Condenação desproporcional

Acórdão da AP 470, o processo do mensalão, está permeado de contradições

Autor

  • José Carlos Dias

    é advogado criminalista. Foi integrante da Comissão Nacional da Verdade secretário da Justiça de São Paulo (governo Montoro) e ministro da Justiça (governo FHC)

22 de fevereiro de 2015, 11h58

[Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo deste domingo (22/2) com o título "O desabafo de um advogado"]

Qualifico-me, de imediato, como um advogado perplexo com a injusta condenação de minha cliente Kátia Rabello, ex-presidente do Banco Rural, pelo Supremo Tribunal Federal, a 14 anos e cinco meses de reclusão, na ação penal 470, apelidada de "mensalão", em absoluta disparidade com outras penas impostas a corréus do mesmo processo.

Igual punição recebeu o vice-presidente do mesmo banco, José Roberto Salgado, defendido pelo grande advogado Márcio Thomaz Bastos, que nos deixou tantas lições de vida e de ética.

Tenho a convicção de que o Supremo Tribunal Federal cometeu um grave erro judiciário. Tecnicamente foi um julgamento marcado por incongruências e distorções, que redundou no encarceramento de pessoa responsabilizada por inadequada aplicação da teoria do domínio do fato, condenada por responsabilidade objetiva.

O acórdão está permeado de contradições, os mesmos fatos são ora enquadrados como gestão fraudulenta, ora como lavagem de dinheiro, ora como evasão de divisas. Também a dosimetria da pena está em absoluta desconformidade com a jurisprudência nacional e do próprio Supremo, desconsiderando, entre outras questões, os bons antecedentes de Kátia.

Não discuto a adequação da decisão em relação aos políticos, mas salta aos olhos a sua desproporcionalidade. A balança da Justiça não se mostrou equilibrada e há mais de um ano Kátia Rabello está trancafiada em regime fechado em um presídio em Belo Horizonte.

Indignado, sinto ser imperioso tornar público este desabafo. Muitos dirão que o advogado nunca deve se indispor com a mais importante corte do país, perante a qual postula por outros clientes. Eu não penso dessa forma.

Como ficar em silêncio se estou convencido de que os senhores ministros erraram em prejuízo de uma cidadã que foi equiparada a delinquente perigosa, do mesmo jaez de uma latrocida, de autora de homicídio hediondo?

Como silenciar vendo nos jornais que todos os políticos condenados no referido processo já estão em regime semiaberto ou em prisão domiciliar, enquanto minha cliente permanece em regime fechado? Acaso Kátia Rabello oferece maior risco à sociedade do que políticos acoimados de corruptos?

Ainda que admitida sua culpa, a punição mais adequada seria a restrição de direitos, a prestação de serviços à comunidade.

A prisão deve ser sempre o último recurso do direito penal, por produzir sequelas irreparáveis e constituir ultraje aos direitos fundamentais da pessoa humana.

Apesar disso, e da dramática situação prisional do país, continua a ser a punição reiteradamente aplicada por nossas cortes, o que nos leva hoje a ostentar a terceira maior população carcerária do mundo conforme dados do Centro Internacional de Estudos Prisionais do King's College, de Londres.

Valendo-me do meu direito e do meu dever de utilizar a liberdade de expressão como instrumento de reparação a uma cidadã por quem tenho muito respeito, consigno este meu gesto de desagravo.

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