Estado da Economia

Existe, realmente, um aumento estrondoso de renúncias tributárias?

Autor

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

20 de dezembro de 2015, 9h57

Spacca
Os estudos da Receita Federal do Brasil, responsável por estimar os gastos tributários indiretos (renúncias de receita), demonstram que os últimos governos federais se valeram, com maior vigor, dos incentivos tributários baseados em renúncia. Recente publicação, que teve repercussão na imprensa[1], explicitou que o governo federal atual ampliou o volume das renúncias: já seriam, em cinco anos, R$ 342 bilhões.

Esses estudos quantitativos permitem a apresentação de muitas questões: (i) qual o perfil dos programas que representam renúncia tributária?; (ii) eles realmente demonstram um uso exacerbado por parte do governo federal? (iii) quem está avaliando a eficiência e efetividade desses programas?

Conforme temos apresentado em nossos textos desta coluna, o uso de gastos tributários indiretos como instrumento de política econômica pode ser analisado a partir de fases ou aspectos como (i) estudos para a elaboração da medida; (ii) implementação da medida; (iii) governança executiva da medida; (iv) fiscalização interna e externa da medida e (v) análise da eficiência e efetividade da política. No texto de hoje, gostaria de comentar a problemática da própria definição de quais leis representam um gasto tributário indireto.

Como já definimos em nosso primeiro texto nesta ConJur[2], os gastos tributários podem ser definidos como “gastos indiretos do governo que configuram renúncia de receita e que se valem da legislação tributária para atender a objetivos econômicos e sociais”. “Trata-se uma forma indireta de os governos atuarem na economia, renunciando à parcela da arrecadação de tributos a partir de normas tributárias que criam desvios sobre a tributação padrão (isenções tributárias, regimes específicos etc), permitindo que o valor poupado dos contribuintes possa induzir comportamentos ou atender às suas necessidades”.

A análise da eficiência e da efetividade dos gastos tributários indiretos e sua governança executiva começa pela própria escolha de quais gastos realmente devem ser considerados como tal. Apesar do meticuloso trabalho realizado pela Receita Federal do Brasil ao definir, enumerar e quantificar todos os gastos tributários, sua classificação não está isenta de críticas quanto à inclusão de certas medidas tributárias como renúncia de receitas. Se a intenção de um estudioso for realmente avaliar as medidas, a análise da eficiência e efetividade começa por essa reclassificação.

A pesquisa em torno dos principais gastos tributários demonstra a necessidade dessa revisão. Se utilizarmos o estudo referente ao ano de 2012, que leva em conta os dados de renúncia efetiva, percebemos que os principais gastos tributários sequer deveriam ser considerados como tal, já que ora representam regimes tributários alternativos concretizantes de mandamentos constitucionais (tributação das pequenas e médias empresas no Simples Nacional), ora representam verdadeiras desautorizações de tributar (ausência de competência para tal), como ocorre no caso da Zona Franca de Manaus e reflexos de imunidades (entidades sem fins lucrativos) ou deduções de impostos que permitem adequar a incidência do tributo sobre o real fato gerador (exclusões da renda da pessoa física, por exemplo).

Ora, a soma das seis principais medidas que foram denominadas como renúncias tributárias totaliza R$ 132,2 bilhões, correspondente a espantosos 72,4% do que são chamados de gastos tributários. Apenas essa pequena e possível reclassificação já demonstra o quanto o alarde de que há excesso de intervencionismo estatal por meio de tributos por esse ou aquele governo precisa ser melhor ponderada, ainda que se exclua dessa lista a desoneração da cesta básica (7,28% das renúncias totais).

Veja-se a tabela abaixo, obtida nos estudos da Receita Federal do Brasil[3]:

Principais gastos tributários — estimativas bases efetivas 2012:

Gasto Tributário

Valor

%

Simples Nacional

53.534.421.403

29,35%

Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio

20.897.120.051

11,46%

Entidades Sem Fins Lucrativos – Imunes/Isentas

17.173.479.355

9,41%

Rendimentos Isentos e Não Tributáveis – IRPF

15.301.890.659

8,39%

Agricultura e Agroindústria – Desoneração Cesta Básica

13.271.729.781

7,28%

Deduções do Rendimento Tributável – IRPF

12.012.166.860

6,59%

 

132.190.808.109

72,48%

Se a mesma análise for feita com base no Demonstrativo de Gastos Tributários (DGT) de 2015 (expectativa de renúncia, sem dados efetivos), os resultados não serão tão diferentes, os principais programas, excetuando-se a desoneração da folha de pagamento (verdadeira política que representa um gasto tributário indireto), totalizam R$ 184,74 bilhões (que correspondem a 65,4% do montante considerado renunciado)[4].

