Retrospectiva 2015

O ano foi de ativismo e
não terminará tão cedo

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22 de dezembro de 2015, 6h43

Esta retrospectiva começa pelo final. Começa pelo ranking de notícias da ConJur do dia 19 de dezembro. Enquanto Pindorama pegava fogo com a votação do rito do impeachment no STF, a notícia mais lida na semana foi a do bloqueio do WhatsApp. Aliás, o julgamento do STF, os votos de Fachin e Barroso, não figuraram no rol das dez notícias mais lidas. Isso é emblemático. Parece que as brumas da política e da economia obnubilaram o interesse da própria comunidade jurídica.

Com efeito, os leitores devem ter suas razões. Afinal, foi um ano cheio…de confusões. E de derrocada política. E econômica. O fracasso subiu à cabeça de Pindorama. Embora a crise seja fundamentalmente política, é óbvio que a economia vai-e-vai até que começa a desandar. Em um segundo momento — que não sei se já alcançamos — o raciocínio para explicar a(s) crise(s) será tautológico, tipo Dilema Tostines, o biscoito acerca do qual não se sabia se vendia mais porque era fresquinho ou se era fresquinho porque vendia mais: a crise econômica é dessa gravidade por causa da crise política ou a crise política se agravou em face do acirramento da crise econômica?

Passeando ao largo, mas penetrando nas brechas da institucionalidade, o Poder Judiciário e o Ministério Público colocaram gasolina na fogueira (das vaidades deles e dos Poderes). Foi o ano do ativismo. Ou o ano em que ele ficou mais escancarado. Esculpido em carrara ou cuspido e escarrado. O ano que simbolicamente vai demorar muito para terminar. Porque os efeitos de 2015 penetrarão nas frestas de 2016 e quiçá até 2018.

Veja-se o paradoxo: ao mesmo tempo em que temos de aplaudir o combate à corrupção e à criminalidade do colarinho branco, temos que nos preocupar com a onda moralista, consequencialista e teleologista que tomou conta do Judiciário e do Ministério Público, lato sensu falando (clique aqui para ler). Ou alguém quer algo mais moralista do que os dez pontos do Ministério Público Federal apontando para uma espécie de “limpeza ética-moral” que deve começar por uma espécie de eugenia personae na entrada do funcionário nos quadros do Estado? Só não está claro se isso se aplica ao próprio MP e à magistratura. Ou seria algo como um pressuposto neopositivista: do conjunto dos enunciados aos quais eu me refiro, este que eu proferi não faz parte?

Bom, do lado do judiciário, 2015 transformou o Juiz Sérgio Moro em pop star. E, vejam: não há juízo moral-depreciativo no que estou dizendo. Eu mesmo tive a oportunidade de constatar a receptividade do público para com ele. É tratado como um herói. Claro: tudo isso exsurge de um crescente ativismo da parte dele. Despiciendo falar, nesta altura, das queixas dos advogados acerca do modus operandi consequencialista de Moro. Neste caso, a Operação Lava Jato demonstra bem o que é fazer raciocínios por política[1] e não por princípio (por favor, a diferença entre política e princípio não é a do conceito vulgar ou corriqueiro de política — clique aqui para ler). A delação premiada está colocada como o pomo de ouro dessa fenomenologia, queiramos ou não. Seu (ab)uso é/foi-tem-sido o busílis da questão. E os prêmios da delação estão sendo muito bons, pois não? Que o diga a Dra Cata Preta. Já no plano dos delatores, houve até quem conseguiu trocar uma pena de 13 anos por um ano com tornozeleira, em casa. Bingo!

Mas, vejamos: 2015 também foi o ano de boas discussões sobre o “porquê” de o ativismo ter crescido tanto – sendo a lava jato o locus privilegiado para a análise desse estado d’arte. Alexandre Morais da Rosa escreveu sobre isso, perguntando “Como ensinar processo depois da lava jato” (clique aqui para ler), ao que respondi dizendo que “Já não ensinávamos processo antes da lava jato” (clique aqui para ler). Esse meu ponto de vista deixei muito claro justamente no debate que fiz com Sérgio Moro no IBCCrim no final de agosto deste ano que vai demorar para terminar. Ali mostrei que o furo da crise era bem mais embaixo. Sem discutir paradigmas não chegaremos a algum ponto de referência para entender a crise do direito. Sem discutir o papel da doutrina e sem criticar a jurisprudencialização do direito (veja-se a febre da fabricação dos enunciados, que nada mais é do que a jurisprudencialização idealizada por setores da doutrina que querem repristinar a velha Begriffjurisprudenz), ficaremos apenas fazendo como o corsário alemão: afundando e atirando.

