Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo angolano (parte 34)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

23 de dezembro de 2015, 10h29

Spacca
1. “Ainda vai tornar-se um império colonial” 
Se a história pessoal de Charles Ralph Boxer (1904-2000) fosse contada daria um enredo muito mais interessante que as narrativas de Ian Fleming sobre o espião James Bond. Educado em Sandhurst, na célebre Real Academia Militar, tornou-se oficial da Inteligência de Sua Majestade. Ferido em combate na invasão japonesa de Hong Kong, foi prisioneiro de guerra até 1945. Fluente em japonês, português, holandês e várias outras línguas orientais, foi nomeado para a Cátedra Camões no King’s College. Converteu-se em uma das maiores autoridades em história colonial portuguesa e holandesa do século XX.

Um de seus livros O império marítimo português é um clássico sobre o tema e, com uma narrativa extremamente saborosa e erudita, tenta explicar como uma pequena nação do extremo ocidente da Europa conseguiu criar do nada um império colonial do Atlântico ao Pacífico no final do século XV. Mais que isso: como conseguiu conservá-lo por 500 anos, a despeito de inúmeras crises dinásticas, bancarrotas, revoluções, proclamação da república e com um número exíguo de militares, marinheiros e governadores civis, sob constante ameaça de novos e mais poderosos impérios, como o britânico e o francês. Ao final de seu livro, cuja primeira edição é de 1969, ele advertia aos que menosprezavam os portugueses, prenunciando que seria o Ultramar Português o último dos impérios a cair e só após muito derramamento de sangue.

Diversos fatores levaram a ruína do império português em África. O prenúncio do fim já ocorrera em 1961, quando 40 mil soldados, aviadores e marinheiros da União Indiana avançaram sobre o Estado Português da Índia (nome oficial do que restara dos territórios lusitanos no subcontinente indiano, a saber, Goa, Damão e Diu), pondo fim a 500 anos de presença portuguesa na região. Aquela invasão abalou a autoconfiança do regime de António de Oliveira Salazar, que resistia à descolonização com o famoso repto de que os portugueses permaneceriam “orgulhosamente sós”, enquanto França, Bélgica e Grã-Bretanha.

Posteriormente, intensificaram as lutas pró-independência nos territórios africanos — Angola, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné, desta vez com o apoio político das antigas metrópoles europeias ou com a “guerra por procuração” travada por movimentos guerrilheiros com ajuda dos Estados Unidos e da União Soviética. Interessava aos soviéticos que os portugueses fossem substituídos por regimes marxistas e, aos americanos, que movimentos guerrilheiros alheios a Moscou vencessem a corrida pelo espólio da era colonial em África lusófona.

A “joia da coroa” de Portugal em África era o território de Angola, que correspondia parcialmente à área que os portugueses começaram a ocupar ainda no século XV, com a expedição marítima de Diogo Cão. Após sucessivos acontecimentos históricos, de entre esses uma breve ocupação holandesa, Angola tornou-se uma zona de interesses minerários e comerciais portugueses no século XX. No entanto, em 1961, coincidentemente o ano da desonrosa rendição do Estado da Índia, as forças guerrilheiras angolanas deflagraram o combate armado contra os colonos portugueses e as unidades militares ali sediadas. A região converteu-se em um misto de Argélia e Vietnã, os palcos das mais expressivas derrotas de forças coloniais ou neocoloniais na segunda metade do século XX. Contra os portugueses lutavam três grupos: a) Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), ligado aos partidos comunistas do Pacto de Varsóvia (União Soviética e Leste Europeu), com população local, mestiça e brancos; b) Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), com apoio norte-americano e bases no território da República Democrática do Congo (antigo Congo Belga, depois Zaire), cujo ditador era Mobutu Sese Seko; c) União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), com elementos nativos, mas de ideologia maoista e com apoio da República Popular da China. Americanos, soviéticos e chineses apostavam nas diferentes facções com esperança de que Angola não caísse em mãos de seus adversários na Guerra Fria. Note-se que os chineses não mais se alinhavam a Moscou.

