Inquéritos em queda

"Atividade investigatória da Polícia não tem a eficiência necessária"

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22 de fevereiro de 2015, 9h08

Spacca
No último dia 23 de janeiro, Marfan Martins Vieira assumiu, pela quarta vez — segunda consecutiva — o comando do Ministério Público do Rio de Janeiro. Ele está diante de um grande desafio: identificar e resolver as causas da queda no número de investigações no estado. Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, o procurador-geral de Justiça explica que a maior parte das denúncias apresentadas pelo MP-RJ às varas criminais têm se limitado a casos de violência doméstica. Isso chama a atenção, principalmente por se tratar de uma cidade conhecida pelos altos índices de violência.

“Hoje as denúncias acontecem ou por força de prisões em flagrante ou naqueles casos em que decorrem de operações como as que são feitas pelo Gaeco [Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do MP-RJ]. A atividade do dia a dia é muito lenta. O número de denúncias é muito pequeno. Uma grande concentração delas hoje está nos fatos relacionados à violência doméstica e familiar contra a mulher”, revela.

Segundo explica o procurador, sem denúncias não há processo penal. E a consequência dessa equação tem sido a pior possível. Pois em razão da queda do número de ações, o Tribunal de Justiça do Rio decidiu extinguir varas criminais.

Para Vieira, a origem dos problemas está nos inquéritos conduzidos pela Polícia, que dão base ao trabalho do MP e que também registraram queda. Uma solução sugerida pelo procurador, para tentar reverter a situação, é intensificar o controle sobre a atividade policial.

Na avaliação do chefe do MP-RJ, a Polícia não vai reclamar. “Acredito que o interesse da polícia seja convergente com o do Ministério Público. Estamos caminhando no mesmo sentido”.

Marfan Vieira conduzirá a instituição até 2017 e promete investimentos na estrutura física e a organização de concursos públicos para preencher o incompleto quadro de servidores.

O procurador-geral de Justiça do Rio fala também sobre a política de pacificação nas comunidades cariocas, da relação do MP-RJ com os advogados e sobre a crítica à instituição quanto a um uso abusivo da delação premiada nas operações deflagradas pela Polícia Federal recentemente e que envolvem corrupção.

Leia a entrevista:

ConJur — Esse é o seu quarto mandato à frente do Ministério Público do Rio de Janeiro. Quais são os seus planos para instituição?
Marfan Vieira —
Os planos continuam os mesmos, desde o primeiro mandato. Os planos são de fortalecimento, de dar aos promotores e procuradores de Justiça, que estão exercendo o papel que a Constituição e as leis conferem ao Ministério Público, a estrutura e o apoio necessário para que possam cumprir, com efetividade e estrutura, o trabalho que foi conferido a eles. Acho que o papel do gestor do Ministério Público é exatamente o de dotar a instituição, especialmente no que concerne à atividade fim, de recursos materiais e humanos necessários para que ela possa cumprir bem o papel que lhe foi reservado pela Constituição e pelas leis. Vamos continuar com as ações que tenham por objetivo melhorar o exercício da atividade-fim. Vamos fazer, por exemplo, ainda nesse ano, um grande concurso público para servidores, para os cargos de técnico de procuradoria, técnico de notificação e analista processual. O papel do procurador-geral de Justiça e do seu staff é o de caminhar para que o Ministério Público possa cumprir seu papel e exercer com eficiência e com eficácia sua atividade fim, correspondendo aos anseios da sociedade.

ConJur — Qual é hoje o maior desafio do Ministério Público do Rio?
Marfan Vieira —
Acho que o maior desafio hoje está na área da investigação penal. Esse é um tema que vamos enfrentar em curto prazo. Aconteceu recentemente um fato, que estamos usando como mote, para rever a questão da investigação penal. É visível que vivemos um momento de insegurança pública. O Rio de Janeiro tem vivido períodos de certa tranquilidade nos últimos anos, mas ultimamente houve um recrudescimento da violência e da criminalidade. Os índices estão subindo a patamares inaceitáveis. E paralelamente a isso, o que temos percebido é certa paralisia na atividade investigatória. Há um movimento no Judiciário, inclusive, que vai à contramão, que é a extinção de varas criminais. O Judiciário local está extinguindo varas criminais como se nós estivéssemos vivendo na Suíça, como se a criminalidade aqui estivesse sobre controle, quando, na verdade, o fenômeno que ocorre é exatamente o oposto. Qual seria a razão de o Judiciário estar extinguindo varas criminais em razão do número insuficiente de ações penais, se a criminalidade é tão crescente no estado? Obviamente que há um elo da corrente que não está funcionando bem. Se formos verificar tudo isso, vamos constatar que é exatamente a investigação penal que não se faz hoje de maneira efetiva e adequada.

