Finanças nacionais

Pelo controle judicial do orçamento impositivo de emendas individuais

Autor

  • José Marcos Domingues

    é professor doutor da Universidade Católica de Petrópolis professor titular aposentado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

19 de fevereiro de 2015, 7h52

Aprovada[1] neste início de mês e já aguardando promulgação, a Emenda Constitucional do chamado orçamento impositivo é casuísmo extremo.

Superada velha doutrina germânica, com raiz em Paul Laband[2], de que o orçamento seria mera lei formal, autorizativo de gastos aos quais não se vincularia a Administração[3], tem-se que a lei orçamentária é lei formal e material, e como toda lei deve ser cumprida.

E por que? Porque a lei orçamentária traz em cifras um feixe de políticas públicas resultado de decisões fundamentais do Estado, traduzindo, pois, normas jurídicas de observância cogente (lei material, portanto). Subjacente à doutrina do orçamento como lei formal está a ideia de que o orçamento apenas traria autorizações de gasto (orçamento autorizativo) com a finalidade de ressalvar a responsabilidade da Administração quanto ao dispêndio público.

Na medida em que evoluiu o pensamento jurídico em direção ao caráter material da lei orçamentária, cogita-se da obrigatoriedade da execução de suas rubricas de despesa (orçamento impositivo). O dever de gastar certos créditos orçamentários, especialmente os relativos a investimentos (por definição advindos de uma política pública assumida pelo Estado, seja em sua Constituição, seja em suas leis) levou Martín Queralt e outros[4] a concluírem que a Administração não está apenas autorizada “senão vinculada a gastar em sua totalidade os créditos previstos para esses investimentos”. Aliás, aduz Orón Moratal[5], “se a Constituição supõe para os poderes públicos não só um limite, senão também uma vinculação positiva”, então, “impõe um poder/dever, que se manifestará igualmente na vertente dos gastos públicos para implementar as previsões constitucionais”.

Quebras de receita ou excessos de arrecadação apenas justificariam pontuais ajustes do orçamento.

Em suma, em uma democracia a lei orçamentária existe para ser cumprida, máxime no Estado contemporâneo, caracterizado que é pela atuação através de políticas públicas que se consubstanciam em ações cujo escopo último é o aperfeiçoamento do atendimento estatal à população.

O orçamento é do Estado; não de um poder, não de partidos; e menos ainda deste ou daquele membro do Legislativo.

Assim, o país assiste atônito, e ainda sem esboçar reação institucional, a um verdadeiro absurdo em matéria de Direito Financeiro, que são as emendas parlamentares individuais, sucedâneos atuais das caudas orçamentárias da República Velha.

Nenhuma Constituição se refere a emendas parlamentares individuais (nem caberia; a Emenda é esdrúxula). O que a Carta Cidadã exige é que as emendas ao projeto de lei orçamentária indiquem os recursos necessários ao seu custeio e que sejam compatíveis com o plano plurianual e com a LDO, em respeito ao princípio do equilíbrio orçamentário, vertente normativa da responsabilidade fiscal (art. 166, § 3º).

Ademais, todo orçamento, por definição planejado, refletido e discutido com olhos postos no bem comum, atendendo aos princípios da seriedade, transparência e moralidade, deve ser naturalmente impositivo. Desvios de previsão na arrecadação dos tributos e na fixação da despesa pública, em função do desempenho da economia ou de intercorrências conjunturais se contornam através de alterações do orçamento, propostas justificadas e debatidas tempestivamente, dentro do devido processo legislativo.

Outrossim, projetos ou programas de trabalho, políticas públicas, devem ser pensados antes da aprovação do orçamento, objetiva e racionalmente, e propostos seja pelos Poderes, seja pelas instituições legitimadas constitucionalmente; mas ao longo do processo legislativo e antes da votação (art. 167, I, da Constituição).

A solução para as agruras financeiras do Brasil não é a adaptação do Direito às vicissitudes de uma prática de contumaz falta de seriedade orçamentária e de planejamento, que é obrigatório para o setor público (art. 174 da Constituição). É essa funesta e distorcida realidade que precisa ser reconduzida ao leito do Direito.

