Senso Incomum

TCCs no Direito: como não se deve
escrevê-los — retratos da crise

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10 de dezembro de 2015, 7h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Abstract: a coluna trata da dramática situação dos trabalhos de conclusão de curso (TCC) em Pindorama; ou “arrumamos” isso, ou “isso” pode ser a pá-de-cal da e na crise do Direito. No PS falo do impeachment.

De há muito denuncio a crise do ensino jurídico em terras brasileiras e de que como esta tem (de)formado nossos estudantes e profissionais. É óbvio que este cenário não representa a totalidade dos nossos cursos jurídicos. Contudo, infelizmente, isso é de se esperar em um país em que tem mais faculdades do que professores aptos a lecionar. Hoje meu olhar para esta crise se volta para o “temido” TCC. Acho este um termômetro, no mínimo razoável, para pensar como estão se saindo nossos estudantes que durante cinco (ou mais) anos estiveram por horas e horas sentados nos bancos universitários.

Nesta semana fui surpreendido (se é que ainda há algo com que possamos nos espantar…) com a matéria de um jornal de uma cidade da nossa região sul. Nela uma aluna, devido ao seu êxito no seu TCC, foi entrevistada em página inteira e nos deu algumas pistas de como estamos avaliando e distinguindo um bom trabalho de um ruim, e o que e como nosso estudante produz cientificamente falando. Com efeito.

A aluna protagonista da reportagem começou dizendo que sua pesquisa versou sobre os “Direitos Humanos ou Direitos dos Manos”. E que foi orientada por sua professora de Direitos Humanos que inicialmente mostrou alguma hesitação, mas depois foi favorável e achou a temática interessante. Conforme sua afirmação, depois de dias e dias de intensa dedicação, a professora “rejeitou” a primeira versão e a estudante teve que recomeçar do zero.

Ela conta que, neste recomeço, encontrou uma obra que foi muito importante para o desenvolvimento de seu TCC, citando um fragmento: “nossa Constituição foi promulgada sobre o signo da dor, suposta ditadura militar, entre outras. Então as pessoas foram criando muitos direitos e criou-se o direito de ser criminoso". (grifei) Gostei da expressão “suposta ditadura”. E do “direito de ser criminoso”. Será que estamos lendo a mesma Constituição? A pergunta é: como um trabalho pode ser erigido a partir da premissa de que a nossa Carta Constitucional constitui uma realidade ampla de direitos, dentre eles o de ser criminoso (pareceu-me que o autor da frase faz uma análise jocosa da Constituição ou estou enganado)? E o que é isto — a suposta ditadura? Está certo que o jurista-autor-do-texto-citado pode ser conservador, mas, por favor, até o ponto de dizer isso? Bom, como não tenho como verificar a informação, não declinarei o nome referido pela aluna. Mas não tenho como duvidar da aluna e tampouco de sua professora-orientadora.

Seguimos com a entrevista da aluna. Faltando quatros dias para a entrega final, ela conta que recebeu a segunda correção e que a professora informou que o trabalho não estava apto para ser apresentado para a banca. Então nestes pouquíssimos dias, como veremos, quase que milagrosamente o trabalho foi da água para o vinho. Ela diz que teve que começar do zero, de novo. Só que, agora, em vez de usar uma redação mais opinativa, buscou reportagens polêmicas sobre o assunto. E delas extraiu suas conclusões finais. Um novo recorde: um TCC em quatro dias. Observação: ela não disse se manteve a citação do autor do “direito de ser criminoso”. Estou curioso para ler o TCC. Bom, como a douta banca recomendou a publicação, logo teremos o livro a disposição.

Sigo. Com as palavras da aluna, verbis: "Faltava apenas quatro dias para a entrega. Comecei na quarta-feira a noite o trabalho do zero, eu tinha que entregá-lo na segunda. Entrei em desespero e comecei a buscar reportagens relacionadas a isso e encontrei várias matérias. Redigi de uma forma totalmente diferente ao invés de usar a minha opinião usei o que as pessoas pensam sobre o assunto e consegui reportagens polêmicas. Por exemplo, uma que dizia que 50% da população concorda com aquela expressão que ‘bandido bom é bandido morto'', além de outra, do El Pais, que dizia que a segurança pública no Brasil era deplorável. Uma pesquisa da FGV que diz que 82% das pessoas do país acham que a segurança pública é deplorável e 25% dizem que a segurança pública é o que mais incomoda e o que mais causa preocupação. Foi então que montei todo o trabalho em cima disso. E, recentemente, um caso aqui em Santa Catarina, no qual um senhor foi pego roubando e a população o amarrou e o agrediu no poste até que a polícia chegasse. Nesse contexto conclui que o "Direito dos Manos'' não existe nem na teoria, nem na prática. Porque, juridicamente, eles não significam nada. São, na verdade, fruto do descontentamento das pessoas, que veem na mídia que o delinquente tem mais direito do que o povo, que começa a tomar suas próprias atitudes".

