Retrospectiva 2015

Direito do Consumidor dominou debates jurídicos e na vida social durante o ano

Autor

  • Bruno Miragem

    é advogado e professor dos cursos de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Presidente nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

28 de dezembro de 2015, 6h16

As questões relacionadas ao direito do consumidor dominaram série de debates na vida social e jurídica brasileira em 2015, a exemplo de anos anteriores. Merecem destaque os efeitos da evolução tecnológica e seu reconhecimento pelo Direito, que colocaram em evidência o interesse do consumidor em casos como o aplicativo Uber, ou o avanço da atualização do próprio Código de Defesa do Consumidor no Congresso Nacional, disciplinando o comércio eletrônico e o superendividamento de consumidores. De outro, a discussão sobre os desafios atuais do consumo e dos direitos do consumidor ganham caráter cada vez mais global, o que se refletiu nas discussões, no âmbito das Nações Unidas, e com importante participação do Brasil, na revisão da resolução de diretrizes sobre proteção internacional do consumidor.

Uber e o consumo de serviços na nova economia digital
Sobre o Uber, o início das operações do aplicativo no Brasil dá causa à discussão sobre a possibilidade da prestação de serviços de transporte individual por particulares que não sejam taxistas. Envolve no caso, a discussão sobre a própria natureza do serviço de transporte individual (se apenas pode ser prestado como espécie de serviço público, ou se também se coloca como atividade econômica) e a necessidade de sua regulação. Em sentido mais amplo, coloca em evidência o conflito que se anuncia será cada vez mais frequente, entre a disciplina jurídica de serviços prestados sob regulação tradicional, e os novos modelos de negócio que surgem da economia digital. E da mesma forma, a capacidade dos instrumentos oferecidos pela internet para a organização de cadeias de fornecimento. Há alguns dias, a determinação de bloqueio do aplicativo de comunicação instantânea Whatsapp, em todo o Brasil, por decisão judicial de primeiro grau, tornou-se mais um exemplo desta tensão.

Atualização do Código de Defesa do Consumidor avança
Neste tema, aliás, é de lembrar que se concluiu no Senado Federal, no segundo semestre deste ano, a tramitação dos projetos de atualização do Código de Defesa do Consumidor, versando especialmente sobre os temas de comércio eletrônico e superendividamento de consumidores. Aprovado o texto pelo plenário da Casa, na forma do substitutivo do Senador Ricardo Ferraço, foi enviado, em início de novembro, à Câmara dos Deputados, em continuidade ao processo legislativo. Dentre outros pontos relevantes, destaque-se no tocante à disciplina do comércio eletrônico, a exigência de informações que promovam a transparência dos negócios pela internet, tais como a divulgação de um endereço geográfico e da formalização do fornecedor, por intermédio do cadastro no Ministério da Fazenda (CNPJ). De outro lado, regras que tornem mais operacional o exercício do direito de arrependimento para compras feitas pela internet, de modo a incentivar maior efetividade deste direito já previsto no artigo 49 do CDC.

O efeito da crise econômica, que se torna mais aguda, também se fez sentir em muitos aspectos, justificando as normas previstas no projeto de atualização legislativa do CDC para a prevenção do superendividamento dos consumidores, assim como viabilizar o pagamento de suas dívidas. Em certos setores, por outro lado, a crise fez vítimas entre os fornecedores – caso da quebra da operadora de plano de saúde Unimed Paulistana –, o que exigiu a forte atuação dos reguladores, Ministério Público, órgãos e entidades de defesa do consumidor, para assegurar o direito dos consumidores lesados. O episódio é exemplo, contudo, das dificuldades do setor de saúde privada – sentidas também em relação à atuação da agência reguladora da área – e, em especial, no tocante à pressão dos custos elevados decorrentes do contínuo incremento tecnológico, a exigir, por outro lado, o reforço da transparência e informação aos consumidores, especialmente quando da oferta e contratação dos planos de saúde.  Em relação aos planos de saúde, aliás, refira-se uma importante decisão do STJ, publicada no início do ano, no Recurso Especial 1377899/SP, de que foi relator o ministro Luis Felipe Salomão, pelo qual a Corte reconheceu a responsabilidade solidária pela prestação de serviços de todas as cooperativas médicas Unimed, em vista das expectativas geradas pelo uso coletivo da marca, a gerar confiança dos consumidores de que se trata de um fornecedor de âmbito nacional.

