Lex Specialis

Conflito entre as leis de falências e de locações: como resolver?

Autor

  • Mário Luiz Delgado

    é advogado parecerista professor do programa de mestrado e doutorado da Fadisp presidente da Comissão de Direito de Família e das Sucessões do Iasp presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM doutor em Direito Civil pela USP e mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP.

23 de fevereiro de 2015, 9h25

Em erudito e exauriente artigo sobre o tema, recentemente publicado pela revista Consultor Jurídico, o professor e amigo Rodrigo Xavier Leonardo expõe opinião doutrinária a favor da prevalência do parágrafo 2º do artigo 114 da Lei 11.101/2005[1] sobre o artigo 8º da Lei 8.245/1991[2], em ocorrendo a alienação, em hasta pública,  de imóvel previamente locado pela massa falida, com “cláusula de vigência”, em contrato averbado na matrícula do imóvel. Nas palavras do autor, deve predominar, nesses casos, o interesse do adquirente de eventual rompimento do contrato, imissão na posse e amplo exercício da propriedade sobre o  interesse do locatário em manter a locação.

Peço vênia para discordar e manifestar o entendimento oposto, ou seja, pela  prevalência da Lei do Inquilinato. E explico.

Não há como negar o conflito normativo entre as regras falimentar e inquilinaria acima mencionadas[3], pois uma permite a “rescisão” do contrato de locação quando o bem for alienado em hasta pública, enquanto a outra, em qualquer hipótese de alienação, proíbe a “denúncia” do contrato pelo adquirente, nas situações em que especifica. Ocorre o conflito entre duas regras sempre que dois enunciados normativos, por absoluta incompatibilidade, estiverem impedidos de conviver em um mesmo sistema normativo, o qual somente pode considerar um deles como válido, impondo a extirpação do outro.

Se uma norma considera permitida uma dada conduta e outra norma considera uma idêntica conduta proibida, somente uma delas poderá ser considerada válida. Uma mesma conduta não pode ser simultaneamente tanto proibida, como permitida. É sobre isso que estamos a discorrer.

A solução para essa contradição encontra-se prevista no próprio sistema. Se falarmos de um sistema hierarquizado, onde as proposições prescritivas estão situadas em diferentes níveis, a proposição superior elimina a proposição contraditória de menor nível. Uma regra constitucional vai prevalecer sobre uma regra ordinária, da mesma forma que a regra veiculada através de um decreto vai se sobrepor àquela constante de uma portaria. Esse seria um dos critérios hermenêuticos mais usuais, conhecido como o critério hierárquico, sintetizado no brocardo lex superior derogat legi inferiori.

Mas pode ocorrer que ambas as regras em conflito estejam situadas em um mesmo plano hierárquico. Aqui o critério anterior não seria eficaz. Deve, então, o intérprete procurar saber qual das duas normas contraditórias foi editada por último, sabendo que existe dentro do sistema um critério aplicável à hipótese de sucessão temporal, segundo o qual a norma posterior revoga a anterior. É o critério cronológico, ou seja, lex posterior derogat legi priori.

Finalmente existe a hipótese em que as duas normas contraditórias situam-se em um mesmo plano hierárquico e foram editadas na mesma data, não se podendo aplicar nenhum dos critérios anteriores. Aqui o intérprete deve verificar se uma das duas normas ostenta o caráter de norma especial em relação à outra. No conflito entre uma norma geral e uma norma especial, esta deve prevalecer, aplicando-se o critério da especialidade ou lex specialis derogat legi generali.

Distinção importante a ser feita entre a aplicação dos três critérios é a seguinte: no confronto entre uma lei geral e uma lei especial, prevalece a lei especial, sem necessidade de se declarar a invalidade da lei geral. Em outros termos, enquanto a aplicação dos critérios cronológico e hierárquico conduzem, necessariamente, à invalidação de uma das normas (ou a anterior ou a inferior), através da aplicação do critério da lex specialis, ambas as normas permanecem no sistema, sendo que a aplicação da lei especial se sobrepõe à da lei geral.

