MP no Debate

Promotorias de Justiça regionais modernizam estrutura do MP

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14 de dezembro de 2015, 14h50

A historiadora americana Bárbara Tuchman retrata no seu livro Canhões de Agosto o contexto em que se desenvolveu a Primeira Guerra Mundial. Em um dos trechos, ela discorre sobre a inadequação das estratégias militares usadas pelas principais nações européias ao não levarem em conta o significativo avanço tecnológico da época. Preparavam e planejavam uma guerra a partir de modelos do século XIX para a realidade do século XX.

Entre os casos por ela contados, está a polêmica sobre o uniforme do exército francês. Diz ela que em 1912 os soldados franceses ainda usavam os mesmos dólmãs azuis, calças e quepes vermelhos de 1830, quando uma bala de fuzil percorria apenas 200 passos e os exércitos lutando de perto não precisavam de camuflagem. Visitando a frente dos Bálcãs de 1912, Massimy — ministro da guerra francês — constatou as vantagens usufruídas pelos búlgaros, que usavam cores escuras, e voltou para casa decidido a diminuir a visibilidade do exército francês.

Porém o seu projeto de estilo em cinza azulado ou cinza esverdeado provocou uma onda de revolta. "Banir tudo o que é colorido, tudo que dá ao soldado seu aspecto vívido", escreveu o Echo de Paris, "é ir contra tanto o gosto francês quanto a função militar". Numa audiência parlamentar, um antigo ministro da guerra, monsieur Étienne, falou pela França: "Eliminar as calças vermelhas? Nunca! Le pantalon rounge, c'est la France".

A passagem bem demonstra a situação de um Ministério Público ainda estruturado nos moldes concebidos em meados do século passado, quando a sua atuação centrava-se na área criminal e no cível exercendo o papel de custus legis; para, sem os devidos e necessários ajustes, enfrentar os desafios e demandas que se apresentam na atualidade. Desafios e demandas bem diversos daqueles já vivenciados e, sobretudo, quando se leva em conta o papel de defensor de uma ordem jurídica transformadora como o determinado pela Constituição de 1988.

Historicamente o Ministério Público até 1988 não havia recebido grande atenção em sede constitucional. Só com a Emenda Constitucional 7/77 (Pacote de Abril) é que restou prevista uma Lei Complementar estabelecendo normas gerais a serem adotadas na organização do Ministério Público Estadual.

A partir desse comando constitucional foi promulgada em 1981 a Lei Complementar 40/81, que conferiu aos MPs um estatuto nacional. Dentre as inovações introduzidas, Hugo Nigro Mazzili destaca que a Lei Complementar 40/81 conferiuaos órgãos do Ministério Público ainda igualdade de tratamento dispensado aos membros do Poder Judiciário perante os quais oficiam. Não se trata apenas o tratamento protocolar: o sentido é mais amplo, como deixa claro a própria lei, em várias passagens, inserindo desde o mesmo compromisso para juízes e promotores, como inúmeros direitos e prerrogativas iguais ou similares".

Esta identidade entre Ministério Público e magistratura revelou-se um importante meio para o fortalecimento da instituição, passando a simetria a ocupar espaço de destaque no nosso desenho organizacional (autonomia administrativa e financeira, forma de acesso à carreira, garantia e vedações de seus membros, regime remuneratório), atingindo seu ápice no regime fixado em 1988.

Como assinala Maria Tereza Sadek, "seus princípios [do Ministério Público] de organização coincidem com aqueles previstos para o Poder Judiciário: direito de apresentar proposta orçamentária; de propor ao Poder Legislativo a criação e a extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por intermédio de concurso público de provas e títulos; seus integrantes não respondem a outros poderes e instituições e gozam das mesmas prerrogativas dos membros do Poder Judiciário, como a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos".

Entretanto, se a simetria com a magistratura representou um papel essencial para robustecer o Ministério Público; no plano da distribuição espacial de seus órgãos de execução, a mesma simetria revelou-se como forte empecilho ao bom desempenho institucional à luz do papel que lhe foi atribuído pela Constituição de 1988 e, sobretudo, na defesa dos interesses sociais e dos direitos coletivos.

É que a Constituição de 1988 (artigos 127 e seguintes) deu um novo contorno ao Ministério Público brasileiro. Até então, a instituição tinha um perfil intimamente vinculado ao poder Judiciário e, na nova ordem constitucional, assumiu novos e relevantes encargos como a defesa do regime democrático e dos interesses sociais.

Entre as relevantes funções que lhe foram conferidas estão: (a) zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; (b)  promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; (c) exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior.

De igual modo, conferiu instrumentos de ação que não se circunscrevem na esfera judicial. É o caso do Inquérito Civil e dos Termos de Ajustamento de Conduta.

