Embargos Culturais

O Direito Constitucional na República dos Bruzundangas

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

13 de dezembro de 2015, 7h00

Spacca
A República dos Bruzundangas é imaginário e hilariante espaço e tema literário concebido pelo escritor Lima Barreto (1891-1922). Esse pequeno grande livro substancializa uma das mais duras críticas aos costumes políticos e instituições da República Velha. Trata-se de livro delicioso, que questiona políticos, diplomatas, sistema eleitoral, ensino e religião[1]. Lido hoje, ainda que sem alguma observação quanto ao deslocamento no tempo, coloca-nos intrigantes questões.

Nessa imaginária República dos Bruzundangas, segundo Lima Barreto, reuniu-se uma Assembleia Nacional Constituinte, cuja preocupação maior consistia em se descobrir qual constituição de qual país é que deveria ser imitada. De algum lugar esperava-se a inspiração para a construção de nossos arranjos institucionais. Isto é, copiamos. O país imaginário, no entanto, alimentou-se de grande esperança; afinal, gracejando com a Constituição de 1824, Lima Barreto observou que o povo de Bruzundanga “(…) tinha, até aí, sido governado por uma lei básica que datava de cerca de um século e todos os jovens julgavam-na avelhantada e já caduca”[2].

Lima Barreto aproveitou para aferroar os militares, todos adeptos do positivismo de Comte que então campeava; isto é, a Constituição deposta, de 1824, fora concebida por legisladores que desconheciam aritmética; por isso, desatava o escritor fluminense, não poderiam decidir em matéria de sociologia[3]; Augusto Comte (1798-1857), o autor do Curso de Filosofia Positiva, não nos esqueçamos, seria também um pai fundador da sociologia.

A nova constituição, esperava-se, seria uma perfeição e a todos traria a felicidade[4]. Nessa curiosa república, “um ministro da Agricultura não devia entender coisa alguma de agronomia (…) o que se exigia dele é que fosse um bom especulador, um agiota (…) sabendo organizar trustes, monopólios, estancos etc.”[5]. Além do que, dos deputados nada se podia esperar. Segundo Lima Barreto, “os deputados não deviam ter opinião alguma, senão aquelas dos governadores das províncias que os elegiam”[6].

A nova constituição fora elogiada pelas disposições avançadas e importantes que continha, a exemplo da proibição da acumulação de cargos remunerados ou mesmo de regra que garantia a liberdade de profissão[7]. Porém, o alcance dessas regras moralizantes e sadias era restringido por preceito proposto por deputado prudente (sic) no sentido de que, “toda a vez que um artigo desta Constituição ferir os interesses de parentes de pessoas da situação ou de membros dela, fica subentendido que ele não tem aplicação ao caso”[8]. Essa proposta foi unanimemente aprovada[9]. E assim prosseguia o nosso Jonathan Swift, “com este artigo a Lei Suprema de Bruzundanga tomou uma elasticidade extraordinária”[10].

Por isso, segundo Lima Barreto, em Bruzundanga, “se algum recalcitrante, à vista de qualquer violação da Constituição, apelava para a Justiça (lá se chamava Chicana), logo a Corte Suprema indagava se feria interesses de pessoas da situação e decidia conforme o famoso artigo”[11]. Nesse país, todos eram da “situação”; de tal modo, “como todo mundo não podia pertencer à ‘situação’, os que ficavam fora dela, vendo os seus direitos postergados, começavam a berrar, a pedir justiça, a falar em princípios, e organizavam, desta ou daquela maneira, masorcas (…) se eram vitoriosos, formavam a ‘sua’ situação e começavam a fazer o mesmo que os outros (…) havia apelo para a (…) mas a Suprema Corte, considerando bem o tal artigo já citado, decidia de acordo com a ‘situação’ (…) era tudo a ‘situação’”[12].

Interessante esse país. A Constituição aprovada proibiu que se constrangesse as pessoas a fazerem ou a deixarem de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei[13]; no entanto, um dos estados federados deportava os indesejáveis, ainda que não houvesse lei que permitisse tal medida, “e ainda encomendava aos jornais que o chamassem de província modelo”[14].

Havia um ponto da Constituição, no entanto, que se cumpria rigorosamente: “Estabelecia que se devia unicamente saber ler e escrever; que nunca tivesse mostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não tivesse vontade própria; que fosse, enfim, de uma mediocridade total”[15]. Porém, essa vigorosa Constituição, segundo Lima Barreto, sofrera “várias mutilações, desfigurações e interpretações”[16], pelo que, se pretendesse comentá-la, deveria “escrever um livro de 600 páginas”[17].

Lima Barreto morreu pobre, quase ao mesmo tempo que seu pai, em um hospital para alienados, ambos vitimados por um alcoolismo fulminante. Ainda que por vezes rancoroso, extrai-se de sua inusitada prosa o retrato atemporal do país que de algum modo o renegou.


[1] Lima Barreto, Os Bruzundangas – Sátira, Rio de Janeiro e Belo Horizonte: Livraria Garnier, 1998.
[2] Lima Barreto, cit., p. 66.
[3] Lima Barreto, cit., loc. cit.
[4] Cf. Lima Barreto, cit., loc. cit.
[5] Lima Barreto, cit., loc. cit.
[6] Lima Barreto, cit., p. 68.
[7] Lima Barreto, cit., loc. cit.
[8] Lima Barreto, cit., p. 69.
[9] Cf. Lima Barreto, cit., loc. cit.
[10] Lima Barreto, cit., loc. cit.
[11] Lima Barreto, cit., loc. cit.
[12] Lima Barreto, cit., loc. cit.
[13] Cf. Lima Barreto, cit., loc. cit.
[14] Lima Barreto, cit., p. 70.
[15] Lima Barreto, cit., loc. cit.
[16] Lima Barreto, cit., loc. cit.
[17] Lima Barreto, cit., loc. cit. 

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