Paradoxo da Corte

Fato superveniente e antecipação da tutela recursal na jurisprudência

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10 de fevereiro de 2015, 8h30

A moderna ótica do processo civil contemporâneo, como corolário da garantia do devido processo legal, não admite, salvo justificadas exceções, qualquer surpresa que coloque em perigo o direito material da parte, decorrente de decisão escudada em ponto jurídico fundamental por ela não alvitrado.

Daí, porque o tribunal deve dar conhecimento prévio de qual direção o direito subjetivo encontra-se exposto ao risco, aproveitando apenas os fatos sobre os quais as partes tenham tomado posição. Dessa forma, os litigantes estarão melhor aparelhados para defender o seu direito e influir na decisão judicial.

Não é, aliás, por outra razão, que, afinado com a modernidade da dogmática processual, o artigo 9º do recém aprovado Código de Processo Civil preconiza que: “Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que esta seja previamente ouvida. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica: I – à tutela provisória de urgência; II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no artigo 309, incisos II e III; III – à decisão prevista no artigo 699”.

A despeito da clareza desse enunciado, cabe aqui uma rápida observação: excepciona-se o prévio contraditório, como se observa, apenas naquelas situações de urgência ou que possam ocasionar a frustração do direito do requerente.

Ademais, no mesmo cap. I do lib. I (Parte Geral), o novo CPC estabelece no artigo 10, que: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva que decidir de ofício”.

Dúvida não há de que, durante o curso do processo, a realidade fática levada pelos litigantes à cognição judicial pode sofrer profunda alteração, chegando até mesmo a influenciar o resultado da controvérsia.

Assim, quando sobrevier um fato involuntário ou não ao ajuizamento da demanda, que tenha o condão de alterar a estabilidade do processo, não poderá ele deixar de ser apreciado pelo órgão jurisdicional. É, aliás, o que reza, o artigo 462 do CPC em vigor: “Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença”.

É certo que essa regra legal também se aplica no concernente às hipóteses previstas no artigo 273 do citado diploma processual.

Com efeito, se o fato superveniente disser respeito à alteração do   comportamento   do   litigante,  deverá  ser  ele  levado  na  devida conta caso haja sido formulado pleito de antecipação da tutela, com lastro em uma das situações previstas na legislação processual.

Desse modo, ficando comprovada, no curso do processo, a possibilidade  superveniente   de   dano  irreparável  ou  de  difícil  reparação, ou o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu, é de ser deferida a antecipação eficacial pretendida. 

E isso, mesmo que a causa já se encontre em grau de recurso.

Como anota Teori Albino Zavascki (Antecipação da tutela e colisão de direitos fundamentais, Liminares (obra coletiva), São Paulo, Ed. RT, 1995, pág. 93), poderá ocorrer que a situação de perigo de dano irreparável ao direito ou o propósito protelatório se configure quando o processo já esteja na sua fase recursal, e, por isso, “a solução que o novo sistema oferece é o pedido de antecipação, que será dirigido ao tribunal e será apreciado pelo órgão competente para o julgamento do recurso, ou pelo relator, conforme dispuser o regimento interno”.

Assevera também Clito Fornaciari Júnior que a tutela antecipatória poderá igualmente “ser pleiteada no tribunal, sendo competente para conhecer do pedido o relator do recurso” (A reforma processual civil (artigo por artigo), São Paulo, Saraiva, 1996, pág. 38).

Em suma: toda vez que os requisitos legais estiverem presentes, a concessão de tutela jurisdicional em caráter de urgência constituirá obrigação incontornável do Estado por força da promessa constitucional ditada pelo artigo 5º, XXXV, da Carta Magna de nossa República Federativa.

A prestação jurisdicional, com efeito, deve ser apta, mormente em situações de urgência, a não permitir que o direito material pleiteado pereça em decorrência da demora natural do processo…

Diante de uma sentença de improcedência da pretensão formulada pelo autor, o sistema exige altíssimo grau de probabilidade de provimento do recurso para que possa se cogitar de concessão de tutela antecipada recursal (Luís Henrique Barbante Franzé, Tutela antecipada recursal,  Curitiba, Juruá, 2006, pág. 272).

Por outro lado, como consequência de tal doutrinação, impõe-se o indeferimento da antecipação da tutela recursal toda vez que não estiverem presentes os respectivos requisitos legais.

