Opinião

Ainda há juízes no Brasil(?)! Em busca da legalidade perdida!

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14 de dezembro de 2015, 13h30

O título desse artigo poderia ser “Mídia e moral(ismo) não são fontes de direito”. Mas decidimos dar outro título, talvez mais dramático e que possa demonstrar o grau da crise que vivemos no campo do direito penal e processual penal no país. O título vem do Moleiro de Sans Souci, que, pressionado a arrancar seu moinho para que o Imperador pudesse aumentar o seu castelo, resistiu e mandou avisar ao grande Imperador Frederico II: não saio daqui; é meu direito; que me será garantido na justiça; ainda há juízes em Berlim!

Pois o título de nosso artigo é ambíguo. Ele é uma pergunta, mas também é uma afirmação. Um pergunta se levarmos  em conta os acontecimentos relacionados aos acontecimentos que dizem respeito à onda moralista que invade o Brasil. A percepção moral e moralizante passou a valer mais do que a própria Constituição. E mais do que a lei. Depois de muita luta, conseguimos aprovar esta Constituição. Gostem as pessoas ou não, gostem os juízes e o Ministério Público, esta é a Constituição de todos. A mesma que dá garantias de vitaliciedade, garante liberdade de associação, enfim, ela é a lei das leis, para repetir um chavão sem sermos piegas. E o que é a Constituição? Além de ser a lei maior, ela incorporou os juízos morais e éticos no seu texto. O que isto quer dizer? Isto quer dizer que nem ela, a Constituição e nem as leis podem ser corrigidos por juízos morais. A moral sempre é contingencial. Cada um tem a sua, por assim dizer. Por isso, autores como Habermas afastam qualquer perspectiva de que a moral possa corrigir o direito. Aliás, se a moral pode corrigir o direito, quem corrigirá a moral? Eis o dilema!

Daí que, quando assistimos uma onda punitivista em que os juízos morais valem mais do que os juízos jurídicos, brandimos justamente aquilo que é um anteparo e funciona como garantia contra maiorias: a Constituição e a lei. Simples assim. Brandimos aquilo que Elias Diaz chamava de “legalidade constitucional”. Só queremos isso. Na contramão, assistimos um movimento nacional do MP querendo impor seus pontos (de vista) ao parlamento e à sociedade, que vão desde uma “eugenia ética” nos concursos até a diminuição de direitos fundamentais. Jacinto Coutinho já tratou disso com maestria aqui. Ao lado disso, assistimos os tribunais dizerem que o alto nível de corrupção deve ser tratado com uma jurisprudência de exceção. Um membro do MPF chegou a sugerir que “passarinho na gaiola canta mais fácil”.

Há, hoje, uma impunidade, sim. Mas ela é mais epistêmica do que legal. Epistêmica porque se diz qualquer coisa sobre qualquer coisa. Desrespeita-se a mais simples e pueril legalidade. Onde está escrito x, lê-se y. E isto é feito impunemente. Tudo em nome de uma correção moral do direito. Por exemplo, um pequeno atraso na instrução — cuja palavra “pequeno” consta em acordão do STJ — passa a ser lido de forma estendida, alongada, indo para além de 500 dias. Quais são os limites semânticos dos textos da lei e da Constituição? Na verdade, de há muito perdemos aquilo que se pode chamar de o “mínimo semântico” do texto legal. Veja-se o paradoxo: antes da CF/88, lutávamos para que os juízes e tribunais fossem criativos, que não se baseassem na “letra da lei”. Claro. O estado era autoritário e nem Constituição havia. Hoje, com a Constituição mais democrática do mundo, temos que “rezar” para que juízes e membros do MP cumpram essa “letra”. Que inversão dos tempos, hein?

