Debate da regulamentação das ONGs

Subvenções sociais não são alcançadas pelo MROSC

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8 de fevereiro de 2015, 16h29

A Lei Federal nº 13.019/2014, ou Marco Regulatório das Organizações Sociais (MROSC) traz o regramento das parcerias voluntárias entre o Estado e as entidades do terceiro setor, agora denominadas como organizações da sociedade civil, para o alcance e efetivação de finalidades públicas em mútua cooperação. É um marco normativo com diversas regras e novidades e aqui nos debruçaremos sobre a seguinte questão: tal lei recairá sobre as subvenções? Isso tem suscitado questões de diversos municípios e, por ainda não ter havido edição de regulamento, vimos apresentar nossa contribuição ao debate

Iniciemos pelas subvenções. A Lei nº 4.320/1964, pela qual são veiculadas as normas gerais de Direito Financeiro, traz no parágrafo 3º do artigo 12 que subvenções são "as transferências destinadas a cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas". Podem ser sociais ou econômicas, sendo aquelas "as que se destinem a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa".  Como, por força da Lei nº 13.019/2014, as parcerias voluntárias só podem ser celebradas com organizações da sociedade civil, definidas no inciso I, artigo 2º como pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, firmemos que tratamos aqui da subvenção social, com a seguinte conceituação:

“Subvenções sociais são as transferências correntes destinadas a cobrir despesas de custeio de instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa, quando a transferência deriva de previsão constante na lei orçamentária (LOA)[1]” (destacamos).

Vale trazer ainda a nota de rodapé que o autor faz para detalhar as transferências:

"O que caracteriza qualquer transferência é a ausência de contraprestação direta em bens e serviços, ou seja, se houver recebimento de bens ou aproveitamento de serviços por parte do ente público em contrapartida ao valor entregue não há que se falar em transferência”.[2]

Importa ainda a esta análise a definição de despesas de custeio, sendo aquelas cujos recursos se destinam "à prestação de serviços e à manutenção da ação da administração como, por exemplo, o pagamento de pessoal, de material de consumo e a contratação de serviços de terceiros[3]".

Se as transferências, para serem caracterizadas, exigem que não haja "contraprestação direta em bens ou serviços" (confrontar dicção do parágrafo 2º do artigo 12 da Lei nº 4.320/1964 e citação realizada acima), cabe-nos investigar o conteúdo dessas contraprestações. Em sentido abrangente, o legislador vedou que as subvenções fossem utilizadas para aquisições hodiernas da Administração, de bens ou serviços, burlando as regras estabelecidas para tanto. Por outro lado, se pretende que as subvenções sirvam para o patrocínio de atividades que tenham relevância social, sendo que os interesses dos partícipes não são contrapostos, como na relação contratual, mas sim recíprocos.

Como bem distinguiu Maria Sylvia Zanella Di Pietro[4], sobre as relações entre Estado e terceiro setor, não se trata de "delegação de serviços públicos", mas sim de "fomento", em que o "Estado deixa a atividade na iniciativa privada e apenas incentiva o particular que queira desempenhá-la, por se tratar de atividade que traz algum benefício para a coletividade".

Com esse arcabouço conceitual, podemos afirmar que entre o Município e as entidades receptoras das subvenções não pode ser realizado nenhum tipo de ajuste que implique contraprestações, como a de aumentar o atendimento à população, por exemplo, com a prévia imposição de um plano de trabalho[5]. Os recursos repassados devem ser destinados ao custeio da entidade, facultando-se ao Poder Público impor onde os recursos serão alocados, para assegurar que eles serão efetivamente utilizados nesse custeio.

Cumpre assinalar também o disposto na Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar nº 101/2000:

"Art. 26. A destinação de recursos para, direta ou indiretamente, cobrir necessidades de pessoas físicas ou déficits de pessoas jurídicas deverá ser autorizada por lei específica, atender às condições estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias e estar prevista no orçamento ou em seus créditos adicionais".

Desse modo, as subvenções sociais dependem de autorização legislativa para serem válidas.

Tal requisito não é exigido para a celebração de parcerias voluntárias tratadas pela Lei nº 13.019/2014, vez que elas se incluem na esfera de discricionariedade do Poder Executivo, que as firmará de acordo com as suas diretrizes de desenvolvimento de políticas públicas. De certa maneira, ao encaminhar um projeto de subvenção social ao Legislativo, tal critério também é considerado, mas a chancela legislativa é indispensável porque se destina a despesas de custeio das entidades indicadas e os benefícios trazidos por esse patrocínio serão sentidos indiretamente pela Municipalidade.

Em vista dessas considerações, vejamos as exceções expressas da Lei nº 13.019/2014:

Art. 3º Não se aplicam as exigências desta Lei:

“I – às transferências de recursos homologadas pelo Congresso Nacional ou autorizadas pelo Senado Federal naquilo em que as disposições dos tratados, acordos e convenções internacionais específicas conflitarem com esta Lei, quando os recursos envolvidos forem integralmente oriundos de fonte externa de financiamento;

II – às transferências voluntárias[6] regidas por lei específica, naquilo em que houver disposição expressa em contrário;

III – aos contratos de gestão celebrados com organizações sociais, na forma estabelecida pela Lei no 9.637, de 15 de maio de 1998.” (destacamos)

A nova lei, contudo, ainda que não faça remissão às normas financeiras de modo expresso, ao determinar que parceria pode envolver ou não transferência voluntária de recursos financeiros por parte do Estado, para a consecução de finalidades de interesse público, sugere que estão incluídas as subvenções sociais, naquilo que expressamente não conflitar com a lei autorizadora da transferência. Vejamos a razão pela qual há conflito entre as leis de subvenção e o MROSC.