Poderíamos falar de vários problemas… Não sei por onde começar. O primeiro problema reside no prazo de quatro dias em que o TCC foi feito. O segundo são as fontes. Matérias esparsas, certamente com critérios distintos de pesquisa, que demonstram uma suposta realidade, servem de lastro suficiente para uma monografia jurídica? Existem discussões importantes do/no Direito sobre o problema da violência, mas que, pelo visto, foram deixadas de lado. Ademais, até mesmo sob o aspecto sociológico, as matérias jornalísticas devem ser vistas com muita cautela, o que certamente não aconteceu. E por fim, isto é suficiente para dizer que existem ou não o tal “Direitos dos Manos”? E, afinal, quem são “Os Manos”? Afinal, ela crítica o quê? A Constituição tem direitos em excesso? Se pegarmos o autor que ela referiu, parece que sim. Mas, de que modo isso entra no TCC?

A sequência da entrevista parece deixar mais clara essa questão. Para ela, “o criminoso tem o direito de ser defendido, ser tratado com dignidade, mas nós temos mais direito. Enquanto nós estamos presos em nossas residências eles estão lá fora fazendo o que bem entendem". O que ela queria dizer, mesmo, com isso? Ao que li da entrevista, pareceu-me que ela insinua (estou sendo generoso) que as pessoas que comentem crimes teriam mais direitos dos que as vítimas, uma vez que, os que assim não fazem, vivem presos em suas casas e estes (os criminosos) ficam livres para fazer o que querem. Consequentemente — se entendi bem — por este argumento existiria um Direitos dos Manos, questão presente no título do TCC (vejam a pergunta irônica do título: Direitos Humanos ou Direitos dos Manos?). Pois é. Ocorre que a elogiada aluna (espero que a professora não concorde com a aluna e tampouco a banca do TCC, embora tenha dado nota máxima com louvor ao trabalho) fez um trabalho repetindo coisas que se dizem por aí sobre segurança pública, coisas que se podem ouvir em programas tipo Marcelo Rezende ou Datena. Mas em um trabalho de final de curso pode ser dito isso, sem um olhar crítico? Nem vou falar dos demais elogios que a banca teria feito a aluna e ao conteúdo do TCC.

Deixo claro que não conheço a aluna nem sua professora e não almejo desqualificá-las. Tanto é que não declino o seu nome e de ninguém relacionado ao episódio. Poderia fazê-lo, já que não corre em segredo de justiça, por assim dizer. E, ao que sei, não houve desmentido. Contei a história como a representação simbólica do que ocorre no mundo jurídico. Milhares de TCCs são apresentados por ano em nosso país. Parcela deles não tem qualquer consistência. Isso daria uma CPI. No fundo, os alunos não têm culpa desse quadro caótico. Tem gato nessa tuba, é evidente. O que leva, por exemplo, a nossa protagonista do TCC a não fazer um juízo crítico sobre os direitos humanos, a ponto de achar bonito que um livro coloque em dúvida a existência da ditadura militar e diga que a Constituição dá excessivos direitos aos criminosos (ou algo assim)?

Isto é apenas um sintoma de um problema muito maior sobre o qual precisamos refletir. Sim, refletir sobre como saem os estudantes, e como se dá a sua formação. Afinal, isso tem reflexo em nossa prática do dia-a-dia forense e na academia. Basta que olhemos em volta. Ou alguém acha que o modo como os advogados peticionam, os juízes decidem e os promotores acusam (como “promotores públicos”) são coisas que caem do céu? Como diria Nelson Rodrigues, tudo isso é fruto de muito esforço e dedicação…

Post Scriptum 1: Meu bunker já está preparado.

Post Scriptum 2: antes que alguém pergunte minha posição sobre a decisão do ministro Edson Fachin no processo do impeachment, respondo: a um, não poderia ser diferente a decisão dele, já que, dias antes, dissera que a votação no caso do senador Delcidio deveria ser aberta; a dois, o ministro mostrou-se — corretamente — cauteloso, levando a questão ao Plenário; a três, porque, se no caso do senador havia dúvidas acerca do Regimento Interno (dizia-se, no Senado, que a alteração constitucional somente desconstitucionalizara a matéria e, assim, valeria o regimento), agora a questão parece mais fácil, uma vez que não há regulamentação explicitada no Regimento Interno e nem na Constituição sobre se o voto deve ser secreto ou aberto. Logo, tratando-se da matéria mais importante em uma República — o impeachment do chefe do Poder Executivo no sistema presidencialista — não parece sustentável, no plano de uma hermenêutica constitucional, a tese de que um representante do povo possa decidir os destinos do presidente de forma secreta. Dando o tapa e escondendo a mão. Para o bem e para o mal. Diria mais: se o regimento estabelecesse o voto secreto, seria inconstitucional. Aguardemos os próximos acontecimentos. Atentos.

Post Scriptum 3. No apagar das luzes, leio que o jornal O Globo diz que o Min. Fachin apenas suspendeu o funcionamento, mas manteve a criação da comissão especial (leia aqui). Equivocado o jornal. A opinião distorce o sentido da decisão. Aliás, se a decisão trata sobretudo da questão do voto secreto ou aberto e a comissão foi formada (ao menos em parte) desse modo, parece óbvio que a decisão do ministro suspende a própria formação da comissão.

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