Cabeça de juiz

Liberdade em Spinoza e tolerância hoje

Autor

  • Bruno Amaro Lacerda

    é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

22 de fevereiro de 2015, 6h54

No Tratado teológico-político, Spinoza (1632-1677) sustenta uma concepção de Estado livre cuja ênfase não está, como em Locke, na liberdade de crença e de culto, mas na liberdade de manifestação do pensamento. Como ninguém pode renunciar ao direito natural de pensar, os homens têm opiniões discordantes sobre questões variadas, e não são as disputas de pensamento que geram a exacerbação das paixões que se transmutam com frequência em violência, mas, ao contrário, é a impossibilidade de se expressar livremente que conduz ao conflito.

O contrato social exige de cada homem a renúncia ao direito de atuar por decisão exclusivamente própria (já que os direitos naturais são entregues voluntariamente ao poder soberano), devendo todos os homens, a partir do pacto, agir pelo acordo comum consolidado na lei. Mas essa renúncia não abrange o direito de julgar e de raciocinar por conta própria. No Estado Democrático, que Spinoza acredita ser o que mais se aproxima do estado natural, os homens estabelecem que deva ter força de lei o entendimento que receba mais votos, reservando-se sempre o direito de alterar o que foi positivado caso se convençam mais tarde de que há um pensamento melhor. É por isso que não se pode renunciar ao direito de exprimir-se livremente: equivaleria a abrir mão das atualizações sociais que o pacto exige.

Por isso, um Estado é bom quando consegue garantir aos indivíduos um espaço de discurso livre, sem o qual uma vida social saudável não se viabiliza: “(…) é necessário conceder aos homens a liberdade de julgamento e governá-los de tal sorte que, ainda que pensem abertamente coisas distintas e opostas, vivam em paz” [1]. O mau Estado, por sua vez, é o eclesiástico, que incute na mente dos fiéis o medo e a rejeição a tudo aquilo que se afasta do pensamento canônico da Igreja: “O Estado mais violento será, pois, aquele que nega a cada um a liberdade de dizer e ensinar o que pensa” [2].

Embora não exista em Spinoza uma teoria específica da tolerância, pode-se entender que o Estado a ser buscado é aquele capaz de garantir a manifestação de pensamentos divergentes, e o Estado a se evitar o que impõe um modo de pensar definitivo, que converte os homens, seres racionais, em autômatos dominados pelo medo:

“Dos fundamentos do Estado, anteriormente explicados, segue-se, com toda evidência, que seu fim último não é dominar os homens pelo medo e submetê-los a outro, mas, ao contrário, livrá-los do medo para que vivam, na medida do possível, com segurança; isto é, para que conservem ao máximo este seu direito natural de existir e de agir sem dano próprio nem alheio. (…) O verdadeiro fim do Estado é a liberdade” [3].

Com isso, Spinoza contrapõe sua tese também à de Hobbes. O vínculo social não deriva do temor da guerra de todos contra todos, mas da razão dos cidadãos, que enxergam na força estatal um instrumento para a proteção da sua liberdade. Como diz Guido Fassò, a paz que o Estado de Spinoza quer assegurar não é “a trégua na guerra de todos contra todos”, mas “a atuação de uma ordem ética realizadora da verdadeira natureza do homem, que é a racionalidade e, por isso, a liberdade” [4].

Esta concepção sobre a liberdade de pensamento merece ser objeto de reflexão nos dias atuais, sobretudo em certos contextos políticos e jurídicos que confundem intolerância com pensamento divergente. Se tolerar significa estar disposto a afirmar um modelo de Estado que garante ao outro defender seu pensamento, mesmo quando este seja para mim estranho ou até detestável, é contraditório nomear uma ideia diferente, cuja propagação não está proibida pelo poder estatal, de intolerante e, como consequência, perseguir aqueles que pensam diversamente.

Como explica Yves-Charles Zarka, o viver junto (coexistência) não exige necessariamente a partilha de um destino comum (a aceitação da mesma ideia de “vida boa”), mas somente o abandono da perspectiva unilateral do “eu individual” para deixar que o outro também possa subsistir em sua liberdade: “O espírito de tolerância é a capacidade de se colocar no lugar do outro” [5]. É a exigência que o outro me endereça para respeitá-lo em sua diferença somada à minha exigência de que o mesmo tratamento seja-me dado. A reciprocidade é essencial à tolerância.

