Diário de Classe

Por que juízes devem decidir por princípio? Sciascia e a lição do "pequeno juiz"

Autor

19 de dezembro de 2015, 7h01

Spacca
Semana difícil. Judicialização em foco. Decisões para todos os lados. Decisão “solado”, para usar a classificação de Sunstein, é a coisa mais corriqueira em todos os tribunais, quer dizer, a decisão vai no sentido de reproduzir a jurisprudência predominante, sem o devido distinguish. Ou, então, decisões onde imperaram argumentos morais dos julgadores. Ou, ainda, acórdãos que encampam o discurso de que as cortes estaduais são meros tribunais de passagem.

Leonardo Sciascia foi um importante intelectual e renomado escritor da Itália do século XX. Nasceu em 1921, na Sicília, em um pequeno vilarejo chamado Racalmuto, na província Agrigento. Um romancista que, através de suas obras, denunciou em tons pastéis a bruta realidade do período histórico em que viveu, a Itália fascista. Naquele contexto, os intelectuais eram obrigados a assumir uma posição frente ao cenário político e social. Sciascia escolheu narrar.

Em uma das últimas de suas obras, Porte aperte (Portas abertas, ed. Rocco), novela publicada em 1987 (cuja leitura nos foi indicada por Luigi Ferrajoli), Sciascia traz profundas reflexões sobre o direito e razão. A narrativa envolve uma discussão sobre a pena de morte, tendo como pano de fundo um caso verídico: o julgamento, realizado em 1937, de um homem acusado de um triplo homicídio. Tal obra ganhou destaque internacional, no início da década de 90, com a produção do filme Open doors [no Brasil, As portas da justiça], de Giane Amelio e Angelo Rizzi, que conquistaram o prêmio de filme do ano no European Film Award for Best Film, concedido pela Academia de Cinema Europeu.

Por que estamos relembrando disso? Porque, além da discussão em torno da restauração da pena de morte (assista aqui), a narrativa contém uma importante reflexão acerca do que significa julgar, mais especificamente sobre decidir por princípio. Aliás, sobre este livro, cuja leitura é imprescindível aos juristas, o professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho escreveu um belíssimo ensaio acerca do lugar do poder do juiz (confira aqui).

Vejamos o diálogo entre o procurador-geral e o pequeno juiz (como o protagonista é chamado), após o júri absolver o acusado da pena de morte:

— Sinto muito, acredite, fico realmente sentido: mas é um fato… Aqui está: ontem recebi a cópia do recurso do advogado Ungaro. Pedi-a para compará-la com o recurso da nossa repartição: Ungaro é um grande advogado… Pois bem, a sentença do Tribunal Criminal do qual o senhor participou é apresentada como o fruto de pietismo equivocado e atribuída à aflição e à perplexidade do júri. Diante da gravidade da pena, afirma, não se levou na devida conta a gravidade do crime: violou-se, portanto, a lei e não se fez justiça. Como o senhor sabe, eu estou perfeitamente de acordo com ele: mas eu sei, como todos sabem, e talvez ele mesmo saiba, que o elemento leigo, como ele chama o júri, rendeu-se à opinião.

— Minha: é isto que o senhor quer dizer?… Mas não se rendeu coisa nenhuma: já tinha o que o senhor chama de opinião e eu chamo de princípio. E é um princípio de tal força, o contrário à pena de morte, que dá para sentir que se está certo mesmo que se fique sozinho a defende-lo… Não tenho motivos de queixa, portanto, se alguém quer acreditar que eu manipulei a tal ponto as razões para não se aplicar a pena de morte até conseguir convencer um júri renitente… Só que, em honra e defesa do júri, posso dizer que ele não era nem um pouco renitente”.

No fundo, o procurador-geral oferece um argumento teleológico ao sustentar que a sentença prolatada pelo júri não levará a lugar algum — exceto ao prolongamento do sofrimento do acusado —, uma vez que seguramente será reformada na instância superior:

— Mas o senhor não acha que está procurando álibis para si mesmo, para a vaidade, podemos bem dizer isto, do seu protesto dentro de um contexto que só lhe permite carregar de sofrimento ainda maior o ser humano sobre o qual o senhor concentrou a defesa de um princípio, e que, afinal, na defesa deste princípio não foi levado devidamente em conta o sofrimento daquele homem?

— Concordo que a defesa do princípio, para mim, contou mais do que a vida daquele homem. Mas é um problema, não um álibi. Eu salvei a minha alma, os jurados a deles: o que pode até parecer muito cômodo. Mas imagine o que aconteceria se, em cadeia, todo juiz cuidasse de salvar a própria alma”.

Eis o dever de um agir político pautado em princípios morais compartilhados por uma comunidade política. Princípios estes que orientam como deve ser a melhor forma de agir para construir uma boa vida, em suma, fazer o bem, a coisa certa, sem preocupar com as vantagens e benefícios que tal comportamento possa resultar, mas antes com o modo como se faz as coisas. Trata-se de um comportamento virtuoso que deveria orientar toda ação humana.

É o que Dworkin chama decidir por princípio. Como já dissemos em outras oportunidades, se isso se aplica à vida privada, então assume caráter ainda mais sério na esfera pública. Um Estado democrático tem o dever de agir corretamente, sob pena de perder a autoridade moral da qual depende seu poder de coerção. É por isto que, politicamente, esse Estado não pode atuar de modo pragmaticista, abrindo mãos dos princípios morais fundantes de  determinada comunidade política. E são os tribunais que devem garantir o bom funcionamento disso tudo. Ou, ao menos, é assim que pensava Dworkin.

Retomando e fechando: imaginem se, em cadeia, todo juiz tratasse de decidir por princípios. Eis o desafio lançado por Sciascia, ainda nos anos 80, e que pode servir de inspiração à comunidade jurídica para o ano que se inicia. Boas festas a todos os leitores da ConJur!

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!