ConJur — Houve queda no número de denúncias apresentadas?
Marfan Vieira —
O número de denúncias é cada vez menor. Hoje as denúncias acontecem ou por força de prisões em flagrante ou naqueles casos em que decorrem de operações como as que são feitas pelo Gaeco [Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do MP-RJ]. A atividade do dia a dia é muito lenta. O número de denúncias é muito pequeno. Uma grande concentração delas hoje está nos fatos relacionados à violência doméstica e familiar contra a mulher. Os grandes crimes, como os homicídios e roubos, que são praticados mediante violência ou grave ameaça, continuam tendo uma investigação muito deficiente.

ConJur — A que se deve isso?
Marfan Vieira —
Estamos fazendo essa diagnose. Criamos uma comissão, que é presidida por Antônio Carlos Biscaia, que foi o idealizador, no início dos anos 1990, das centrais de inquérito, que são hoje o organismo do Ministério Público incumbido de investigar os crimes e responsabilizar os seus autores ao oferecer denúncia e incumbir um promotor para acompanhá-la depois que é distribuída a uma vara criminal. As centrais de inquérito, que são preenchidas por promotores de investigação penal, têm por finalidade a investigação de crimes em conjunto com a Polícia e a posterior responsabilização do autor do delito perante o juízo competente. Hoje os números são decrescentes. Estão acontecendo em volume tão baixo que já há algumas varas criminais sendo extintas porque o número de ações penais, segundo as estatísticas do Judiciário, não seria suficiente para manter a vara em funcionamento. Então, alguma coisa está errada e nós detectamos que essa falha se identifica exatamente na atividade investigatória. E essa não é uma tarefa do Ministério Público. O Ministério Público até investiga excepcionalmente, quem acompanhou o movimento da PEC 37 [Proposta de Emenda Constitucional 37, que, se aprovada, garantiria à polícia a exclusividade da investigação penal] sabe que nós lutamos para também poder investigar, mas essa não é a atividade precípua do Ministério Público. É uma atividade subsidiária. O MP investiga em situações especialíssimas.

ConJur — A deficiência está na Polícia?
Marfan Vieira —
A atividade investigatória no sistema constitucional brasileiro compete à Polícia Judiciária. No caso do estado do Rio de Janeiro, à Polícia Civil do estado. Identificamos que a atividade investigatória da Polícia não tem a eficiência necessária para produzir o número de ações penais que é preciso e isso gera uma consequência terrível, que é a impunidade. A impunidade é mola para novos crimes. Se o crime não traz consequência nenhuma, se não há resposta do Estado à atividade criminosa, isso funciona como estímulo para que ela recrudesça. E é o que está acontecendo: o recrudescimento da criminalidade, exatamente pela sensação de impunidade. Isso não pode passar ao largo das preocupações do Ministério Público. Temos que ter uma atitude efetiva com relação a isso. Então, como o Supremo Tribunal Federal decidiu recentemente, no segundo semestre do ano passado, que os inquéritos policiais devem necessariamente voltar a tramitar pelo juízo — ou seja, eles devem ter um juiz para acompanhá-los. Estamos em interação com o Poder Judiciário e também com a chefia de Polícia para redesenhar a tramitação do inquérito e tentar estimular a atividade investigatória. O Ministério Público tem uma função constitucional muito importante, que é a de exercer o controle externo da atividade policial. O exercício do controle externo da atividade policial é também um instrumento poderoso para otimizar a investigação penal. Só que, na prática, o Ministério Público não tem feito, ao longo desses anos, já que essa competência surgiu com a Constituição de 1988. Então, qual foi a ideia que concebemos a partir dos trabalhos capitaneados pelo procurador Antonio Carlos Biscaia? Criar um grupo de atuação funcional incumbido de promover a tutela coletiva da segurança pública.

ConJur — O que esse grupo fará?
Marfan Vieira — O grupo terá uma função dupla: concentrará a tutela coletiva da segurança pública e o controle externo da atividade policial, que já é feito de maneira pulverizada. Criando e bem dimensionando esse grupo, com pessoas que tenham perfil para exercer as duas funções, uma na área cível, outra na área penal, vamos, através da atividade de tutela, promover a otimização da questão da segurança pública. No aspecto criminal, vamos continuar, de forma incrementada, também por um grupo que terá exclusivamente essa finalidade, promover o controle externo da atividade policial, verificando onde estão os gargalos e as dificuldades para que a dificuldade investigatória se realize de forma plena e que os crimes sejam solvidos e encaminhados ao Ministério Público para que este possa, através da ação penal, responsabilizar os autores e chegar à punição deles.