Mas colocar-me no lugar do outro e admitir sua defesa de ideias e concepções divergentes não exige adesão a essas diferenças, nem me retira a possibilidade de criticá-las. E isto é fácil de entender: é justamente porque se está diante do diverso, do oposto, que a tolerância é posta em ação. Não faria sentido algum tolerar a manifestação de um pensamento idêntico ao meu.

Voltando à Spinoza, a liberdade de manifestação do pensamento deve ser garantida pelo Estado sempre que não atentar contra os princípios do pacto social. Esse limite é ultrapassado pelas práticas que o filósofo chama de sediciosas, que são “aquelas cuja existência suprime, ipso facto, o pacto pelo qual cada um renunciou ao direito a agir segundo o próprio critério” [6]. Como exemplo, cita o pacta sunt servanda, princípio jurídico-político indispensável para a manutenção dos liames da vida social. Nesse sentido, a defesa de que as leis possam (ou devam) ser descumpridas é completamente desarrazoada porque viola o núcleo da sociedade política. A apologia e a incitação ao crime, por isso, não podem ser toleradas, pois negam o próprio pacto. Nos nossos dias, também não poderíamos aceitar a manifestação de um pensamento que negasse o núcleo axiológico de nossa sociedade (pense-se, por exemplo, em um livro cujo autor defenda práticas discriminatórias de cunho racista). O racismo não pode ser tolerado, é intolerável. Como diz Paul Ricoeur, “Qual o critério do intolerável? Não pode haver senão um: é o que não merece respeito, se o respeito é a virtude da tolerância no plano cultural” [7]. A liberdade não pode ir tão longe a ponto de ameaçar as estruturas que a possibilitam: o seu limite é a própria liberdade, fim ético do Estado.

Deste modo, somente deve ser tolerado o pensamento que não viole o pacto (ou, como diríamos hoje, os valores fundamentais da sociedade). Diz Zarka: “até onde devemos ser tolerantes?, nós sustentamos que o limite absoluto da tolerância se encontra nos princípios fundamentais que definem uma democracia constitucional” [8].

 

A contrario sensu, o pensamento divergente, mas que não vai de encontro aos fundamentos do Estado, pode ser manifestado com o manto protetor da liberdade de expressão. Assim, chamar de intolerante um pensamento que não agride aqueles valores, mas que é apenas diferente dos pensamentos que outras pessoas ou setores da sociedade têm sobre determinada questão, não é apenas uma corrupção do sentido das palavras “tolerância” ou “intolerância” [9], mas uma violação direta àquele fim ético que o Estado tem por vocação resguardar: a liberdade pessoal.

Pode-se citar como exemplo a ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em face do Google Brasil Internet Ltda., na qual se requeria ordem judicial para retirada de vídeos no Youtube considerados ofensivos às religiões brasileiras de origem africana, como a umbanda e o candomblé, como foi bastante noticiado pela mídia. O juiz da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro indeferiu o pedido de antecipação de tutela [10], entendendo que os vídeos, embora de “mau gosto”, estavam compreendidos dentro da liberdade de manifestação de pensamento (“são manifestações de livre expressão de opinião”).

Ocorre que o juiz escreveu também que “macumba, umbanda, candomblé ou quimbanda” eram apenas cultos, mas não religiões, por falta de um texto-base e um Deus pessoal: “No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado”, afirmou.

As reações a essa colocação foram tão fortes que, poucos dias depois, o juiz proferiu um despacho no qual mantinha sua decisão, mas alterava seu entendimento de que as crenças em questão não eram religiões, afirmando agora que “o forte apoio dado pela mídia e pela sociedade civil, demonstra, por si só, e de forma inquestionável, a crença no culto de tais religiões”. Esta manifestação posterior parece não ter sido uma mudança real de pensamento do juiz, mas somente uma resposta destinada a apaziguar a revolta de certos segmentos da sociedade.

Ora, a pergunta a ser feita é a seguinte: um juiz não pode entender que certas práticas sociais não são religiões, desde que não obstaculize o seu livre exercício? A liberdade religiosa exige apenas o respeito às práticas que as pessoas consideram como “religiões” ou também sua afirmação pública como “religiões verdadeiras”?

