Opinião

Decisão que suspende WhatsApp é desproporcional, ilegal e abusiva

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17 de dezembro de 2015, 8h10

A recente decisão da 1ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo, expedida em 12 de dezembro de 2015, assustou mais uma vez usuários do principal comunicador utilizado no Brasil. Ordem anterior havia sido proferida em processo que tramitou no Piauí em fevereiro de 2015.

Pela decisão, em um processo em que é requerente a Justiça Pública (Ministério Público), a juíza Sandra Regina Nostre Marques determina, por meio de ofício judicial às operadoras, a suspensão por 48 horas do acesso através das empresas prestadoras ao WhatsApp, devendo as mesmas bloquearem todo o tráfego existente em relação aos domínios do aplicativo, que sabemos, é de propriedade do Facebook, que tem sua filial no Brasil. 

A coerção vem em decorrência do suposto descumprimento de uma ordem judicial de julho deste ano. Assim, descarta-se a princípio qualquer pressão das operadores de telefonia, que sabe-se, vêem com maus olhos o crescimento da aplicação que lhes subtraem diariamente cifras e cifras em comunicação por voz e mensagens.

A ordem que determinou a suspensão do aplicativo vem embasada  nos artigos 2º parágrafo primeiro e 21 da Lei de Organizações Criminosas, Lei 12.850/2013, que disciplina:

Art. 2º – Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.

§ 1º  Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.

Art. 21 – Recusar ou omitir dados cadastrais, registros, documentos e informações requisitadas pelo juiz, Ministério Público ou delegado de polícia, no curso de investigação ou do processo:

Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa

A lei em comento criminaliza a recusa em cooperar com Judiciário ou Ministério Público no fornecimento de dados cadastrais, registros e informações, mas em nenhum momento prevê a suspensão das atividades de um serviço de internet como pena aplicável.

É aí que entra a Lei 12.965/2014, o Marco Civil da Internet e sua redação nebulosa e pendente de regulamentação. Ao verificar que mesmo incidindo em multa e crime o Facebook não atendia a determinação judicial, o Ministério Público requereu a suspensão dos serviços com base no Marco Civil, sob pena de crime de desobediência dos provedores de acesso, pedido acolhido pela juíza em questão.

O Marco Civil dispõe sobre o assunto da seguinte forma, ao disciplinar a pena para aquele provedor de serviço que não guardar o “conteúdo das comunicações privadas” ou mesmo não disponibilizá-las mediante ordem judicial:

Art. 12 – Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa:

I – advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas;

II – multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção;

III – suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11; ou

IV – proibição de exercício  das  atividades  que  envolvam os atos previstos no art. 11.

Parágrafo único.  Tratando-se de empresa estrangeira, responde solidariamente pelo pagamento da multa de que trata o caput sua filial, sucursal, escritório ou estabelecimento situado no País.

Por outro lado, a decisão é absolutamente desproporcional, não seguindo a progressão da norma e não foi direcionada ao próprio Facebook, mas às operadoras de telefonia móvel, sem relação alguma com a lide. Logo, as operadoras terão dificuldades técnicas e não são obrigadas a cumprir uma decisão que viola o próprio Marco Civil da Internet.

Isto porque, para bloquear um tráfego relacionado a determinada aplicação, o provedor deverá registrar e conhecer o que seu cliente acessa na web previamente, o que em tese  é vedado pela norma, vejamos:

Art. 14 – Na provisão de conexão, onerosa ou gratuita, é vedado guardar os registros de acesso a aplicações de internet.

Não bastasse, ao cumprir a ordem judicial expedida neste caso, os provedores violam o próprio princípio da neutralidade da rede, também previsto no Marco Civil, vejamos:

Art. 9º – O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

Deste modo, os provedores de conexão não são obrigados a cumprir ordem que embora judicial é manifestamente ilegal e sobretudo, desproporcional, atingindo inclusive terceiros estranhos à lide, no caso, os próprios provedores. Se bloquearem, correm o risco muito maior de sofrerem ações de reparação pelos danos causados a usuários e empresas

Soma-se a tudo que a ordem tal como emanada é absolutamente ineficaz, considerando que a aplicação,  utilizando os números de celulares apenas como  “indexador” de usuários, tem a capacidade de ser processada via conexão wi-fi por exemplo, sem interferência de um provedor específico ou que tenha recebido formalmente ofício judicial. Ainda, pode o aplicativo rodar via proxy, impedindo ao provedor detectar o tráfego WhatsApp e consequentemente bloqueá-lo.

Alguns anos após decisão em caso célebre que buscou bloquear o Youtube no Brasil, mais um vez nos deparamos com nítido caso de má interpretação e aplicação das normas relativas aos direitos e deveres dos atores de Internet, ao sermos surpreendidos com  uma decisão ilegal, desproporcional, abusiva e ineficaz, mas absolutamente danosa, a qual esperamos, será rapidamente reformada pelas instâncias superiores do Judiciário Paulista.

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