Atualmente, o Promotor de Justiça, pari passu com as atribuições exercidas perante o Poder Judiciário, possui uma extensa pauta de atribuições extrajudiciais a exigir tempo e expertise próprios e que, no mais das vezes, não se coadunam com o perfil consolidado historicamente e que está umbilicalmente ligado ao modelo de distribuição espacial do poder Judiciário.

O descompasso decorrente de um arranjo territorial e de atribuições insculpido em um modelo pré 1988 e as novas áreas de atuação e de atribuição de seus membros revelam um desconforto institucional e impõe uma reflexão sobre a configuração ideal das promotorias de Justiça.

Como alerta Marcelo Goulart, "a divisão da base espacial de atuação do Ministério Público deve ser repensada, principalmente no caso dos Ministérios Públicos estaduais. A divisão por comarca, como escala única, não se coaduna com o cumprimento da missão institucional do Ministério Público contemporâneo e tampouco atende às expectativas da sociedade, pois conspira contra a efetividade da atuação institucional. Isso se evidencia, sobretudo, nas áreas de defesa dos direitos sociais, dos interesses difusos e no combate ao crime organizado. Nos limites da comarca, torna-se impossível enfrentar, com êxito, questões que se colocam, no mínimo, como de âmbito regional”.

Os problemas decorrentes deste modelo de divisão por comarca, citados por Marcelo Goulart, seriam:

a) “cumulatividade e generalismo — em regra, as atribuições do promotor de Justiça nas comarcas são cumulativas, o que o obriga a intervir em processos, procedimentos e inquéritos de todas as áreas de atuação, a participar de um grande número de audiências judiciais, a atender ao público em todos os tipos de questões; circunstâncias essas que impedem (i) a organização racional do tempo para a dedicação devida a cada tipo de assunto e (ii) a especialização e a busca do conhecimento minimamente necessário sobre as matérias de maior complexidade;

b) “Isolacionismo e fragmentação institucional — em regra, a atuação do Promotor de Justiça é isolada, circunscrevendo-se aos estreitos limites da comarca, independentemente da dimensão do problema que lhe é posto; circunstância que (i) impede a visão das questões em sua totalidade, (ii) estimula o individualismo/voluntarismo de diminuta eficácia e (iii) transforma cada agente numa espécie de instituição autônoma”;

c) “Demandismo — as características acima apontadas incentivam a transferência das soluções para o Poder Judiciário mediante o ajuizamento açodado de ações — forma mais rápida de liberação dos casos pelos Promotores de Justiça, ante a pressão do grande volume de trabalho e dos sistemas internos de controle meramente quantitativo —, reduzindo o papel de agente político ao de mero agente processual.”

Intuitivamente, os próprios membros dos Ministérios Públicos estaduais bem demonstram a sua preocupação com a efetividade dos trabalhos desenvolvidos pela Instituição e com os efeitos decorrentes da distribuição espacial anacrônica.

No diagnóstico "Ministérios Públicos Estaduais", promovido em 2006 pela Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça com o apoio do CNPG e da Conamp, 80,7% dos membros entrevistados disseram ser favoráveis à implantação das promotorias de Justiça regionais.

Embora corresponda ao anseio de larga parcela dos próprios integrantes do Ministério Público, a implantação de Promotorias Regionais (sobretudo em áreas como a defesa do Meio Ambiente, Patrimônio Público e enfrentamento do Crime Organizado) vem se dando de forma lenta.

Além da resistência cultural inerente a qualquer mudança no plano organizacional, a construção desse novo modelo enfrenta a dificuldade de se compatibilizar com a estrutura já existente, visto que ambos irão coexistir dentro de cada Ministério Público.

No plano normativo, vê-se que a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, ao disciplinar as Promotorias de Justiça como órgão de execução, não menciona a possibilidade de sua regionalização.

Entre as Leis Orgânicas Estaduais, observa-se referência expressa à regionalização em sete estados: Bahia (artigo 268 da LOEMPBA), Pernambuco (artigo 21, parágrafo 2º, da LOEMPPE), Piauí (artigo 6º, parágrafo 1º, I, da LOEMPPI), Rio Grande do Norte (artigo 44 da LOEMPRN), Rio Grande do Sul (artigo 23, parágrafo 1º, da LOEMPRS), Roraima (artigo 29, parágrafo 1º, da LOEMPRR) e Tocantins (artigo 44, I, da LOEMPTO).

Na ausência de um modelo consolidado nacionalmente, os MPs estaduais vêm procurando alternativas. Na Bahia, por exemplo, foram criados 30 cargos de promotor de Justiça regional (20 especializados na defesa do Meio Ambiente e 10 no combate à sonegação fiscal), através da Lei Estadual 11.639/2010.