ConJur — O senhor não acha que a polícia pode reclamar?
Marfan Vieira —
Acredito que o interesse da polícia seja convergente com o do Ministério Público. Estamos caminhando no mesmo sentido. Obviamente pela atividade investigatória, quando se pratica um crime, o primeiro ator do Estado a ser chamado é a polícia, porque a ela incumbe reunir os elementos sensíveis deixados pelo crime e encaminhar tudo isso a um segundo ator, que é o Ministério Público que, de posse daqueles elementos sensíveis, vai denunciar os autores do crime para que sofram a ação correspondente à infração penal que cometeram. O Ministério Público, portanto, depende inteiramente da atividade investigatória eficiente da polícia para também poder cumprir com eficiência e eficácia o seu papel. Então, somos os maiores interessados em ver a polícia trabalhando de maneira a produzir um trabalho que viabilize a ação do Ministério Público e não gere essa consequência desastrosa, que é a extinção de varas criminais por falta de denúncia e ação penal. Isso é um absurdo.

ConJur — As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) mudaram a questão da segurança pública no Rio de Janeiro, no entanto, temos observado várias ameaças a esse modelo. E diante da diminuição dos processos criminais, pode-se concluir que as facções criminosas estão se fortalecendo?
Marfan Vieira —
Obviamente que a política da pacificação nos morros é bem sucedida. Isso é um fato inquestionável. Mas, para ter eficácia, para não sofrer esses revezes, avanços e recuos, é preciso que seja acompanhada de outras políticas. O Ministério Público tem um trabalho primoroso em que sugere a assinatura de um termo de ajuste de conduta entre o MP e o Poder Executivo para a implementação de determinadas políticas que são complementares à política de pacificação. Isso tudo está dentro da ideia inicial de criarmos o grupo de tutela que terá por finalidade específica a participação mais efetiva na formulação de políticas pública relacionadas à segurança pública.

ConJur — Verificamos entre os criminalistas uma discussão sobre o chamado Direito Penal do Inimigo. Na sua avaliação, o Brasil está caminhando para essa vertente?
Marfan Vieira —
Acho isso uma distorção. Evidentemente, vivemos num país democrático, que preza pelas liberdades individuais, que tem logo no seu frontispício constitucional, lá nos primeiros artigos da Constituição, um rol enorme de direitos humanos e fundamentais que precisam ser preservados; dentre os quais os direitos do indivíduo que responde ao processo criminal à presunção de inocência e ao devido processo legal. Acho que o papel do Ministério Público às vezes é confundido, como se fosse algoz do indivíduo que responde a uma ação penal, o que não é verdade. O Ministério Público é uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do estado. Incumbe a ele, Ministério Público, à defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos individuais, sociais e individuais indisponíveis. Então, o Ministério Público é o organismo que tem por finalidade defender o regime democrático. Defender a democracia significa defender tudo o que está materializado na nossa Constituição, como os direitos humanos. É tarefa do Ministério Público defender os interesses sociais. E nesse cotejo entre o que é interesse da sociedade e o que é interesse do indivíduo, às vezes, pode caracterizar um aparente conflito. Conflito só aparente, porque, na verdade, não existe. O interesse social e o interesse individual têm de ser preservados de igual maneira. Então, o Ministério Público, ao contrário, tem como papel a defesa desses interesses. Não acho que a política do "prendo e arrebento" ou do "bandido bom é bandido morto", coisas desse tipo, sejam políticas que devam prevalecer num Estado democrático. O Ministério Público é frontalmente contra isso. Acho que todas as pessoas, por mais bárbaro que seja o crime que venham a cometer, são destinatárias das mesmas regras constitucionais que garantem a ampla defesa, o devido processo legal e a presunção de inocência. E esse é o nosso papel: preservar esses direitos e garantir às pessoas que respondem a um processo criminal a prevalência deles enquanto durar o processo. E mesmo depois, obviamente se condenado.

ConJur — Tendo por base essa imagem de algoz do Ministério Público, como o senhor diria que é a relação com os advogados?
Marfan Vieira —
A relação com os advogados, de um modo geral, é boa. Agora temos alguns movimentos no Direito Penal que são rotulados de libertários e garantistas. Às vezes, na visão de alguns membros do Ministério Público, essa visão libertária e excessivamente garantista tem um significado de prevalência dos interesses do réu sobre os interesses da sociedade. Acho que isso é uma questão de visão, a meu ver, inadequada do Direito Penal. Como eu disse anteriormente, os direitos da sociedade e do réu têm que coexistir. Incumbe ao Ministério Público velar tanto por um quanto por outro, harmonizando esses interesses que, em determinados momentos, podem aparentemente estar em rota de colisão.