É tão grave isso que um grupo de juízes percebeu isso e lançou um manifesto na semana passada, em apoio ao um ministro do STJ que votou a lo largo do que diz a mídia e os desejos moralistas de parcela da sociedade em habeas corpus da operação "lava jato" (no caso, o ministro relator, Marcelo Ribeiro Dantas, votou pela concessão do writ e recebeu uma saraivada de críticas). Não temos nada contra alguém fazer torcida. Ninguém é a favor da corrupção. Mas, por favor, a Constituição e a legislação não são inimigas a serem depredadas.  E advogado não é criminoso. Advogado não é inimigo. No manifesto em apoio a Ribeiro Dantas, vejam algumas frases do que disseram os juízes e desembargadores federais do TRF da 5ª Região:

“Nenhuma democracia floresceu sem independência judicial, simplesmente porque não há como garantir direitos sem juízes que decidam corajosamente segundo suas convicções,[1] ainda que em desacordo com a opinião pública, no afã de fazer valer a ordem jurídica. A História é pródiga em exemplos sobre os graves danos ao processo democrático nas civilizações que descuraram da defesa intransigente da independência de seus juízes, em particular no processo penal, que constitui o instrumento mais genuíno de salvaguarda da liberdade individual. (…) Desde tempos imemoriais, como expresso até mesmo no Evangelho, nossa civilização aprendeu lição valorosa quanto aos riscos de interferência da opinião pública nos julgamentos”, criminais.

E mais não precisaria ser dito pelos magistrados em apoio ao ministro Marcelo Navarro Ribeiro Dantas.

Entretanto, nós seguimos um pouco mais com nossa reflexão. O título de nosso artigo é ambíguo. Pergunta, mas também afirma. E a afirmação de que há juízes em Berlim está no manifesto dos magistrados apoiando o ministro.

Insistuímos pois: uma decisão deve ser dada por princípio e não por políticas; nem por moral(ismos)…! (ver aqui). Fundamentalmente, deve-se evitar que a decisão seja dada por ideologia, subjetividade ou para aplacar a ira da mídia ou os anseios sociais. É evidente que não queremos e não pregamos que o juiz seja uma figura inerte, neutra. Não queremos um juiz boca da lei. Só queremos que o juiz não ponha acima da lei e da Constituição a sua convicção pessoal e nem o que a mídia diz. Por isso, temos que — urgentemente — construir as condições para que uma decisão não seja fruto de opiniões pessoais ou por influencias políticas, econômicas ou da mídia. Trata-se de discutir a democracia. Mídia não é fonte de direito! Aliás, nada melhor do que a palavra de um juiz — no caso, parte de sentença proferida pelo magistrado federal  José Magno Linhares Moraes, do Maranhão — para ratificar nosso entendimento, verbis:

“A atividade judicial deve pautar-se pela estrita obediência aos programas do sistema jurídico, valorizando a sua autonomia funcional e a sua comunicação específica. O julgador não pode hipervalorizar os outros sistemas sociais (político, econômico ou de comunicação de massa) em detrimento da estrutura do sistema jurídico. É absolutamente inaceitável submeter a legitimidade das decisões judiciais à lógica do consenso popular, como se os juízes fossem representantes do povo. A chamada politização do direito, na sua prática mais extrema, enfraquece o controle da atividade judicial e promove a temível tirania judicial. Por isso, submeto o pedido de liberdade ora formulado a uma análise a partir das referencias do próprio sistema jurídico, de seus institutos e da doutrina acadêmica e da construção jurisprudencial de nossos tribunais”. (grifamos)

No Rio Grande do Sul, houve uma longa luta — fratricida — e que, ao seu término, brindou os brasileiros com uma célebre frase, dita por Honorio Lemes: queremos leis que governem os homens e não homens que governem as leis. Pode parecer piegas. Coisas quase em desuso. Aliás, nestes tempos bicudos, cumprir a Constituição está se tornando um luxo em nosso país.

Por isso, como aquele moleiro que enfrentou o Imperador — ele, o moleiro, acreditava na independência dos juízes — também queremos que os juízes brasileiros, com a independência que a Constituição lhes concedeu, enfrentem esse novo imperador pós-moderno: a mídia e o seu moralismo. Simples assim.


[1] No que toca a essa passagem em específico (julgar por convicções pessoais), cumpre anotar que não se pode concordar face as suas implicações institucionais. Hodiernamente, convicções  pessoais podem ser confundidas, na teoria do direito, com aposta na discricionariedade judicial e/ou subjetivismos. Ou seja, sempre é melhor apostar na lei e na Constituição do que nas convicções pessoais. Mas a manifestação dos magistrados da 5ª. Região é absolutamente alvissareira e serve de exemplo para uma adequada visão acerca da aplicação do direito por princípio e não por mídia ou políticas.

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