Lei antifumo

Não há direito constitucional de fazer mal à saúde de outras pessoas

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5 de fevereiro de 2015, 5h36

A revista eletrônica Consultor Jurídico publicou artigo do  insigne jurista e professor de Direito Lenio Luiz Streck, criticando a lei  federal de restrição ao fumo em locais fechados, que acabou ficando conhecida como “lei antifumo”.

O artigo repete os argumentos utilizados de maneira habitual pela indústria do tabaco, no mundo inteiro, contra iniciativas semelhantes, que têm feito muito sucesso como política de saúde  pública, em todos os lugares onde tem sido implantadas, como por exemplo Austrália, Chile e Inglaterra.

Não é possível concordar com o argumento central do artigo no sentido de que fumar é um ato de liberdade e que sua restrição “caminha na contramão das liberdades constitucionais”.

É importante frisar que o direito de fumar continua a existir.  Foi proibido tão somente em ambientes fechados.

Não há direito constitucional de fazer mal à saúde de outras pessoas. Não se trata aqui de impedir a opção individual de cada um de fumar, correndo o risco de  causar dano à  sua própria saúde.

O que se estabelece é que ninguém pode ter o direito de impor o fumo passivo a outras pessoas não fumantes, gerando graves males à saúde de milhões de pessoas submetidas contra à sua vontade, ao capricho do fumante que não se importa com as pessoas que estejam perto.

Não se trata, portanto, de violar liberdade individual ou direito fundamental mas este permanece o argumento mais usado mundialmente pelos partidários do fumo.

A restrição ao fumo em ambientes fechados também não afeta o regime republicano democrático e chega a ser chocante a  tentativa de comparar a restrição feita em defesa da saúde pública, à resistência contra o arbítrio.

Absolutamente descabida é a comparação com a indústria automobilística e o risco que importa o uso de automóveis para terceiros. As sociedades comportam atividades que geram risco tal como o uso dos meios de transporte de qualquer natureza. No entanto, o uso normal de veículos traz mais benefícios do que danos à sociedade em geral e, tomadas as devidas cautelas, as pessoas têm como evitar acidentes.

No caso do fumo passivo isso não é verdade, pois, a ingestão  do fumo é feita contra a vontade das pessoas, que não podem se defender, se estiverem  expostas indevidamente à fumaça alheia.

Aliás, quando era permitido fumar em ambientes fechados, ninguém era mais prejudicado do que os trabalhadores de bares e restaurantes e outros ambientes, que eram expostos durante horas à fumaça gerada por outros. Os trabalhadores sim tinham seu direito fundamental à saúde violado, sendo forçados a fazer algo que não queriam.

Causa espanto que os argumentos já utilizados quando a lei paulista antifumo entrou em vigor, em 2009, venham a ser repisados quando a  mesma solução é adotada finalmente em nível nacional, e no momento em que todos os dados coletados mundialmente para soluções parecidas sejam altamente positivos, constituindo uma tendência em sociedades mais avançadas.

O custo pessoal e familiar das milhões de pessoas doentes pelo uso de fumígenos e o custo financeiro de seu tratamento, exigiam mesmo que o país desse esse passo, mesmo que os interesses da indústria do fumo sejam prejudicados.

O que se mostra na atividade da indústria do tabaco é a sua absoluta indiferença aos resultados catastróficos de sua produção e comércio  para a saúde pública. Ainda de maneira recente, a indústria continua a pugnar pelo uso de aditivos de modo a mascarar o gosto do fumo e tornar mais suave o vício, mesmo com resultados trágicos.

Não era mesmo mais aceitável que se tolerasse a existência de “fumódromos” ou ambientes coletivos destinados especificamente ao fumo pois eles se revelaram absolutamente ineficazes para evitar o prejuízo a terceiros e impõem aos trabalhadores desse lugares grave dano à sua saúde.

Está claro que a União pode legislar em matéria de defesa da saúde pública (artigo 24, XII, da Constituição da República), sendo que bares e restaurantes não são espaços isentos de se submeter a tal legislação.

O setor de bares e restaurantes foi, no primeiro momento, um dos que mais resistiram à implantação da lei de restrição ao fumo, utilizando argumentos iguais aos usados em Nova York, outras cidades e países, quais sejam: que iriam fechar, ter prejuízo, gerar desemprego. Nada disso se revelou verdade, tanto aqui, como no exterior, sendo que no Estado de São Paulo o índice de cumprimento a lei se revelou altíssimo desde logo, caindo na rotina positiva.

O sucesso da lei paulista se tornou exemplo mundial, tendo sido apresentado em palestras que fui convidado a fazer nos Estados Unidos e na China, para plateias de diversos países, sendo que a cidade de Pequim  aprovou recentemente lei de restrição ao fumo, a entrar em vigor em junho deste ano.

Se a luta pela restrição ao fumo em ambientes fechados chegou à solução nacional com atraso, há outras medidas que vem sendo discutidas em países mais avançados em matéria de saúde pública, como a adoção obrigatória de maços de cigarros padronizados, com embalagem igual e branca, de modo a evitar o uso de modelos  de cores para destacar uma marca de maneira ostensiva.

Tal medida está na ordem do dia para ser aprovada no Reino Unido e  é o próximo passo que deve ser estudado  no Brasil e se não fosse relevante, não haveria tanta resistência da indústria do fumo em nível internacional.

Defender a saúde pública e evitar que as pessoas sejam fumantes passivos tem plena base constitucional e não tenho dúvida que, tal como as leis estaduais sobre a matéria, a batalha pela constitucionalidade da lei federal será vencida pelo interesse coletivo, em prol da saúde das pessoas.

No seu artigo, o ilustre jurista fez questão de registrar que não é fumante, como se isso o colocasse numa posição totalmente desinteressada ou imparcial em relação ao tema. A bem da transparência, deveria lembrar também que o seu estado, o Rio Grande do Sul, é o principal polo da indústria do fumo no Brasil e por isso é local onde há grupos de interesses que rejeitam de maneira forte qualquer medida na defesa da saúde pública dos não fumantes. No entanto, os milhões gaúchos e habitantes daquele importante estado, também têm o direito de serem protegidos contra o fumo indesejado, o fumo passivo. E a lei federal também irá protegê-los, querendo ou não a indústria do tabaco lá estabelecida.

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    é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Foi Procurador-Geral de Justiça durante três biênios e foi Secretário de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania no Governo José Serra, quando ajudou a implantar a lei paulista antifumo.

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