Em paralelo, o regime salazarista, por meio de novas leis e de uma nova retórica, mudava o status colonial de Angola, que se convertia em estado ultramarino e parte integrante de Portugal. Chega a ser inacreditável que um pequeno e pobre país da Europa haja resistido tanto tempo em uma guerra contra forças que conheciam o terreno e eram financiadas pelas grandes potências da época. Portugal isolava-se cada vez mais na Europa, em franco processo de reorganização comunitária, e no Ocidente, que não aceitava mais o velho modelo imperial. Com maior eficiência que americanos e franceses, as forças portuguesas resistiram por mais tempo nas guerras coloniais, até o colapso do regime agora liderado pelo professor Marcello Caetano, derrubado pela Revolução dos Cravos, de 1974. Jovens militares, que não mais desejavam lutar, os chamados capitães de abril, tomaram Lisboa em menos de 24 horas e logo foram cessados os combates em África.

Os versos de Fado tropical, letra e música de Ruy Guerra e Chico Buarque, de algum modo celebram a Revolução dos Cravos e entoam o lamento pelo Brasil permanecer sob uma ditadura, enquanto os portugueses haviam recobrado a liberdade. O vaticínio para o Brasil era: “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal; ainda vai tornar-se um imenso Portugal; ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal; ainda vai tornar-se um império colonial”.  

2. O mamute abatido: quem herdará Angola?
Quando Balduíno, rei dos belgas, presidiu a cerimônia de transmissão do poder aos congoleses, ele derrubou sua espada. Aquele anticlímax simbolizou a desastrada descolonização do Congo Belga, que seria submetido a uma guerra civil, ao saque e à pilhagem de suas riquezas pelo ditador Mobutu Sese Seko, ele próprio um intermediário de interesses americanos e europeus. Dizia-se que o mamute havia sido abatido e agora se lutava por sua carcaça. O mamute, no caso, era o regime colonial belga.

Em Angola, antes mesmo do total cessar-fogo com os portugueses e a atabalhoada retirada das tropas, que se seguiu a uma fuga em massa da população branca, muitos dos quais se radicaram no Brasil, as forças guerrilheiras começaram a lutar entre si. 

FNLA (Congo e Estados Unidos), MPLA (soviéticos, com soldados cubanos diretamente envolvidos em combate) e UNITA (norte-americanos e militares da África do Sul) deram sequência a uma nova fase da história angolana, que se constituiu em uma sangrenta guerra civil. Formalmente, a independência nacional foi proclamada em 11 de novembro de 1975, dando fim a 500 anos de presença lusitana.

Os combates fratricidas obedeciam a uma lógica tribal, à necessidade do controle das reservas minerais (que ajudariam no financiamento da guerra) e aos imperativos da guerra fria. 

O MPLA, liderado por Agostinho Neto, controlou Luanda, a capital do país, e tentou seguir o modelo de planejamento econômico, partido único e ideologia marxista-leninista. Embora já se estude a mudança do pavilhão nacional, até hoje, a bandeira nacional angolana ostenta uma catana (espécie de facão) e uma roda dentada (sob a forma de um crescente), de modo a lembrar símbolos clássicos do comunismo (a foice e o martelo, representando o campesinato e o operariado).

Financiados por norte-americanos e chineses, a FNLA e  a UNITA prosseguiram na luta contra o regime dominado pelo MPLA até 2002. Praticamente toda a infraestrutura colonial foi destruída, salvo nos grandes centros, milhares de pessoas morreram, além de mutilados com as minas terrestres (especialmente crianças e adolescentes), as riquezas minerais foram desperdiçadas e o país se conservou praticamente sem desenvolvimento até o fim do conflito.

O hegemônico MPLA, em um movimento paralelo ao fim dos regimes comunistas da Europa do Leste, deslocou-se ideologicamente para a social-democracia, embora conservasse os símbolos da era soviética. O enfraquecimento do regime racista em África do Sul também diminuiu o ímpeto da UNITA, ao passo em que a abertura chinesa ao capitalismo reduziu seu interesse pelo conflito, o que atingiu a FNLA. Eleições nacionais foram marcadas em 1992, com a participação das três forças políticas. Com a vitória do MPLA, os líderes da UNITA contestaram os resultados e voltaram aos combates.