Para não esquecer: 2015 não foi o ano da construção de uma doutrina sobre o habeas corpus. Continuamos a não ter como resolver o problema de ingressar com recurso ordinário (RHC) e conseguir uma “espécie de liminar”. É um calvário para o pobre réu conseguir algo depois que perdeu em segundo grau. No STF tem de rezar para que não conheçam do habeas e o concedam de ofício. Ao que consta, para 2016 nada se apresenta no horizonte para mudar isso.

Em suma, 2015 foi um ano em que o PGJ (Privilegio Cognitivo do Juiz) atingiu a sua mais alta cotação na BED (bolsa epistêmica do direito). Isso se viu claramente nas disputas teóricas sobre o NCPC que foi sancionado neste ano. Muita gente dizendo que se tiver que cumprir o artigo 489, irá se mudar para outro país. Neste ano de 2015 tive saia justa em discussão com o juiz Xerxes no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) (clique aqui para ler), sendo praticamente salvo pela palestra posterior do Ministro Teori Zavascki, que disse uma coisa óbvia — mas que tinha que ser dita: a fundamentação é condição de possibilidade de qualquer decisão e está na Constituição. O artigo 489 apenas “regulamenta” o artigo 93, IX da Carta. Bingo de novo. Também neste-ano-que-vai- demorar-para-acabar houve uma grita em torno do artigo 371 do novo CPC, em face da expunção do livre convencimento. Houve gente que disse que não tem qualquer importância o legislador colocar ou não o “livre” no CPC. Ele sempre continuará. Pois é. Por isso 2015 vai se estender talvez por décadas. Tal qual o assustador personagem Jason, do filme Sexta Feira 13, ele não morre(rá). Sísifo e o direito: eis um bom tema que dá mostras de 2015: condenados a carregar a pedra até o topo e fazer tudo de novo no dia seguinte, enquanto a “torcida” fica olhando dizendo que “isso é assim mesmo”. Mitos, sacralizações, falta de secularização, tudo isso dá o caldo do direito de 2015.

Nesse sentido, passei o ano de 2015 denunciando esse PCJ em todas as áreas do direito, isto é, chamando a atenção para o fato de achamos bonito, lindo e fofo quando o judiciário, contra o código civil e a Constituição, concede metade da herança para a amante; achamos fofo quando uma criança tem 6 avós, 3 pais, 2 mães, etc. Só não gostamos quando esse ativismo é contra nós. Eis o busilis. Assim é com relação às garantias processuais penais. Elas são em demasia…para os outros. Quando as invocamos a nosso favor, são insuficientes…

2015 foi o ano em que parte da comunidade jurídica se requestionou acerca das razões pelas quais chegamos a esse ponto, em que virou lema a tese de que os juízes primeiro decidem e depois fundamentam, circunstância que transforma o ato de decidir em um ato de vontade de poder, repristinando o lado “b” da Teoria Pura do Direito. Daí a pergunta (que, se não foi feita, deveria tê-lo sido): Como lidar com esse cenário agora? Nesse quadro de crise da dogmática jurídica, com um ensino jurídico absolutamente massificado e estandardizado – parcela expressiva de alunos que cursam direito leem apenas resumos e livros de baixa densidade intelectual – o horizonte não é bom. A dogmática jurídica se contentou, historicamente, com o menos. Com restos de sentido. Ficou do senso comum teórico. Os juristas (lato sensu) nunca tiveram grandes preocupações com a livre apreciação da prova no processo penal e com o livre convencimento no cível e outras áreas. Sempre pensaram que era possível fazer dogmática jurídica sem teorização profunda e/ou sem filosofia. Por isso até hoje tem gente que faz tese de doutorado sobre agravo de instrumento (a menção é meramente exemplificativa-simbólica). Claro: pensam que o direito é uma mera técnica, uma simples instrumentalidade, bastando que se faça uma justificação a posteriori daquilo que se decidiu segundo uma racionalidade ainda não-secularizada e, quiçá, pré-moderno, em que os dois corpos do rei continuam absolutamente incindidos. Claro: há um momento em que o sapato aperta. A operação lava jato é um sintoma do calo e da bolha que o aperto do sapato está provocando. Por isso a minha explicitação de que já não se ensinava processo antes…