É esta, aliás, a única interpretação razoável da regra do caput e do parágrafo único do artigo 558 do CPC.

O processo, como é notório, presta-se como instrumento de exercício do direito à jurisdição, sendo que seu desenrolar, com estrita observância dos regramentos ínsitos ao denominado due process of law, importa a possibilidade de inarredável tutela de direito subjetivo material objeto de reconhecimento, satisfação ou assecuração em juízo. Assim também, sob a perspectiva da posição do réu, o mesmo ocorre com a tutela jurisdicional de seu respectivo direito, caso tenha ele razão.

A jurisprudência de nossos tribunais, inspirada por certo na concepção de processo justo, diante de situações concretas relacionadas, via de regra, com os provimentos antecipatórios executivos lato sensu, tem apresentado tendência para suprimir os efeitos prejudiciais advindos do duplo efeito da apelação interposta contra sentença de improcedência.

Colhe-se, nesse sentido, no julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 133.843-DF, da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, relatado pelo então Ministro Waldemar Zveiter, que: "julgada improcedente, no mérito, a demanda de reintegração possessória, impõe-se seja a posse restituída a quem dela, por força de liminar, havia sido destituído".

O mesmo órgão colegiado, ao julgar o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 1.284-RS, deixou consignado que, uma vez "reformada a decisão concessiva de liminar em possessória, devem as coisas voltar ao estado anterior, tornando a posse do imóvel a quem dela havia sido destituído. Irrelevância do fato de a apelação, relativa à sentença que julga a ação improcedente, haver sido recebida no duplo efeito, posto que não se trata de executá-la provisoriamente".

E isso, certamente porque a cognição plena e exauriente possibilita a solução do conflito de modo mais seguro ao jurisdicionado (cf. Kasuo Watanabe, Da cognição no processo civil, São Paulo, Ed. RT, 1987, pág. 109).

Configuraria mesmo tremendo paradoxo sobrepor o juízo de verossimilhança à atividade cognitiva exauriente, lastreada na verdade!

Aduza-se que atuais e reiterados julgados reafirmam, com vigor, que somente a coexistência dos pressupostos legais é que autorizam a concessão da antecipação da tutela, em especial, na fase recursal.

Enfrentando matéria em tudo análoga à vertente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 1.121.907-SP, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, deixou assentado que: “… No direito de família, notadamente quando se trata do interesse de menores, a responsabilidade do julgador é redobrada: é a vida da criança que está para ser decidida e para uma criança, muitas vezes, um simples gesto implica causar-lhe um trauma tão profundo, que se refletirá por toda a sua vida adulta. Por esse motivo, toda a mudança brusca deve ser, na medida do possível, evitada. Nos processos envolvendo a guarda de menores, a verossimilhança deve ser analisada com maior rigor. Tirar a criança do convívio com sua mãe, com que esteve sempre, desde o nascimento, é medida que só pode ser adotada em casos extremos…”.

Invoque-se, a propósito, exegético pronunciamento da 6ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento da Medida Cautelar Inominada 990.10.074914-5, e sintetizado em expressiva ementa, obviamente sem necessidade de qualquer adição, do seguinte teor: “Falta ao autor o interesse de agir, porque não pode, a título de cautelar, conseguir uma verdadeira tutela antecipada fora do processo em que sua pretensão foi deduzida e já julgada pela r. sentença de primeiro grau. Somente no recurso de apelação a questão deverá ser apreciada, diante dos efeitos atribuídos a ele”.

A antecipação da tutela recursal, a exemplo de qualquer espécie de provimento antecipatório, somente pode ser concedida em favor da parte que demonstra ter a melhor posição jurídica; ou seja, não pode beneficiar aquele que possivelmente não tem direito (assim declarado na sentença de improcedência do pedido) em detrimento da parte vencedora, que comprovou — em juízo de certeza — ser titular do direto substancial submetido à cognição do juiz de primeiro grau.

E é essa lógica — e apenas esta — que embasa a técnica processual que autoriza a precipitação eficacial da tutela jurisdicional, em sede recursal, em prol daquele que se sagrou vitorioso; jamais para inverter o ônus do tempo visando a prover o direito da parte que perdeu a demanda!

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