É evidente que o dever jurídico constitucionalmente imposto é o de respeitar o que as pessoas praticam como religião, e não o de avalizar publicamente essas práticas como religiões efetivas. O direito dos adeptos da umbanda e do candomblé, como o dos cristãos, judeus, muçulmanos, budistas etc., é o de praticar livremente os cultos, liturgias e modos de vida que concebem como sagrados, e não o de estarem imunes às críticas dos que têm entendimentos diversos sobre o assunto. O conceito de religião, ademais, não é unívoco, mas extremamente problemático na Ciência da Religião. Klaus Hock, por exemplo, explica que do começo do século XX até hoje as “tentativas de definir ‘religião’ cresceram para um número que não pode ser registrado” e que o termo “não é usado de modo uniforme, e até sua derivação terminológica é disputada” [11]. Assim, em meio a tantas desavenças, porque somente o juiz estaria proibido de expressar o que pensa a respeito?

Alguém até poderia, para se clarear o argumento aqui exposto, negar validade a todas as religiões, sustentando, por exemplo, que a ideia mesma de religião não faz sentido. Esta posição não seria um problema, desde que essa pessoa respeitasse as práticas nas quais os demais, ao contrário dela, acreditam. Mas ela não estaria impedida de opinar diversamente ou de criticar a crença alheia como falsa, equivocada ou não-religiosa.

O curioso do caso é que o protesto não era direcionado à decisão em si, mas à posição pessoal do juiz sobre as religiões em questão. Ao retificar apenas esse ponto, sem alterar em nada o mérito da decisão, o juiz fez com que os reclamantes se dessem por satisfeitos, fato que evidencia que seu objetivo era apenas a opinião do juiz e não a efetiva retirada dos vídeos do Youtube. Alguns deles, inclusive, falaram que o juiz havia sido “intolerante” [12].

Mas, como visto, o limite da tolerância é a liberdade. Por isso, devem ser toleradas todas as manifestações de pensamento que não violem os valores sociais que sustentam o pacto social, e, por outro lado, consideradas intoleráveis apenas as ideias que agridem esses valores. No caso em questão, em quê a opinião manifestada pelo juiz viola o valor fundamental em jogo, a liberdade religiosa dos adeptos do candomblé, umbanda etc.? Em que medida os cultos, liturgias e práticas de vida sofreram algum obstáculo ou prejuízo pela manifestação do juiz em sua decisão?

O pensamento do juiz é estranho para muitos? Pode estar errado? Sim, mas não é justamente esse tipo de oposição de pensamento que, para Spinoza, deve ser garantida por um Estado livre? Se considerarmos que a manifestação do juiz não atinge os princípios do Estado Democrático, não deveríamos tolerá-la, mesmo que discordando? Dito isto, é preciso refletir com D. A. Carson: não serão os que acusam de intolerância os verdadeiros intolerantes?

Referências


[1] SPINOZA, Baruch. Tratado teológico-político. Barcelona: Altaya, 1997, Cap. XX, p. 417.

[2] SPINOZA, Baruch. Tratado teológico-político, Cap. XX, p. 410.

[3] SPINOZA, Baruch. Tratado teológico-político, Cap. XX, p. 410-411.

[4] FASSÒ, Guido. História de la filosofía del derecho. Volume II. La Edad Moderna. Madrid: Pirámide, 1982, p. 119.

[5] ZARKA, Yves-Charles. Difícil tolerância: a coexistência de culturas em regimes democráticos. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2013, p. 41.

[6] SPINOZA, Baruch. Tratado teológico-político, Cap. XX, p. 413.

[7] RICOEUR, Paul. Tolerância, intolerância, intolerável. In: Leituras 1: em torno ao político. São Paulo, Loyola, 1995, p. 185.

[8] ZARKA, Yves-Charles. Difícil tolerância: a coexistência de culturas em regimes democráticos, p. 123.

[9] Como sugere CARSON, D. A. A intolerância da tolerância. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 12-16.

[10] Ver a decisão em: http://s.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/decisao-negou-retirada-videos.pdf. Acesso em 12.10.2014.

[11] HOCK, Klaus. Introdução à ciência da religião. São Paulo: Loyola, 2010, p. 17.

[12] Como, por exemplo, pode-se ver em: http://oglobo.globo.com/sociedade/ato-criticara-juiz-que-disse-que-umbanda-candomble-nao-sao-religioes-12541627. Acesso em 16.10.2014.

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