Ora, a execução orçamentária não há que ser mais que legal (vinculada à lei) e legítima (sem desvios de finalidade e moralidade). Além do mais, é comezinho que nada no Direito Público pode ferir os princípios da igualdade e da impessoalidade. Por isso é de fazer corar a decisão congressual que implica em serem separados ou segregados no orçamento verbas para suprimento por declaração unilateral de vontade desse ou daquele congressista, para execução obrigatória (novos §§ 9º e 10º ao art. 166), estabelecendo-se um privilégio personalista relativa a parte dos recursos públicos em detrimento do todo orçamentário, desconhecendo-se o princípio da universalidade orçamentária, que determina que o orçamento abranja a totalidade das finanças públicas.

Fixar e especificar a despesa cabe ao Poder Legislativo, não a cada um dos seus integrantes, pois é o Congresso que exerce o Poder Legislativo (art. 44 da Constituição); é esse o conteúdo dos princípios da legalidade e da especialização orçamentárias que juntamente com as citadas igualdade e impessoalidade, permeadas pela moralidade (art. 5º e 37), integram um bloco de direitos individuais e sociais de defesa financeiro-orçamentária cidadã em face das autocracias, dos autoritarismos e dos desvios de poder, configurando cláusula pétrea (art. 60, § 4º, III, IV) inviabilizar emendas à Carta Magna tendentes à sua abolição.

Contra a PEC 358/2013, que aprovou em votação final de 10 de fevereiro, esse casuístico orçamento impositivo, cabe cogitar do controle judicial da emenda, na esteira do que o Supremo Tribunal Federal preconiza (ADIs 2.925 e 4.048, ADPF 45, STA 145), e reiteradamente no julgamento do RE 581.352, pois tal é preciso fazer em nome da moralidade e para o bem das finanças nacionais, cuja gestão especialmente hoje e no passado recente tem se desviado de sua função primordial, que é promover o bem estar do povo e o pleno desenvolvimento do Brasil.

[1] PEC 358/2013.

[2] Doutrina iniciada na Alemanha do séc. XIX com Paul Laband e já então criticada por autores como Myrbach-Reinfeld e Philippe Zorn [cf., do Autor, O desvio de finalidade das contribuições e o seu controle tributário e orçamentário no direito brasileiro, in Direito Tributário e Políticas Públicas, DOMINGUES, J. M. (coord.). São Paulo: MP Editora, 2007, p. 316-317; 321-332]. A propósito, anota TIAGO DUARTE que “a distinção dogmática entre lei em sentido formal e lei em sentido material (…), depois de uma fase de maior euforia, mesmo em sistemas parlamentares, [terá] perdido a sua preponderância na actualidade legislativa e doutrinária” (A Lei por Detrás do Orçamento. Coimbra: Almedina, 2007, p. 298).

[3] Daí a pilhéria de que “haveria, assim, que ter muita vontade para se gastar agora tempo em resgatar no baú das recordações quantas teorias em sentido contrário” (MARTÍNEZ LAGO, Miguel Ángel. Ley de Presupuestos e Constitución. Madrid: Trotta, 1998, p. 25). Cf. também MENÉNDEZ MORENO, Alejandro. Derecho Financiero y Tributario. 10ª ed., Lex Nova, Valladolid, 2009, p. 441-442.

[4] Tal argumento encontra respaldo nos preceitos constitucionais “que impõem aos poderes públicos certos objetivos ou fins em sua atuação”, créditos orçamentários que adquirem caráter instrumental dos princípios e valores desenhados pela Constituição, abraçando assim a moderna função do orçamento no Estado contemporâneo”. MARTÍN QUERALT, LOZANO SERRANO, TEJERIZO LÓPEZ, CASADO OLLERO. Curso de Derecho Financiero y Tributario. Madrid: Tecnos, 20ª ed., 2009, p. 714-715.

[5] La Configuración Constitucional del Gasto Público. Madrid: Tecnos, 1995, p. 50.

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