Formalmente encerrada a guerra civil, desde 2002 o país tem-se reorganizado intensamente e se tornou, graças ao valor das commodities, especialmente o petróleo, uma espécie de “eldorado” africano. A riqueza angolana foi tão expressiva que membros da elite, especialmente ligados ao MPLA, o partido que comanda a nação até hoje, tornaram-se importantes acionistas de bancos, indústrias e holdings portuguesas. A liderança de José Eduardo dos Santos, que comanda o MPLA e o país desde 1979, é até agora indisputada, embora tenham surgido diversos movimentos de contestação ao sistema político nos últimos anos.

3. Angola, Portugal e o Direito
José Eduardo dos Santos é, sem favor, o grande líder nacional angolano. Só o fato de haver conseguido resistir no cenário político nacional e internacional desde 1979 até hoje é algo nada desprezível. Filho de um pedreiro, Santos é engenheiro de petróleo pelo Instituto de Petróleo e Gás de Baku (União Soviética, atual Ajerbaijão), o que denota seu caráter visionário, dado que a economia nacional é totalmente vinculada aos hidrocarbonetos. Além de ter participado das guerras coloniais, ele subiu na hierarquia do MPLA e soube ser um homem de confiança dos soviéticos, a ponto de ser visto em muitas paradas do Primeiro de Maio nos países da Cortina de Ferro, e, posteriormente, aprendeu as regras do mundo pós-comunista, ao falar a língua dos novos tempos. 

Nos dias atuais, seu modelo sofre diversas contestações internas por forças que defendem mais democracia, maior controle da corrupção e mais transparência. A crise das commodities e a “fadiga de materiais” do MPLA, no poder há quase 40 anos, acentuam esse aparente declínio do regime de Santos. No entanto, é cedo para fazer qualquer prognóstico sobre o futuro desse homem e de seu movimento político.

Santos conserva excelentes relações com a elite política portuguesa de esquerda e de direita. O natural ranço entre metrópole e colônia ainda é muito forte em Angola. O colonizador é o culpado natural de quase todas as mazelas nacionais. A mitificação dos heróis da independência é ainda notável. Não se trata de uma característica angolana, dado ser algo comum a todos os povos que se libertam, embora seja algo bastante sensível em África, dada a forma tardia e mais violenta com que o modelo de exploração colonial se desenvolveu até o final do século XX. Nos últimos anos, Angola viu-se tomada por imigrantes portugueses, em geral profissionais qualificados e mais jovens, em busca de oportunidades em um território lusófono e extremamente favorecido pela maré positiva das commodities.

No âmbito jurídico, os angolanos mostram-se ainda mais ligados a Portugal. Suas instituições universitárias, seus títulos acadêmicos, a estrutura do ensino superior e as referências intelectuais e bibliográficas no Direito são precipuamente portuguesas, a despeito da enorme simpatia dos angolanos pelo Brasil e seu desejo de aproximação conosco.

A partir desta semana far-se-á o estudo do modelo jurídico angolano. Por ser uma nação antiga, mas com uma história de autonomia política muito recente, não há como se imaginar a extração de grandes inovações ou diferenças, capazes de tornar seu modelo particularmente distinto em relação ao português, que já foi objeto de colunas nesta série. Seja pela irmandade histórica, linguística e étnica, é por demais relevante estudarmos como se encontra a realidade da formação jurídica em Angola, uma nação lusófona e que nutre tanto respeito e interesse pelo Brasil. Além, é claro, de ser uma oportunidade de conhecermos um pouco mais do continente africano.

*** 

Aos leitores, peço desculpas pela negligência em manter a regularidade da coluna. Algumas circunstâncias profissionais impediram-me temporariamente de conservar-me fiel a nosso compromisso semanal. Espero que, em 2016, o ritmo de minhas contribuições seja plenamente restabelecido. O nível de pesquisa para esta série sobre ensino jurídico, no entanto, exige deste colunista um esforço além do normal e, nesses casos, quando não se pode falar, é melhor silenciar, como diria aquele famoso filósofo austro-húngaro do século XX.      

Agradecido por vossa companhia, desejo a todos excelentes festas de Natal e de Ano Bom. As senhoras e os senhores são fonte permanente de estímulo para que eu mantenha o propósito desta coluna. Esses votos são extensivos aos colegas colunistas e também aos insuperáveis membros da redação da revista Consultor Jurídico.

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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