ConJur — Há limites ao direito de defesa?
Marfan Vieira —
Claro que há.

ConJur — Como deveria ser, na sua avaliação o papel do advogado? Deveria haver uma limitação?
Marfan Vieira —
O advogado deve agir com total liberdade na defesa dos interesses do seu cliente e o próprio Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil garante isso. Mas o conflito sempre haverá. O conflito decorre do embate, pois no momento em que o Ministério Público imputa determinado crime a alguém e se propõe a produzir prova no sentido da condenação, ele estará em rota de colisão com o advogado, que pretende exculpar o seu cliente daquela responsabilidade e vai, obviamente, defender tese no sentido contrário. Isso se materializa de maneira muito evidente e muito clara no tribunal do júri, em que o promotor faz a acusação e o advogado faz a defesa, mas cada um está cumprindo o seu papel. Acho que, do ponto de vista funcional, é assim mesmo que as coisas acontecem. Do ponto de vista ideológico, não se pode associar o Ministério Público a uma posição de truculento, de antidemocrático, e [apontar] o advogado como o libertário e garantidor dos direitos fundamentais. Isso, na realidade, não existe.

ConJur — Com relação a atuação do Ministério Público, existe uma crítica quanto a um estímulo excessivo, por parte da instituição, ao uso da delação premiada. Qual é sua opinião?
Marfan Vieira —
O instituto tem sede legal, está previsto na legislação e, portanto, pode ser utilizado. É um instrumento importante, poderoso, que antes de existir no Brasil já existia em muitos outros países, com resultados práticos incríveis. Os exemplos estão aí pululando na mídia. É claro que, às vezes, acontecem distorções, decorrentes do caso concreto, em que a delação premiada acaba gerando situações de constrangimento, de tergiversação, como aconteceu em um caso recente em que a delação premiada vem tendo as suas versões modificadas a cada nova convocação do delator; mas isso é uma distorção que pode acontecer no caso concreto, em qualquer situação. Acho que o instituto é de grande valia porque traz um dos envolvidos na infração penal a colaborar; e ele, por estar envolvido na infração penal, é a pessoa que detém talvez o maior número de informações e dados que podem ajudar as autoridades incumbidas da repressão criminal a atuar com relação ao restante do grupo. Então, acho que é um instituto legítimo.

ConJur — Na sua avaliação,  o instituto da delação foi banalizada?
Marfan Vieira —
Não, não acredito. Acho que ele está sendo utilizado como deve ser, não existe limite pra isso. É utilizado toda a vez que há alguém disposto a se valer do instituto para colaborar com as autoridades incumbidas da persecução penal. Agora, as distorções precisam ser corrigidas.

ConJur — Observamos agora na  operação “lava jato”, no que se refere à questão da corrupção, a possibilidade de se punir empresas, impedindo-as de contratar com o Poder Público. Na sua avaliação, faz sentido punir a pessoa jurídica?
Marfan Vieira —
É preciso deixar claro que o fato de pessoas jurídicas sofrerem sanções como essa que mencionou, de não poderem contratar com o Poder Público, não elide a necessária responsabilização penal da pessoa física que praticou a ação ou omissão considerada criminosa. Então, são situações distintas, responsabilidades distintas. Acho que uma complementa a outra. E há outras consequências também, que podem acontecer na esfera cível. O Ministério Público tem um papel fundamental no combate à corrupção, uma atuação importante, tanto na esfera criminal, responsabilizando da forma como está acontecendo nesse caso (da “lava jato”), como também na esfera cível, nas áreas da improbidade administrativa, da tutela coletiva da cidadania, responsabilizando os agentes públicos envolvidos na corrupção, no sentido de demiti-los a bem do serviço público. Enfim, reparar o dano causado ao erário ou às empresas, isso tudo é uma função do Ministério Público, exercida por meio das ações civis públicas cabíveis nesses casos. Então, é fundamental o papel do Ministério Público hoje no combate à corrupção. O papel do Ministério Público, desempenhado ao longo desses anos, especialmente a partir da formatação que ganhou com a Constituição de 1988, tem colaborado de forma muito contundente para que o país seja mais transparente e para que o combate à corrupção seja mais efetivo. Se hoje conseguimos detectar esses escândalos e responsabilizar os autores, é graças à ação do Ministério Público. No passado isso não existia, tudo acontecia no submundo da corrupção, que era intransponível. Hoje conseguimos identificar essas pessoas, estejam elas onde estiverem, sejam do primeiro escalão do governo ou não. Todos eles são igualmente responsabilizados. Todos eles, quando condenados à pena privativa de liberdade, têm o mesmo destino: serão encarcerados. Isso mostra que a atuação do Ministério Público tem sido muito eficiente nesse sentido.

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