Consultor Tributário

Só o Supremo Tribunal Federal pode dar
um fim às multas confiscatórias

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4 de fevereiro de 2015, 7h00

A Bahia, Estação primeira do Brasil (….)
(Caetano Veloso, Onde o Rio é mais baiano).

Há mais de uma década temos o hábito de passar os primeiros dias de janeiro com a família na Bahia e esse ano não foi diferente. No começo, o destino era o extremo sul; do Prado a Cabrália, passando por Corumbau, Caraíva, Trancoso, Ajuda, Porto Seguro, entre outras praias da belíssima “costa do descobrimento”. A visão do Monte Pascoal, que ainda permanece intacta em minha memória, excitava a imaginação de como foram os primeiros dias de vida do Brasil.

Com o tempo, passamos a frequentar o litoral ao norte de Salvador, especialmente a praia do Forte, ainda preservada graças ao gênio e à generosidade de um alemão, Klaus Peter. A Casa da Torre de Garcia      D´Ávila ainda paira absoluta ao alto da colina, como marco do início da colonização portuguesa no Nordeste. Abrigou dez gerações que, por três séculos, participaram dos acontecimentos mais relevantes de nossa história e cuja memória ainda se mantém viva nas ruas de Ipanema.[1]

Esse ano, adicionamos um novo destino. Cruzamos a Baía de Todos os Santos para a Ilha de Vera Cruz, mais conhecida por Itaparica. Na terra do inesquecível João Ubaldo Ribeiro, fomos recebidos por queridos amigos e de Mar Grande, com nossa primeira capital, Salvador, bem à frente, da Barra à Ribeira, emoldurada por céu e mar, desfrutamos dos últimos dias de paz e sossego.

Foram dias longe das notícias da televisão, dos jornais e da internet, em que, acompanhado por familiares, amigos e bons livros, reunimos forças para enfrentar a incomensurável violência que assola o Brasil e atinge todos os cidadãos indiscriminadamente.

A deterioração dos valores éticos, a roubalheira desenfreada, o descaso absoluto com o dinheiro público são “balas perdidas” que nos atingem moralmente, combustíveis de um círculo vicioso em que o dinheiro público é desviado, mal gasto, esbanjado e o cidadão-contribuinte chamado para pagar a conta.

Um dos mecanismos escorchantes utilizados pelo Poder Público para incrementar a arrecadação fiscal e cobrir o “rombo” nas finanças públicas são as multas punitivas pelo não recolhimento de tributo, cumuladas, na maioria das vezes, com multas pelo descumprimento de obrigações acessórias.

No plano dos tributos federais, com a banalização das acusações de simulação, as multas de lançamento de ofício tem atingido regularmente o patamar de 150%, quando não são agravadas para 225%, pelo alegado não atendimento de certas intimações[2].

No plano dos tributos estaduais, a legislação do ICMS de São Paulo, por exemplo, contempla multas de 200% (art. 527, I, “m” do RICMS) e de 300% (art. 527, I, “n” do RICMS) pela falta de pagamento de imposto decorrente de falhas informáticas em Equipamento Emissor de Cupom Fiscal – ECF.

No plano dos tributos municipais são frequentes as cumulações de multa pelo não recolhimento de tributos com sanções pelo descumprimento de obrigações acessórias (por exemplo falta de emissão de nota fiscal). Em São Paulo, por exemplo, além da cobrança do ISS, o contribuinte fica sujeito a multa de 200% caso preste serviços sem inscrição cadastral no Município de São Paulo (artigo 13, II da Lei 13.476/2002)

Ora, muitas das autuações em sede de ISS discutem a submissão de certas atividades ao imposto, como é o caso, por exemplo, do licenciamento de direitos. Se o contribuinte entende que aquela atividade per se não é tributável, as faltas de emissão de nota fiscal ou de inscrição cadastral são meras consequências de uma discussão prévia quanto à ocorrência ou não de um fato gerador, e não medidas deliberadas de sonegação. O mesmo se diga dos casos em que se discute qual de dois ou mais municípios é competente para tributar certa atividade. O particular recolhe o ISS em um dado município, mas é autuado por outro(s) que se considera(m) competente(s). É razoável multar pela não emissão de nota fiscal ou por falta de inscrição cadastral quando o contribuinte efetivamente cumpriu suas obrigações acessórias perante o município que considerava competente para o efeito? Parece no mínimo injusto que se sancione uma conduta (falta de emissão de nota fiscal ou de inscrição cadastral) que não foi adotada perante um dado município por uma questão interpretativa que lhe é prejudicial (qual o município competente para tributar).

A falta de razoabilidade das multas fiscais dessa grandeza, acessórios que excedem o valor do próprio tributo devido, e a sua consequente inconstitucionalidade, por violação à proibição do confisco (artigo 150, IV), foi reconhecida muito recentemente, em 25 de novembro de 2014, por decisão unânime da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal no RE 833.106[3], da relatoria do ministro Marco Aurélio, bastante noticiada na mídia[4].

