Direito de Defesa

Delação premiada não evita a perda de bens provenientes do crime

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22 de dezembro de 2015, 7h00

Spacca
A delação premiada tem por base uma negociação pela qual o colaborador confessa o delito e ajuda no esclarecimento dos fatos em troca de certos benefícios. A Lei 12.850/2013, a mais completa sobre o instituto, indica estes benefícios, desde o perdão judicial até mudanças significativas no regime de execução da pena.

No entanto, em recentes acordos de colaboração, algumas vantagens concedidas aos réus ou investigados não estão dentre aquelas previstas na lei. Nada impede que as partes na negociação acertem benefícios extras, com base na analogia, nos princípios gerais de direito, ou em interpretação teleológica, desde que controladas e homologadas pelo juiz competente. Porém, algumas destas concessões adicionais merecem reflexão.

Dentre elas, a polêmica admissão que o acusado/investigado mantenha em seu poder uma parcela dos valores obtidos com a atividade criminosa. Há quem defenda ser possível — no âmbito de negociação — a preservação de bens e produtos provenientes do crime, mantendo parte desse patrimônio ilicitamente auferido na titularidade do réu colaborador. Essa cláusula já surgiu em acordos recentemente firmados, e foi inclusive objeto de debates judiciais[1]. A nosso ver, tal tese merece reparos, diante da posição jurídica do réu colaborador.

O delator, em regra, é réu em ação penal e seu acordo não impede o processo e a condenação. A delação apenas reduz a pena ou modifica a forma de seu cumprimento, mas não afasta a condição do colaborador de condenado pela Justiça — a não ser em casos excepcionais previstos na própria lei. Ora, se ele é condenado e sofre uma pena, todos os efeitos dessa pena devem persistir.

Portanto, essencial para o deslinde da questão compreender quais são os efeitos da pena.

Pelo Código Penal, a condenação gera uma série de efeitos sobre os direitos do réu, para além da própria sanção penal. Há efeitos genéricos, previstos no artigo 91 do Código Penal, cuja aplicação é automática, ou seja, independe de decisão judicial motivada. São os seguintes: (i) tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; e (ii) a perda dos instrumentos ou produto do crime.

Por outro lado, existem os efeitos específicos, de aplicação não automática, cuja incidência exige motivação concreta do juiz, previsto no art.92 do Código Penal. São eles: (i) a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo; (ii) a incapacidade para o exercício do pátrio poder e similares; (iii) a inabilitação para dirigir veículo.

Feita tal digressão, voltemos à colaboração.

Se o colaborador é condenado – ainda que a uma pena menor por conta do acordo – os efeitos genéricos ou automáticos da pena (CP, art.91) devem ser aplicados. A pena existe, foi reconhecido o crime e as condições de punibilidade, de forma que as consequências previstas em lei são aplicáveis.

Assim, em sendo a perda do produto do crime ou de qualquer bem que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso um efeito automático da pena, deve incidir. Como ensina Reale Jr., “a perda do produto do crime, em favor da União, é decorrência de não se permitir a locupletação do condenado por meio da prática delituosa, impedindo-se o sucesso econômico do crime”[2]. Assim, o produto do crime não pode permanecer com o colaborador, sob pena de desprestígio do próprio Poder Público, que reconhece o delito, a origem criminosa dos bens, e os mantém na titularidade do condenado, em uma espécie de limpeza de bens na forma de recompensa. Note-se que não se trata aqui de abrandar ou perdoar a pena pecuniária ou de multa, perfeitamente admissível porque se trata de evitar a perda de bens de origem lícita. Trata-se de admitir que o condenado permaneça com bens oriundos do crime, produzidos pelo crime, o que não parece adequado sob qualquer aspecto político criminal.

Não se aplica aqui o raciocínio de “quem pode o mais pode o menos”, pelo qual se é possível mitigar a pena, também é admissível abrandar os efeitos da pena. Talvez tal premissa tenha validade para os efeitos não automáticos da pena (Código Penal, artigo 92), já descritos como aqueles que o magistrado pode ou não aplicar, ou seja, sobre os quais tem discricionariedade[3]. Assim, é possível negociar a perda de cargo, função ou mandato eletivo; a incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela ou curatela; a inabilitação para dirigir veículo – uma vez que nesses casos os efeitos da pena não são automáticos, devendo ser motivadamente declarada na sentença a razão de sua incidência.

No entanto, os efeitos automáticos da pena previstos no artigo 91 do Código Penal são indisponíveis. Portanto, a perda do produto do crime — enquanto efeito automático – acompanhará sempre a pena, independente da vontade ou motivação do magistrado. Nesse campo não há espaço para a discricionariedade judicial. Do contrário, seria possível às partes na colaboração negociar a não aplicação do inciso I do mesmo artigo 91 — tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime — dispondo arbitrariamente sobre direito da vítima. Ou dispor sobre a perda da primariedade do réu, uma vez ela também é um efeito automático da pena (ao menos da maior parte delas).

Por isso, a nosso ver, qualquer condenação — mesmo a do colaborador enseja os efeitos previstos no artigo 91 do Código Penal, de forma que o acordo que proteja o produto ou do instrumento do crime é incompatível com a legislação pátria[4].


[1] Vale mencionar que o próprio STF tratou do tema nos autos do HC 127.483, reconhecendo que a matéria exige maior reflexão.
[2] Reale Jr., Instituições, p.476
[3] Reale Jr., Instituições, p.473.
[4] Esse raciocínio não vale para os acordos que envolvam a “não denuncia” do colaborador, previstos na lei quando ele (i) não for o líder de organização criminosa, e (ii) for o primeiro a prestar efetiva colaboração. Nesses casos, é possível negociar a manutenção de patrimônio, uma vez que não existirá a condenação, e, portanto, pode faltar o juízo sobre a origem ilícita do patrimônio.

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