Essa problemática de definição do que realmente deve ser considerado gasto tributário não passou despercebida no próprio processo de fiscalização externa realizada pelo Tribunal de Contas da União, que recomendou:

“9.4. recomendar à Secretaria da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda que divulgue em seu sítio na internet os cadernos metodológicos que explicitam a forma de cálculo de cada item do Demonstrativo de Gastos Tributários e, também, os pressupostos utilizados para enquadramento da desoneração como gasto tributário, com o fim de conferir transparência à metodologia de cálculo das previsões de renúncias tributárias constantes desse demonstrativo;”[5]

O gasto tributário indireto deve ser uma renúncia tributária que conjuga dois elementos: (i) uma norma jurídica que represente um desvio ao sistema tributário de referência e que possua (ii) um caráter semelhante ao do gasto público direto, mas que se vale da forma indireta, representativa da perda de arrecadação tributária potencial em favor de uma disponibilidade econômica dos contribuintes, que não foram obrigados a recolher o tributo alvo da medida.

Assim, não se deve considerar como tal as medidas que foram decididas pela Congresso Nacional na promulgação da própria Constituição. Se a União Federal não detém competência tributária para criar uma incidência sobre certas pessoas ou objetos, a obediência à Constituição não é política econômica de renúncia tributária (Zona Franca de Manaus e imunidades, por exemplo), ainda que outros países tenham constituições que não tratam do assunto ou que permitem tal tributação.

Do mesmo modo, se o gasto tributário deve ser um desvio de um sistema tributário de referência, esse sistema não pode ser eleito a partir de um modelo internacional qualquer. Ele deve representar, sem rodeios, o sistema de normas positivadas no Brasil. Se há um conjunto de normas tributárias que prescreve regimes tributários específicos para determinadas categorias de contribuintes ou bens, sem representar verdadeira isenção tributária, mas apenas regimes alternativos, tais regimes alternativos devem ser considerados como regimes logicamente (e não necessariamente cronologicamente) simultâneos e não renúncias tributárias.

Nesse sentido, a escolha de setores econômicos ou conjunto de receitas que estão submetidas ao regime cumulativo de tributação pelo PIS e pela Cofins não deve ser, de imediato, considerada como renúncia tributária (construção civil, por exemplo). O mesmo vale para a tributação diferenciada para empresas de pequeno porte. Além de se tratar de concretização de mandamento constitucional[6], já há uma tradição em tributar de forma progressiva a renda ou receita de pessoas jurídicas (lucro real com adicional de alíquota a partir de um valor; lucro real sem adicional; lucro presumido e Simples Nacional).

Não há dúvida que o manejo legal da tributação simplificada para as empresas de pequeno porte representa uma política tributária. Mas há severas dúvidas, por outro lado, se a existência de um grupo de contribuintes tão amplo sujeitos ao regime simplificado seja de fato um desvio do sistema de referência ou a escolha do legislador por ter mais de um regime tributário por categoria econômica. A distinção, certamente, não é trivial e merece nossa atenção. Isso, sem contar as renúncias que nada mais significam do que a mera atualização de valores (tabelas de faixas de alíquotas, exemplificativamente).

A conclusão parece ser que a adoção de qual será o sistema de referência, para se buscar desvios que signifiquem renúncias tributárias deve ser feita de forma cuidadosa, levando em conta não um potencial de arrecadação imaginário que não está no campo da competência do ente da federação ou que signifique a escolha por regimes alternativos e simultâneos de tributação.

Essa análise minuciosa de cada item dos gastos tributários indiretos permitirá a seleção das verdadeiras intervenções que se valem de renúncias tributárias, uma maior cobrança pela governança executiva e, sobretudo, o estudo da eficiência e efetividade de cada gasto tributário.

Em nosso próximo texto desenvolveremos a temática das dificuldades dessa avaliação de eficiência e efetividade e a ausência de volume de estudos sobre o tema e da necessidade de avançarmos nessa direção.


[1] Veja, por exemplo, a notícia sobre o estudo da Receita Federal no blog de Fernando Rodrigues em http://fernandorodrigues.blogosfera.uol.com.br/2015/11/04/desoneracoes-sob-dilma-ja-somam-r-342-bilhoes/
[2] http://www.conjur.com.br/2015-ago-30/estado-economia-politica-gastos-tributarios-indiretos.
[3] Ver em https://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/gastos-tributarios/demonstrativos-dos-gastos-tributarios/arquivos-e-imagens/dgt-bases-efetivas-2012-serie-2010-a-2014-final.pdf, página 39. Acesso em 19/12/2015.
[4] http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/gastos-tributarios/previsoes-ploa/arquivos-e-imagens/dgt-2015.
[5] Decisão do Plenário de 14/05/2014, AC-1205-16/14-P, TC 018.259/2013-8, pp. 6 e ss e 57.
[6] “Art. 146. Cabe à lei complementar:
(…)
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
(…)
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso III, d, também poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado que: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
I – será opcional para o contribuinte; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
II – poderão ser estabelecidas condições de enquadramento diferenciadas por Estado; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
III – o recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição da parcela de recursos pertencentes aos respectivos entes federados será imediata, vedada qualquer retenção ou condicionamento; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
IV – a arrecadação, a fiscalização e a cobrança poderão ser compartilhadas pelos entes federados, adotado cadastro nacional único de contribuintes. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)”

Autores

  • é Professor Associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente em Direito Econômico e doutor em Direito Econômico e Tributário pela USP. Foi pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique, Alemanha.

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