Em todas as situações mencionadas acima podemos constatar que o suposto conflito seria facilmente resolvido pela aplicação de um dos três critérios. Por isso dizemos que estamos diante de um falso conflito, uma “antinomia aparente”, já previamente solucionada pelo sistema. Em outros termos: a solução do conflito, no sentido de se decidir qual das duas regras será considerada válida (ou aplicável) e, portanto, pertencente àquele sistema, já foi antecipada. Se já sabemos, de antemão, pela aplicação de um dos três critérios, qual das regras prevalecerá, diremos que estamos diante de um falso conflito, porquanto um conflito previamente solucionado ou solucionável.

O verdadeiro conflito normativo e que a doutrina denomina de “antinomia jurídica própria[4] se dá quando não for possível se saber, a priori, pelo recurso aos critérios hermenêuticos tradicionais (lex posterior, lex superior, lex specialis) qual das normas conflitantes deve ser empregada no caso singular. A impossibilidade de aplicação de quaisquer desses critérios deixa o intérprete numa posição insustentável, pois ele não tem saída[5].

São duas as razões que ensejam a ocorrência de uma antinomia própria: a contradição de critérios e a ausência de critérios.

O conflito aqui discutido se insere no primeiro grupo (contradição de critérios) e ocorre, por exemplo, quando uma norma superior anterior entra em conflito com uma norma posterior inferior, onde, pelo critério hierárquico, prevaleceria a primeira e, pelo critério cronológico, prevaleceria a segunda. Ou ainda pode ocorrer de uma lei especial anterior entrar em contradição com uma lei geral posterior, caracterizando um conflito entre o critério da especialidade e o critério cronológico.

Em se tratando de antinomias jurídicas próprias ou antinomias reais, a doutrina concebeu outros critérios de solução, os chamados metacritérios. Havendo conflito entre os critérios cronológico e hierárquico, aplicar-se-ia a meta-regra de que lex posteriori inferiori non derogat priori superiori, enquanto no conflito entre os critérios cronológico e da especialidade, a solução de daria através da meta-regra lex posteriori generalis non derogat priori speciali[6].

Essa é justamente a hipótese que nos interessa. A solução para o conflito entre a Lei de Falências e a Lei de Locações, especificamente no que tange à vigência do contrato de locação nos casos de alienação judicial do imóvel locado, se dá mediante a aplicação da meta-regra lex posteriori generalis non derogat priori speciali , o que equivale dizer, em outras palavras, que a lei especial posterior derroga a lei geral anterior e a lei geral posterior não derroga a lei especial anterior.

Resta responder a seguinte questão: qual é a lei especial no caso, a falimentar ou a inquilinária?

Segundo Francisco Amaral, “normas comuns ou gerais são as que se aplicam a um determinado sistema de relações, como as de direito civil. Normas especiais são as que se aplicam a certas relações jurídicas de direito comum, regulando-as diversamente, como ocorre com as de direito do consumidor, ou da previdência social. O direito especial afasta-se das regras de direito comum e destina-se a classes especiais de pessoas, coisas e relações. Enquanto o direito comum destina-se a regular a realidade jurídica e social considerada em sua totalidade, o direito especial forma-se de normas que se destinam a determinadas relações. (…) Direito comum e direito especial não são contrários. Este desenvolve os princípios daquele, sendo o direito comum supletivo do especial. O direito civil é o direito privado comum, supletivo da legislação civil complementar.”[7]

Inexistem diferenças formais entre leis gerais e leis especiais. Na verdade o conceito de norma especial é um resultado da interpretação. Em outras palavras, o atributo da especialidade é compatível com qualquer tipo de norma. É o intérprete, diante de cada situação concreta, quem vai dizer se uma norma é geral ou especial. Num mesmo corpo normativo, podemos encontrar as duas categorias. Assim, dentro do próprio Código Civil podemos identificar determinados dispositivos que são especiais em relação a outros. A divisão entre Parte Geral e Parte Especial denota bem essa situação.

Algumas leis esparsas são especiais ou gerais a depender do referencial normativo. A Lei das Sociedades Anônimas, por exemplo, é especial em relação ao Código Civil, cuja incidência às companhias se dará apenas nos casos omissos. Mas a mesma lei será geral em relação à Lei 11.101/2005 sempre que uma sociedade anônima se submeter à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial ou à falência.

No que diz respeito ao fulcro da nossa discussão, a Lei de Falências não pode ser apriorísticamente considerada lei especial em relação à Lei de Locações. Ambos os diplomas possuem notas de especialidade e de generalidade em relação às demais regras do sistema, especialmente àquelas previstas no  Código Civil.