O novo Código de Processo Civil e o direito do consumidor
A promulgação do novo Código de Processo Civil em março (Lei 13.105/2015) despertou a atenção do meio jurídico para sua repercussão nas mais variadas áreas do direito. Em relação ao direito do consumidor não foi diferente. São diversas as questões que produzirão impacto nas demandas sobre relações de consumo, como as relativas à tutela específica da obrigação (art. 497 e ss), sobre incidentes de desconsideração da personalidade jurídica (art. 131 e ss) e de resolução de demandas repetitivas (art. 976 e ss), e as que se referem à distribuição do ônus da prova (art. 373, §§1º a 4º). Da mesma forma, a regra que fixa a competência da autoridade judiciária brasileira para demandas envolvendo relações de consumo quando o consumidor tiver domicílio ou residência no Brasil (artigo 22, inciso II).

O Código de Processo Civil promulgado em 2015, da mesma forma, assenta expressamente soluções construídas pela jurisprudência, como o conhecimento de ofício da nulidade da cláusula de eleição de foro (art. 63, §3º). Por outro lado, oferece subsídio para a solução equilibrada da questão relativa ao conhecimento de ofício de questões pelo julgador de segundo grau, preservando o direito ao contraditório e à ampla defesa das partes (art. 933). Há, aqui, relação direta com a possibilidade de decretação de ofício da nulidade de cláusulas abusivas, previstas no art. 51 do CDC, e a interpretação proposta pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino para a modificação de conhecida Súmula 381 do Superior Tribunal de Justiça, sobre o conhecimento da abusividade das cláusulas abusivas em contratos bancários (Recurso Especial 1.465.832/RS), a ser decidida pela corte.

Incia-se assim, em 2015, período de intensos estudos sobre as repercussões da nova lei processual às demandas de consumo, cuja segura orientação se dará com o amadurecimento da reflexão sobre as novidades que oferece.

Veto à arbitragem de consumo
Ainda no plano legislativo, o advento da Lei 13.129 de 2015, que reformou a lei de arbitragem, renovou o debate sobre a possibilidade e utilidade da arbitragem como modo de resolução de conflitos nas relações de consumo. Foi incluída no texto original da lei, mas objeto de veto presidencial, mantido pelo Congresso Nacional a partir da mobilização dos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. O centro do debate residiu na existência ou não, no sistema de arbitragem adotado no Brasil, de garantias para o consumidor não ser compulsoriamente obrigado a submeter-se ao procedimento arbitral e afastado da tutela do Estado, prevista na Constituição (art. 5º, XXXII). Com o veto presidencial, contudo, resta inviabilizada a arbitragem de consumo no Brasil, segundo interpretação ampla do art. 51, VII, do CDC, que define como abusiva a cláusula contratual que “determinem a utilização compulsória de arbitragem”.

Legitimidade da Defensoria Pública para tutela coletiva
O Poder Judiciário de sua vez, também decidiu importantes questões relativas ao direito do consumidor em 2015. Em relação à tutela coletiva dos consumidores, merece destaque o precedente do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo a legitimidade da Defensoria Pública para tutela de direitos individuais homogêneos de consumidores vulneráveis. Embora afirmada em lei desde 2007 (Lei nº 11.448/2007), a legitimidade ativa da Defensoria Pública para atuação coletiva permanece objeto de acesa discussão doutrinária e jurisprudencial. O art. 134 da Constituição de 1988, ao delimitar a função institucional da Defensoria Pública, estabeleceu (a partir da Emenda Constitucional n. 80/2014), que lhe cabe a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º, da mesma Constituição. Este, de sua vez, refere que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Colocam-se em choque duas concepções: a primeira, mais estrita, que reconhece a legitimidade da Defensoria apenas para defesa daqueles que comprovadamente demonstrem insuficiência de recursos para custear economicamente a defesa de seus direitos (insuficiência econômica); e outra mais ampla, encampada naturalmente, pela própria Instituição, que interpreta a insuficiência de recursos no sentido mais amplo de vulnerabilidade, inclusive organizacional (admitindo-se a defesa de grupos merecedores de tutela, como consumidores, idosos, crianças etc.).

O Superior Tribunal de Justiça, ao decidir os Embargos de Divergência em Recurso Especial 1.192.577/RS, de relatoria da Min. Laurita Vaz, reconheceu – a nosso ver, acertadamente – a legitimidade da Defensoria Pública para ingresso de ação coletiva para tutela de direitos individuais homogêneos de consumidores vulneráveis, em caso que envolvia a proteção do interesse de idosos em relação à operadora de plano de saúde. Sustentou a decisão, sentido mais amplo à ideia de insuficiência de recursos, compreendendo “todos aqueles que, como indivíduo ou classe, por conta de sua real debilidade perante abusos ou arbítrio dos detentores de poder econômico ou político, 'necessitem' da mão benevolente e solidarista do Estado para sua proteção.” A discussão sobre o tema, contudo, não se esgota, considerando que tramita no Supremo Tribunal Federal a ADI 3943/DF sobre o tema.