Em Pernambuco foram implantadas, desde 2004, a Promotoria de Justiça Agrária — com atuação estadual, execuções penais — e de Transportes — com atuação metropolitana.

No Ministério Público do Piauí foram criadas, através da Lei Orgânica Estadual, duas promotorias de Justiça regionais: uma com atribuição em matéria agrária e fundiária com sede em Bom Jesus e outra especializada em matéria ambiental e sediada em São Raimundo Nonato.

Há ainda experiências de Promotorias de Justiça Regionais no Distrito Federal (três promotorias de Justiça regionais de defesa do patrimônio público —Proreg — criadas pela Resolução 179/2014 do CSMPDFT); Goiás (Promotoria de Justiça Regional Ecológica Móvel do Rio Araguaia — Resolução 002/2010 do Colégio de Procuradores); Santa Catarina (promotorias de Justiça regionais do Meio Ambiente); Rio Grande do Sul (promotorias regionais das bacias hidrográficas dos rios dos Sinos e Gravataí e promotorias regionais da Educação).

Em Minas Gerais optou-se por se descentralizar o Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público e, deste modo, criar dentro de sua estrutura promotorias regionais com o objetivo de prestar apoio aos Promotores de Justiça da região.

Em todos esses modelos há uma preocupação constante com o respeito às atribuições do promotor de Justiça natural. Em alguns casos optou-se pela criação de cargos dentro da carreira e, assim, revestindo o promotor de Justiça regional de titularidade. Em outros, há a designação precária por parte da Procuradoria Geral de Justiça. Penso que o primeiro modelo seja o mais apropriado em se tratando o promotor de Justiça regional um órgão de execução, pois afasta eventuais querelas decorrentes de intromissões da PGJ em assuntos afetos à atividade finalística do membro.

Sob o nosso ponto de vista, há ao menos três vantagens significativas na adoção de Promotorias Regionais: maior coordenação de esforços, ganho de escala para o seu aparelhamento e maior facilitação para capacitar os Promotores de Justiça envolvidos com a temática da Promotoria.

A possibilidade de uma maior coordenação de esforços e a adoção de ações integradas dentro de cada área de especialidade é, sem dúvida, uma das maiores vantagens das promotorias regionais. Isto porque os promotores de Justiça dispensados de uma atribuição cumulativa podem mais facilmente agir em bloco e com isto obter maior efetividade em suas ações.

Outra ponto é que teríamos vantagem em termos de escala para o seu aparelhamento. Dispor de quadro de apoio altamente especializado para todas as promotorias de Justiça cumulativas e em todas as áreas de intervenção do Ministério Público soa como algo utópico, ao passo em que dotar as Promotorias de Justiça Regionais se apresenta como algo bem mais factível.

No que se refere à capacitação dos promotores de Justiça, a regionalização se mostra igualmente bem mais proveitosa; pois reduz, de um lado, a gama de conhecimento que o membro do Ministério Público deve possuir para lidar com a demanda que lhe chega e, em outra mão, permite o aprofundamento em determinados temas para aqueles que atuam nas Promotorias de Justiça regionais especializadas.

Cabe mencionar outro aspecto relevante: é que, superadas as amarras da comarca, a nova distribuição espacial deve se voltar para a especialidade escolhida e não necessariamente seguir as divisões regionais do próprio Ministério Público (circunscrições, regiões etc). 

Assim, as promotorias de Justiça regionais de meio ambiente, por exemplo, teriam como delimitador espacial as bacias hidrográficas ou biomas, enquanto as promotorias de Justiça regionais de defesa do patrimônio público poderiam replicar a distribuição espacial dos tribunais de contas.

Enfim, estas são algumas considerações com o intuito de contribuir no processo de (re)estruturação do Ministério Público para que este possa atender de forma mais eficiente e dinâmica aos desafios postos pela Constituição Federal. Desafios inerentes ao papel do Ministério Público de defensor de uma ordem jurídica transformadora.


Referências Bibliográficas:

Berclaz, Márcio Soares. Moura, Millen Castro Medeiros de. A regionalização como paradigma necessário à estruturação espacial das atividades do Ministério Público no enfrentamento dos seus desafios contemporâneos. Caderno de Teses do XX Congresso Nacional do Ministério Público.

Diagnóstico Ministério Público dos Estados. Ministério da Justiça, 2006.

Goulart, Marcelo Pedroso. Elementos para uma teoria geral do Ministério Público. Editora Arraes, 2013.

Mazzilli, Hugo Nigro. Inovações no Ministério Público. Revista Justitia 43(114). São Paulo. 1981.

Tuchman, Barbara Wertheim. Canhões de Agosto. Objetiva. 1998.

 

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