A Lei 11.101/2005 disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, com foco na habilitação dos créditos, na realização do ativo e no pagamento dos credores. A falência é uma forma de organizar o pagamento das dívidas de quem não tem mais condições de pagar. A própria lei afirma que ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, a falência visa a preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa, atendendo sempre aos princípios da celeridade e da economia processual.

A Lei 8.245/1991, por sua vez, dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e todos os procedimentos a elas pertinentes. A disciplina das locações urbanas, portanto, está contida nesta e não naquela. A lei especial dos contratos de locação de imóvel urbano é a 8.245 e não a 11.101.

Em conclusão, penso que o parágrafo 2º do artigo 114 da Lei 11.101/2005 pode ser considerado uma norma especial em relação a todo e qualquer contrato referente aos bens da massa falida, com exceção daqueles regidos por lei especial, como sói acontecer com os contratos de locação da Lei 8.245/1991 . Quanto a esses contratos, a lei especial é a inquilinária e não a falimentar. E, portanto, ainda que  o contrato de locação tenha sido celebrado na vigência da Lei 11.101/2005 e o imóvel venha a ser alienado no curso de execução falimentar, aplica-se o disposto no artigo 8º da Lei 8.245/91 e o locatário poderá invocar, contra o adquirente do imóvel,  a manutenção da locação desde que presente a  “cláusula de vigência em caso de alienação” e o contrato esteja averbado na matrícula do imóvel.


[1]   Art. 114. O administrador judicial poderá alugar ou celebrar outro contrato referente aos bens da massa falida, com o objetivo de produzir renda para a massa falida, mediante autorização do Comitê. § 1o O contrato disposto no caput deste artigo não gera direito de preferência na compra e não pode importar disposição total ou parcial dos bens. § 2o O bem objeto da contratação poderá ser alienado a qualquer tempo, independentemente do prazo contratado, rescindindo-se, sem direito a multa, o contrato realizado, salvo se houver anuência do adquirente.

[2]  Art. 8º Se o imóvel for alienado durante a locação, o adquirente poderá denunciar o contrato, com o prazo de noventa dias para a desocupação, salvo se a locação for por tempo determinado e o contrato contiver cláusula de vigência em caso de alienação e estiver averbado junto à matrícula do imóvel.  § 1º Idêntico direito terá o promissário comprador e o promissário cessionário, em caráter irrevogável, com imissão na posse do imóvel e título registrado junto à matrícula do mesmo.§ 2º A denúncia deverá ser exercitada no prazo de noventa dias contados do registro da venda ou do compromisso, presumindo – se, após esse prazo, a concordância na manutenção da locação.

[3] Com relação ao §1º do art. 114 da Lei nº 11.101 não existe conflito, pois o direito de preferência  também encontra óbice legal no art. 32 da Lei n. 8.245/91, uma vez que se trata a hipótese de venda judicial de bem imóvel: "Art. 32. O direito de preferência não alcança os casos de perda da propriedade ou venda por decisão judicial, permuta, doação, integralização de capital, cisão, fusão e incorporação".

 

[4]Expressão usada por Eros Grau (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 189). Maria Helena Diniz, por sua vez, prefere a expressão “antinomia de segundo grau”, por envolver antinomia entre os critérios (Cf. Conflito de normas  5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 49).

[5]Cf. FERRAZ Jr. Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 2003, p.211.

[6]A aplicação dos metacritérios não se dará de forma automática, muito menos de modo absoluto, havendo sempre necessidade de contextualização no caso concreto. A meta-regra de que a lei geral posterior não revoga a lei especial anterior nem sempre será eficaz para a solução do conflito in concreto. Existem casos em que vai ocorrer exatamente o contrário. É o que se dá, por exemplo, quando a lei geral posterior declara expressamente a revogação da lei especial anterior, quer no todo (ab-rogação) ou em parte (derrogação);  ou quando vem modificar  ou regular,  de forma diferente,  a matéria antes disposta na lei especial. Ocorrerá, nesses casos, a  revogação tácita da lei especial pela lei geral, a teor do que dispõe o §  1º do art. 2º da LICC. (A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior).

[7] AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 81-82.

Autores

  • é advogado. Diretor de Assuntos Legislativos do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Doutor em Direito (USP). Professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP).

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