Proteção de dados pessoais dos consumidores
Também a proteção de dados pessoais esteve no centro de série de discussões em 2015. Durante os trabalhos de revisão das diretrizes das Nações Unidas sobre proteção do consumidor, em Genebra, no início do ano, a proteção de dados pessoais foi tema incluído, por proposta do Brasil, no texto a ser submetido à Assembleia das Nações Unidas. Em julho, o tema teve destaque a partir da divulgação de sites com sedes em países estrangeiros, que ofereciam, parte de modo gratuito, parte mediante pagamento, informações pessoais de brasileiros. Por decisão da Justiça Federal, o acesso a estes sites foram bloqueados. O fato, contudo, revelou a necessidade de melhor regulação do tema no Brasil. A propósito, no segundo semestre de 2015, depois de submeter o texto à consulta pública, o Ministério da Justiça brasileiro concluiu anteprojeto de proteção de dados pessoais e o enviou à Casa Civil para remessa ao Congresso Nacional.

Sobre o tema, ainda, é de mencionar que o STJ editou a Súmula 550, resultante do julgamento ocorrido em 2014 – no regime dos recursos repetitivos –, do Recurso Especial 1.419.697/RS, afirmando que “a utilização de escore de crédito, método estatístico de avaliação de risco que não constitui banco de dados, dispensa o consentimento do consumidor, que terá o direito de solicitar esclarecimentos sobre as informações pessoais valoradas e as fontes dos dados considerados no respectivo cálculo.”

Previdência complementar e o CDC
A previdência complementar teve destaque na jurisprudência brasileira em 2015. O STJ, ao editar, em 2005, a Súmula 321, consagrou o entendimento de que “o Código de Defesa do Consumidor é aplicável à relação jurídica entre a entidade de previdência privada e seus participantes.”  Esse entendimento, por largo tempo, levou à aplicação das normas de proteção do consumidor tanto aos contratos de previdência privada aberta, acessíveis a quaisquer consumidores interessados, quanto àqueles mantidos por entidades fechadas de previdência complementar, de que podem participar apenas quem tenha um vínculo prévio como empregado ou servidor de uma determinada empresa, órgão ou entidade patrocinadora, ou ainda com associações profissionais, classistas ou profissionais que os tenham instituído. O principal argumento em defesa da aplicação  do CDC às relações com entidades abertas e fechadas de previdência complementar foi a vulnerabilidade do participante em relação àquele que organiza e administra o plano de previdência, elemento presente em ambas as situações.

Em 2015, contudo, o STJ, ao julgar na 2ª Seção o Recurso Especial 1.536,786/MG, do qual foi relator o Ministro Luis Felipe Salomão, definiu expressamente – na linha do que vinha sendo sinalizado em outras decisões – que o Código de Defesa do Consumidor não é aplicável à relação jurídica entre participantes ou assistidos de plano de benefício e entidade de previdência complementar fechada. Tal entendimento representou modificação substancial na posição da Corte sobre o tema.

Comemorações pelos 25 anos de promulgação do CDC
O ano que se encerra marcou os 25 anos de promulgação do Código de Defesa do Consumidor (o aniversário da vigência será em março de 2016). Isso deu causa a série de eventos no Brasil e no exterior para registrar a data. Merece destaque, especialmente, a realização do I Congresso Sulamericano de Direito do Consumidor, na cidade de Santa Fé, Argentina, em setembro, com a participação dos mais importantes especialistas latino-americanos. E no mês de novembro, em Brasília, do Congresso Mundial da Consumers International, um dos principais eventos no mundo sobre direitos do consumidor, e do Seminário Internacional promovido pelo Superior Tribunal de Justiça, Centro da Justiça Federal e pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor – Brasilcon – com a coordenação científica do ministro Paulo de Tarso Sanseverino – em alusão a esta importante data.

Em oportunidades de balanço e retrospectiva como aqui se faz, é de registrar o perene protagonismo das questões envolvendo o direito do consumidor na sociedade de consumo brasileira. E a necessidade de desenvolvimento de seus instrumentos para disciplinar as contínuas transformações do mercado de consumo.

Autores

  • Brave

    é doutor e mestre em Direito. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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