Em reforço a tal entendimento, tragamos à colação trecho do artigo de autoria de Claudine Corrêa Leite Bottesi, Assessora Técnica-Procuradora do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, in verbis:

“Devo ressaltar, outrossim, que, consoante o artigo 3º, as exigências do novo diploma não se aplicam:

‘(…)

ii. Às transferências voluntárias regidas por lei específica, naquilo em que houver disposição expressa em contrário;’

Ao que parece o legislador utilizou a expressão “transferências voluntárias” para qualquer tipo de repasse de recursos públicos, como, por exemplo, auxílios, subvenções e contribuições previstos em lei municipal.”

Para verificarmos o cabimento disso, vale mencionar outras disposições do MROSC, como aquelas que tratam dos termos de colaboração e de fomento:

“Art. 16. O termo de colaboração deve ser adotado pela administração pública em caso de transferências voluntárias de recursos para consecução de planos de trabalho propostos pela administração pública, em regime de mútua cooperação com organizações da sociedade civil, selecionadas por meio de chamamento público, ressalvadas as exceções previstas nesta Lei.

(…)

Art. 17. O termo de fomento deve ser adotado pela administração pública em caso de transferências voluntárias de recursos para consecução de planos de trabalho propostos pelas organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação com a administração pública, selecionadas por meio de chamamento público, ressalvadas as exceções previstas nesta Lei” (destacamos).

Os destaques elucidam que as parcerias serão formalizadas por meio desses instrumentos, a depender de quem propõe o plano de trabalho, se a Administração Pública ou as organizações da sociedade civil. Ou seja, as parcerias de que tratam essa lei dependem de um plano de trabalho que deverá ser executado, no qual estarão limitados os custos indiretos:

“Art. 47. O plano de trabalho poderá incluir o pagamento de custos indiretos necessários à execução do objeto, em proporção nunca superior a 15% (quinze por cento) do valor total da parceria, desde que tais custos sejam decorrentes exclusivamente de sua realização e que:

I – sejam necessários e proporcionais ao cumprimento do objeto;

II – fique demonstrada, no plano de trabalho, a vinculação entre a realização do objeto e os custos adicionais pagos, bem como a proporcionalidade entre o valor pago e o percentual de custo aprovado para a execução do objeto;

III – tais custos proporcionais não sejam pagos por qualquer outro instrumento de parceria.

§ 1o Os custos indiretos proporcionais de que trata este artigo podem incluir despesas de internet, transporte, aluguel e telefone, bem como remunerações de serviços contábeis e de assessoria jurídica, nos termos do caput, sempre que tenham por objeto o plano de trabalho pactuado com a administração pública.

(…)”

Ou seja, há uma diferença entre fomentar com recursos públicos a atividade de uma entidade privada sem fins lucrativos com subvenção social, que deverá ser utilizada em seu custeio, e de firmar parceria, que deverá atingir um fim determinado no plano de trabalho, no qual as despesas de custeio são limitadas.

Em suma: a subvenção e a parceria têm naturezas distintas no tocante ao rito, devendo aquela obter previamente autorização legislativa, enquanto a parceria se insere no campo de discricionariedade da Administração Pública na execução de políticas públicas; e em relação ao objeto, pois a subvenção se destina fundamentalmente ao custeio da entidade sem fins lucrativos enquanto que a parceria objetiva a execução de um plano de trabalho, impondo limitações às despesas de custeio.

Isso nos leva à conclusão que a Lei nº 13.019/2014 não abarcou as subvenções sociais, em razão da inteligibilidade dos institutos jurídicos e financeiros aqui apontados. Para que não seja enquadrada como parceria, sujeita a todas as normas da referida lei, a subvenção social deve ser submetida à deliberação e aprovação do Corpo Legislativo correspondente. É importante que isso seja esclarecido para orientar as práticas dos governos e entidades.

[1] FURTADO, J. R. Caldas. Direito financeiro. 3. ed. Belo Horizonte : Fórum, 2012. p. 217.

[2] Ob. Cit.

[3] Glossário do Tesouro Nacional. Disponível em <http://www3.tesouro.fazenda.gov.br/servicos/glossario/glossario_d.asp>. Acesso em: 26/09/2014.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 232.

[5] Para definir o quantum da subvenção, reza o parágrafo único do artigo 16, que o valor "será calculado com base e unidades de serviços efetivamente prestados ou postos a disposição dos interessados, obedecidos os padrões mínimos de eficiência previamente fixados". Isso não significa que a Municipalidade fará a aquisição de unidades de serviços, vez que se trata de critério que orientará o valor da subvenção e o interesse público que ela deve abrigar.

[6] De se anotar que a lei, apesar de haver se valido dos mesmos termos, não repete nem altera, a nosso ver, o conceito de transferência voluntária veiculado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. “Art. 25. Para efeito desta Lei Complementar, entende-se por transferência voluntária a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde”.

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