Justiça Tributária

Regulamento do imposto de renda é um samba atravessado

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

9 de fevereiro de 2015, 8h20

Spacca
Raul Haidar [Spacca]O regulamento do imposto de renda (Decreto 3.000 de 26 de março de 1.999) é composto de 1.004 artigos. Cerca de 10% deles cuida exclusivamente de penalidades a serem impostas ao sujeito passivo. Além disso, inúmeros artigos e títulos foram revogados ou alterados. O regulamento transformou-se ao longo do tempo no “samba do afro-descendente mentalmente transtornado”!

O Ministério da Fazenda desrespeita há mais de 40 anos (sic) uma norma clara e simples do Código Tributário Nacional, contida na parte final do artigo 212:

“Os Poderes Executivos federal, estaduais e municipais expedirão, por decreto, dentro de 90 (noventa) dias da entrada em vigor desta Lei, a consolidação, em texto único, da legislação vigente, relativa a cada um dos tributos, repetindo-se esta providência até o dia 31 de janeiro de cada ano.”

Essa confusão parece ser deliberada. Ou, quem sabe, decorre da falta de atenção dos diversos ministros ou secretários da Receita que deveriam fazer um trabalho bem feito. Esta hipótese não podemos afastar, eis que já tivemos nesses cargos pessoas que não eram do ramo, desde delegados de Polícia, passando por médicos, geólogos etc.

Essa falta de atenção para com o cumprimento da Lei 5.172, aliada ao descaso em relação aos direitos do contribuinte, muitas vezes desprezado pelos servidores públicos, acabou por criar um ambiente hostil nas relações entre as partes, cuja harmonia deveria prevalecer, em proveito da economia do país.

Já defendemos a necessidade de ser criado o Código de Defesa do Contribuinte, de abrangência nacional. Alguns estados já aprovaram estatutos dessa espécie, como São Paulo e Minas, por exemplo.

Tramita no Congresso o PL 2.557/2011 de autoria do deputado Laércio Oliveira (PR-SE), que é o atual vice-presidente da Confederação Nacional do Comércio (CNC). Serão necessários esforços de toda a sociedade para que o projeto tenha bom resultado.

Todos nós precisamos encaminhar aos congressistas em quem votamos ou com os quais temos algum relacionamento e principalmente às entidades das quais participamos (OAB, CRC, Rotary, Lions, Igrejas, Maçonaria etc) cópia do projeto e solicitar-lhes atenção para eventuais falhas ou apenas pedir apoio.

Uma das questões que merecem ser incluídas no projeto é a garantia à não auto-incriminação, isto é, o direito do contribuinte a não fornecer informações, documentos ou provas que o incriminem.

Realmente, ao receber uma intimação do fisco para prestar esclarecimentos sobre suas obrigações tributárias, o contribuinte (pessoa jurídica ou física) pode ficar em dúvida sobre o alcance e a validade de tais intimações.

Todas as nossas relações com o poder estão sob a proteção e limites da Constituição Federal. Nenhuma norma legal e menos ainda a de simples decreto ou regulamento pode conceder ao Fisco poderes que violem tal proteção ou ultrapassem aqueles limites.

Tanto em relação a pessoas jurídicas quanto físicas as intimações invocam para amparar seu dever/direito as normas dos regulamentos dos tributos que sejam objeto da verificação.

Do imposto de renda os artigos 927 e 928 do regulamento merecem transcrição :

“Art. 927.  Todas as pessoas físicas ou jurídicas, contribuintes ou não, são obrigadas a prestar as informações e os esclarecimentos exigidos pelos Auditores-Fiscais do Tesouro Nacional no exercício de suas funções, sendo as declarações tomadas por termo e assinadas pelo declarante (Lei 2.354, de 1954, art. 7º).

Art. 928.  Nenhuma pessoa física ou jurídica, contribuinte ou não, poderá eximir-se de fornecer, nos prazos marcados, as informações ou esclarecimentos solicitados pelos órgãos da Secretaria da Receita Federal (Decreto-Lei 5.844, de 1943, artigo 123, Decreto-Lei 1.718, de 27 de novembro de 1979, artigo 2º, e Lei 5.172, de 1966, artigo 197).

§ 1º  O disposto neste artigo aplica-se, também, aos Tabeliães e Oficiais de Registro, às empresas corretoras, ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial, às Juntas Comerciais ou repartições e autoridades que as substituírem, às caixas de assistência, às associações e organizações sindicais, às companhias de seguros e às demais pessoas, entidades ou empresas que possam, por qualquer forma, esclarecer situações de interesse para a fiscalização do imposto (Decreto-Lei 1.718, de 1979, artigo 2º).”

A transcrição é cópia fiel do regulamento em vigor, tal como está hoje no site da Presidência da República e merece várias críticas que levam tais normas na primeira leitura ao absoluto descrédito e, num exame jurídico feito com amparo na jurisprudência e na melhor doutrina, à total nulidade, por negativa de vigência à Constituição e ao Código Tributário Nacional.

Assinale-se de início que todas as normas que estão entre parênteses no texto acima são alterações de textos anteriores, com as quais as mudanças (melhor dizendo “remendos”) regulamentares foram introduzidas, são anteriores à Carta Política vigente, que restaurou e/ou ampliou os direitos afastados ou reduzidos na ditadura militar. Pelo menos uma é da ditadura getulista!

Das normas mencionadas acima a única expressamente recepcionada pela Constituição de 1988 é a Lei 5.172 (Código Tributário Nacional), cujo artigo 197 não trata de informações dos contribuintes, mas de terceiros. E as normas desse artigo direcionam-se às pessoas ali citadas (tabeliães, serventuários, instituições financeiras, inventariantes etc.) .

Quanto a bancos e financeiras, há de prevalecer o sigilo, que só pode ser violado por decisão judicial. Em relação às demais pessoas lá citadas, parte delas executa registros públicos. Não se pode obrigar o contribuinte a obedecer normas endereçadas a terceiros. Portanto, falta amparo legal à exigência.

O Código Tributário Nacional determina que a fiscalização deve ser regulada por lei, não por decreto, nos termos do que diz o artigo 194. O termo “legislação” do artigo 96 diz que ela “compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares…” Mas sobre tudo isso prevalece a regra de legalidade absoluta, fixada pela Constituição, quando afirma que ninguém é obrigado a fazer ou deixa de fazer nada que não esteja previsto em lei. Veja-se que o artigo 97, inciso V, explicita que só a lei pode fixar penalidade para ação ou omissão.

Não fornecer informações ou documentos ao fisco é direito do contribuinte, a quem não cabe fazer prova de interesse da autoridade. Mas não é legal impedir seu acesso ao estabelecimento e eventual apreensão (com auto e recibo) de livros ou documentos. Ou seja: o contribuinte tem deveres e direitos, tanto quanto o Fisco. Esperemos que o Estatuto de Defesa dos Contribuintes consiga harmonizar esse relacionamento, em benefício de toda a sociedade brasileira.

Autores

  • é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!