O ano de 2015, portanto, foi o ano em que cresceu a unha do ativismo. Isso apareceu facilmente em diversas esferas e, é claro, na Suprema Corte. Ministros como Roberto Barroso deixaram claro o papel de vanguarda iluminista (“empurrar a história, como ele diz) que deve ser assumida pelo STF. Por outro lado, um conjunto de decisões escancararam esse debate “ativismo” versus “maior contenção” ou o nome que se dê a uma posição antiativista (clique aqui para ler). Nesse sentido, um dos temas mais emblemáticos e que representa um forte elemento simbólico naquilo que caracterizou o ano de 2015 – o ativismo – pode ser visto na recepção da tese do ECI – Estado de Coisas Inconstitucional (clique aqui para ler). De todo modo, uma coisa parece ter ficado clara: se pegarmos a ideia do romance em cadeia de que fala Dworkin, em que as novas decisões devem ser capítulos do mesmo romance e não um conto que parte de um grau zero de sentido, é possível afirmar que o STF escreveu uma quantidade imensa de novos contos no ano. Poucos romances e muitos contos. Isso é facilmente perceptível, por exemplo, se pegarmos os perfis que Cass Sunstein traça para a Suprema Corte norte-americana (que retratei aqui, criticamente). Se em um caso determinado ministro do STF deu um voto conforme o perfil “herói”, em outro julgado proferiu um voto “soldado”. Assim, nem todos que se comportaram como “persona heroe” no Estado de Coisas Inconstitucional, assumiram o mesmo perfil na ADPF do impeachment. E quem assumiu o perfil de “soldado” no caso do julgamento da permissão de entrada no domicílio a noite em crimes permanentes, assumiu o perfil “herói” ou “minimalista” no caso do impeachment (volto sobre a ADPF do impeachment ao final).

Sigo. A fabricação de princípios continuou a pleno vapor no ano que vai-demorar-a-terminar. Como o dólar, a bolsa pamprincipiológica atingiu a maior marca na BED (bolsa epistêmica do direito). Além de inventarem mais e mais princípios, a afetividade foi a ação da bolsa que mais rendeu. Nesse sentido, foi muito bem vinda a visita dos professores alemães que renderam esta coluna e que é autoexplicativa.

A prisão do senador Delcídio e a hermenêutica feita para a atribuição de sentidos de determinados conceitos deveria, de imediato, colocar a comunidade jurídica em palpos de aranha. Os juristas deveriam fazer congressos específicos para se perguntarem: o que é isto — os limites semânticos da Constituição? Essa questão voltou à baila no julgamento da ADPF proposta pelo PCdoB para o rito do impeachment. Interessante que as alusões à literalidade da Constituição apareceram várias vezes. E o argumento da clareza do texto foi esgrimido várias vezes, e por ambas as posições. Por exemplo, estava claro para as duas posições (a decisão foi 8×3) no sentido de que a Constituição estabelece que o Senado pode não acatar a decisão proferida por dois terços pela Câmara…mas também estava claro, para os três votos minoritários, que o Senado não tem esse papel. De novo: quando podemos e devemos lançar mão da “literalidade”? Por que isso continua importante? De minha parte, escrevi muito já sobre isso (clique aqui para ler), para defender os limites hermenêuticos dos textos (e a legalidade constitucional, na linha de Eliaz Dias). Aliás, minha pregação é tipo-gadameriana: se queres dizer algo sobre um texto, deixe primeiro que o texto lhe diga algo.

Também o “ano Jason” foi o ano em que se demonstrou que em Pindorama erra-se até mesmo as previsões sobre o que passou. Aqui a tese hegeliana de que a ave de minerva só levanta voo ao entardecer não funciona, por uma razão simples: Minerva se mudou daqui. Ou mataram a ave com um tiro de espingarda (embora até tenham proibido a caça com base no princípio da…dignidade da pessoa humana). Pois não é que o NCPC, antes de entrar em vigor, foi alterado substancialmente no que se refere aos recursos, tendo o parlamento, a pedido da magistratura, aplicado a tese do filme Il Gattopardo: há que se mudar para que fique tudo como está. Pois é. Tudo voltou a ser o que já foi. Como diz a mãe de um grande Amigo meu: nem tudo o que parece é; mas se é, parece! Ah, parece, sim!

Eis porque é impossível terminar a retrospectiva sobre 2015. Talvez porque o “ano Jason” jamais terminará. O próprio pedido sobre o afastamento de Eduardo Cunha ficou para 2016. Quem sou eu para colocar uma pá de cal nesse longo e interminável ano?

Feliz Natal. E Feliz Ano Novo-que-vem-depois-desse-2105-que…o resto cada um sabe!

Escrito na Dacha de São José do Herval, em que, por alguma razão, algumas árvores e flores, enganadas pela natureza, "pensam" que a primavera vai de agosto a janeiro! Nem elas estão entendendo o tempo!


[1] Um exemplo de decisão por políticas (no sentido dworkiniano da palavra): dia 30 de julho 2015 foi indeferido do Habeas Corpus de um acusado na operação lava jato preso há mais de 500 dias, quando o prazo estabelecido, ainda em 2009, pelo Conselho Nacional de Justiça é de 168 dias na Justiça Federal. Disse o relator do TRF4: O excesso de prazo estava justificado porque o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “um pequeno atraso na instrução, justificado pelas circunstâncias, não conduz ao reconhecimento do excesso de prazo. Nesse ponto, vige o princípio da razoabilidade…”.

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