Interessante notar que, no entendimento do ministro relator, a discussão em torno da multa confiscatória não adentra matéria de fato, o que afasta a incidência da súmula STF 279, já que “independentemente dos elementos fáticos envolvidos, considerada a conduta do contribuinte punida, a manutenção de multa tributária acima do valor da própria obrigação principal está em clara desarmonia com a jurisprudência do Supremo”.

A decisão da 1ª Turma apoiou-se em precedentes do Plenário, nomeadamente a Ação Direta de Inconstitucionalidade 551-1/RJ e o Recurso Extraordinário 582.461/SP, com repercussão geral.

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 551-1/RJ, sob a relatoria do Ministro Ilmar Galvão, o Supremo considerou inconstitucionais disposições do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado do Rio de Janeiro que fixavam em 200% e 500%, respectivamente, os patamares mínimos de multas consequentes ao não recolhimento e à sonegação de impostos ou taxas estaduais.

Na ementa desse acórdão consignou-se que “a desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua consequência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, (…)”.

Nos debates daquele julgamento fica evidente a necessidade de se recorrer a um juízo de razoabilidade e proporcionalidade para aferir o caráter confiscatório. Como afirmou à altura com algum humor o Ministro Sepúlveda Pertence:

“Recorda-me, no caso, o célebre acórdão do Ministro Aliomar Baleeiro, o primeiro no qual o Tribunal declarou a inconstitucionalidade de um decreto-lei, por não se compreender no âmbito da segurança nacional. Dizia o notável Juiz desta Corte que ele não sabia o que era segurança nacional; certamente sabia o que não era: assim, batom de mulher ou, o que era o caso, locação comercial.

Também não sei a que altura um tributo ou uma multa se torna confiscatório; mas uma multa de duas vezes o valor do tributo, por mero retardamento da sua satisfação, ou de cinco vezes, em caso de sonegação, certamente sei que é confiscatório e desproporcional”.

Já no julgamento do o Recurso Extraordinário 582.461/SP, com repercussão geral, sob a Relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o Plenário da Corte considerou ser razoável e não confiscatória multa moratória fixada em 20%, tido como patamar adequado à função de punir os contribuintes que não cumprem suas obrigações tributárias, sem, no entanto, inviabilizar inclusive recolhimentos futuros.

A decisão da 1ª Turma atrás citada não é uma novidade na jurisprudência da Suprema Corte[5]. Veja-se, por exemplo, a decisão monocrática proferida no RE 455.017[6] pela ministra Cármen Lúcia, na qual se registra o entendimento firme da Corte de ser aplicável às multas resultantes do inadimplemento de tributos a proibição constitucional do confisco em matéria tributária, esclarecendo que “na espécie vertente, a multa discutida é de 300% (trezentos por cento) do valor do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) devido, ou seja, supera em 100% a multa declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 551, Relator o Ministro Ilmar Galvão, Plenário, DJ 19.10.1991”.

Também na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.075, julgada no ano de 2006, sob a relatoria do ministro Celso de Mello, os mesmos princípios presidiram a decisão da Corte de reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei 8.846/94 que fixava multa de 300% sobre o valor do bem objeto de operação ou serviço prestado sem a emissão de nota fiscal, recibo ou documento equivalente. O princípio da vedação ao confisco, nos dizeres do Ministro Celso de Mello, “(…) nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais básicas”.

Como bem observa o Professor Luiz Emygdio F. da Rosa Jr., inspirado na célebre frase do Juiz Oliver Wendell Holmes, Jr., “a vedação do tributo confiscatório decorre de um outro princípio: o poder de tributar deve ser compatível com o de conservar e não com o de destruir”[7].

A falta de moderação das multas fiscais, impulsionada pela avidez arrecadatória, tem um altíssimo potencial destrutivo que só pode ser impedido pela Suprema Corte.

É o que leciona o seu decano, ministro Celso de Mello:

“O Poder Público, especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente, pois a atividade governamental acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade que se qualifica como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais”.[8]

Moderação, equilíbrio, razoabilidade. Tudo o que os particulares esperam do Poder Público. Lamentavelmente, tudo que há de mais escasso na atuação estatal brasileira nos dias de hoje.


[1] Os personagens da história que viveram na Casa da Torre foram homenageados com seus nomes em ruas de Ipanema no Rio de Janeiro (p. ex. Garcia D´Ávila, Barão da Torre, Visconde de Pirajá, Barão de Jaguaripe).

[2] Art. 44 da Lei n.º 9.430/96.

[3] Publ. DJ 12/12/2014

[4] Cfr. Valor Econômico de 26/1/2015.

[5] Cfr. também AI-482.281-AgR. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJe 21/8/2009).

[6] Publicada em 18/12/2009.

[7] Cfr. Manual de Direito Financeiro e Tributário, p. 320, 10ª ed., 1995, Ed. Renovar.

[8] Cfr. voto na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.075.

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