola o sigilo entre cliente e advogado. “Assim abrimos espaço para quebrar direitos em todos os outros casos. Todos podemos um dia precisar de um advogado, assim como nossas conversas com médicos também são sigilosas. O necessário combate à criminalidade não pode atingir direitos e garantias fundamentais”, afirma Augusto Botelho, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).

Botelho também cobra providências. “Enquanto as autoridades não começarem a investigar e punir, minuciosamente, a origem e autoria desses vazamentos criminosos, práticas desse jaez serão cometidas cada vez mais, visto que sempre terminam impunes”, diz ele.

Nelson Jr./SCO/STF
O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini (foto) classificou o episódio como exemplo de "profundo desrespeito à intimidade às instituições, porque coloca em xeque a credibilidade de todo o sistema de Justiça". "Isso precisa ser apurado e identificado. Não vou atribuir culpas e responsabilidades. É profundamente temerário que isso aconteça. O sigilo não é respeitado no Brasil e isso nos coloca numa posição de institucionalidade abaixo de outros países", avaliou.

Ele afirma que, quando o alvo de um grampo contata seu advogado, o agente policial nem sempre vai deixar de gravar o diálogo, mas não pode utilizá-lo como prova nem divulgá-lo. Posição semelhante é adotada pelo advogado Marcelo Feller, do Feller|Pacífico Advogados, que considera o caso “uma afronta ao Estado Democrático de Direito“.

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Para Feller (foto), é natural  que, quando uma pessoa tem seus telefones interceptados, as conversas que ela mantém com seu advogado também sejam gravadas. “No entanto, assim que a polícia percebe tratar-se de conversa entre advogado e cliente — protegida pelo sigilo — deve informar o juiz e pedir permissão para destruir essas conversas”, explica.

Nelson Jr./SCO/STF
O advogado Marcelo Leonardo (foto), que defende um executivo da empreiteira Mendes Júnior, afirma que a autoridade policial deveria descartar gravações como essa e “jamais mantê-la na documentação física ou eletrônica anexa ao inquérito”. Se isso ocorrer, cabe ao juiz determinar a destruição do conteúdo, afirma.

"O que me indigna muito é o vazamento de tudo isso. Sob o pretexto de dar publicidade aos fatos para dar uma satisfação à sociedade, as autoridades estão deixando tudo vir à tona", diz a advogada Maíra Salomi.

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Fabio Tofic Simantob (foto) classifica o vazamento de tais conteúdos como "um absurdo" e contabiliza essa como mais uma ilegalidade do caso. "Primeiro, porque interceptação não é para dar maior sucesso a mandado prisão, que é a forma como foi usada neste caso. Segundo, a conversa com o advogado não pode ser escutada, muito menos juntada aos autos".

Eduardo Sanz, que representa João Procópio de Almeida Prado, acusado de operar contas do doleiro Alberto Youssef no exterior, avalia que a divulgação dos diálogos não chega a fundamentar pedidos de anulação do processo, mas demonstra irregularidades cometidas durante a investigação.

Wikimedia Commons
“Hoje temos a Constituição mais democrática do mundo — e isso é incontestável — e temos de conviver dia a dia com a quebra das garantias mínimas”, declara o professor e jurista Lenio Luiz Streck (foto). “Chegou o dia em que nem o advogado do réu (ou indiciado) está livre do Big Brother. Tudo se ouve na República. Não há mais segredos. Penso que, com o tempo, poderemos comprar pacotes de conteúdos de escutas. Um combo, por exemplo, pode ser: pague para ouvir a conversa dos réus uns com os outros e ganhe de brinde a conversa do advogado com o réu”.

Streck cobra que encarregados de zelar pela cidadania investiguem vazamentos como esse. “Onde está o número do protocolo do pedido de indiciamento de quem vazou esse tipo de coisa?”

O advogado Celso Vilardi, criminalista que defende executivos da Camargo Corrêa, reclama que a Ordem dos Advogados do Brasil deveria tomar uma atitude em relação à essa ofensa às prerrogativas dos advogados.

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O criminalista Alberto Zacharias Toron (foto), advogado da empreiteira UTC, explica que o a lei de interceptações telefônicas garante o sigilo da conversa entre o advogado e seu cliente — algo que também deve ser decretado pelo juiz, além da proteção dada pelo Estatuto da Advocacia.

Entretanto, continua Toron, tanto a lei quanto o decreto são ignorados quando tais conversas são divulgadas, com o pretexto de “vazamento”, para se criar uma “figura monstruosa do crime e do criminoso”. “A sociedade fica impactada e tudo se legitima em nome do combate à impunidade. Aliás, ditos vazamentos não tem nada de casual ou acidental. São dirigidos e pensados para provocar o que um jurista italiano chamou de consenso extra-processual e legitimar a repressão, ainda que fora do figurino legal”, diz.

Toron ainda cita o caso do juiz espanhol Baltasar Garzon, que foi inabilitado por 10 anos pelo Tribunal Supremo da Espanha por determinar a escuta da conversa entre os advogados e seus clientes nos parlatórios.

Prisão irregular
O ex-diretor da Petrobras Renato Duque é acusado de estar envolvido na fraude de contratos da empresa. Ele foi preso em novembro de 2014, na mesma operação que levou à prisão executivos de empreiteiras, mas está solto por decisão do Supremo Tribunal Federal. A 2ª Turma da corte avaliou que a restrição da liberdade, no caso dele, foi irregular, por ter sido decretada com base na presunção de fuga.

Em 2014, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concluiu que, se o monitoramento dos aparelhos de um suspeito foi autorizado pela Justiça, a interceptação de todas as conversas feitas através daqueles telefones é legal.

Mas a decisão não traz legalidade a este tipo de violação de prerrogativa, afirma o criminalista Guilherme San Juan Araujo, sócio do escritório San Juan Araujo Advogados. A pena para a violação do artigo 10 da Lei de Interceptações Telefônicas, varia de 2 a 4 anos de reclusão, aponta. "Logicamente que o jornalista que noticia a informação sigilosa não pode ser autor do crime, pois goza da prerrogativa de sigilo da fonte", pondera.

* Texto atualizado às 14h do dia 25/2/2015 para acréscimo de informações.

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