Diário de Classe

Direito não pode ficar refém do jogo
de sombras do embate político

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5 de dezembro de 2015, 7h00

Spacca
O historiador e filósofo do Direito estadunidense Harold Berman já afirmava, na introdução do seu magistral Direito e Revolução, que aqueles que lidam com o direito e são herdeiros daquilo que ele nomeia como tradição jurídica ocidental, sempre debateram questões abstratas para saber se o Direito está baseado na razão e na moralidade ou se é meramente fruto da vontade do detentor do poder político. Nesse aspecto, é um elemento dessa “tradição jurídica” — da qual a nossa trajetória também faz parte — certas crenças e postulados que os próprios sistemas pressupõem como validados e que derivam dessas “investigações abstratas” acerca da origem, da legitimidade e da validade do direito. Tudo isso teria como condicionante a tentativa de pensar o direito como um “corpo”, um “sistema”, enfim, como algo que se manifesta e se pratica com certa consistência e organicidade.

Para Berman, contudo, desde o último quadrante do século XX, há fortes indícios de que tais crenças ou postulados estão rapidamente desaparecendo. E isso não apenas da mente dos legisladores, juízes, advogados, professores de Direito e outros membros da comunidade jurídica. Mais do que isso, eles estariam desaparecendo da própria autocompreensão do Direito. Em seu vaticínio, o Direito herdeiro da tradição jurídica ocidental estaria se tornando mais fragmentário, mais subjetivo, ligado mais à praticidade do que à moralidade, preocupado mais com as consequências imediatas do que com a sua consistência ou continuidade.[1]

De um outro modo, seria possível dizer que, cada vez mais, fica evidente, mesmo em regimes democráticos detentores de instituições sólidas, que as decisões judiciais refletem mais o universo particularista e consequencialista da política do que, propriamente, a dimensão principiológica do Direito. Já há algum tempo, os trabalhos de Lenio Streck apontam para esse caráter fragmentário de nossa jurisprudência e o prejuízo que isso causa para a chamada “autonomia do direito”, que deveria guarnecer qualquer Estado democrático. Uma forma de iluminar isso — que aparece na obra de Streck e que, de minha parte, também procuro incorporar aos meus textos — se dá a partir de Ronald Dworkin e da distinção que esse jusfilósofo realiza entre argumentos de princípios e argumentos de política.

De forma geral, argumentos de política descrevem metas; argumentos de princípios descrevem direitos.[2] Para Dworkin, mesmo as decisões legislativas encontram-se vinculadas à doutrina da responsabilidade e podem, de algum modo, ser descritas com base na distinção entre política e princípios. Ele exemplifica a partir de dois diferentes programas legislativos que se relacionam, de um modo distinto para cada um desses tipos de argumentos. No caso, os exemplos seriam o de um programa de subsídios para a indústria, de um lado, e o de um programa de cotas raciais, contra a discriminação, de outro. Segundo Dworkin, no primeiro caso, poderíamos dizer que os direitos são gerados por uma política e qualificados por princípios; no segundo caso, os direitos são gerados por princípios e qualificados por uma política.

A diferença da situação da decisão legislativa para a da decisão judicial é que a primeira possui um espaço maior para gerar direitos com base em argumentos de política (o programa de subsídios para a indústria, por exemplo, pode estar ligado ao cumprimento de uma meta para desenvolver melhor determinado setor da economia), no caso da decisão judicial a doutrina da responsabilidade exige que o ajuste institucional realizado para afirmar o direito das partes possa ser justificado em um argumento de princípios.

Dworkin chama de princípio “um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade.”[3]

Note-se, portanto, que no espaço da decisão judicial — e, no limite, do próprio Direito — articulam-se, ou deveriam ser articulados, argumentos de princípio e não argumentos de política.

Todavia, não faltam exemplos cotidianos que demonstram como, cada vez mais, podem ser observadas decisões judiciais que veiculam políticas e não princípios. Questões que vão desde os problemas mais abrangentes, derivados da chamada judicialização da política, até questiúnculas ligadas ao embate político-ideológico congressual (que, por certo, não estão ligadas diretamente àquilo que Dworkin quer mencionar quando descreve os tais argumentos de política).

Essa interpretação entre direito e política — que nem sempre faz bem ao Estado Democrático de Direito — fica ainda mais evidenciada quando o laboratório de análise é o Supremo Tribunal Federal. Há uma certa aceitação geral de que as decisões do Supremo veiculem algum grau de “política” em face inclusive de seu desenho institucional, obra do próprio constituinte: uma espécie de tribunal da federação com competência para se pronunciar por último sobre o direito constitucional federal e, ao mesmo tempo, possuidor de competências que visam solucionar dissídios envolvendo o governo e o Congresso Nacional.

Sem embargo, nossa posição é no sentido de afirmar que, mesmo nestes casos, e mesmo o Supremo Tribunal Federal, o poder judiciário de se pronunciar sobre questões que envolvam princípios e não políticas.

Não obstante, a realidade que se instalou no pais na última semana, cujo acontecimento apoteótico foi o início do processo de impedimento da presente da república pelo presidente da Câmara dos Deputados, tende a levar ao paroxismo a situação descrita acima e deve colocar em alerta todos os juristas e cidadãos preocupados com o direito e a sobrevivência democrática das instituições.

Independentemente do resultado desse processo, é certo que as discussões jurídicas envolvendo a constitucionalidade e legalidade do procedimento — que chamam à colação nossa Suprema Corte — devem, para serem legítimas, espelhar argumentos de princípios e não políticas (seja em um sentido amplo, seja no mais restrito, da política ideológico-partidária). A discussão que se abre numa dimensão situada fora da “autonomia do direito” tende a levar para o subjetivismo fragmentário-consequencialista destacado por H. Berman e que serviu de epígrafe para esta coluna. E esse subjetivismo, por sua vez, acaba por revelar mais as paixões ideológicas dos atores sociais envolvidos, do que o direito da comunidade política que deve conformar o caso judicializado.

De se notar que, ainda nessa semana, tivemos uma amostra da dificuldade que é decidir questões sensíveis que envolve o processamento de um impeachment a partir das paixões políticas que emanam do problema. Refiro-me ao imbróglio envolvendo a medida cautelar no Mandado de Segurança 33.921/DF. O caso é conhecido: três deputados do PT impetraram o referido mandado de segurança contra a decisão do presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha, que determinou a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Alegam que faltaria justa causa para a decisão de Eduardo Cunha, pelos motivos fartamente divulgados pela impressa durante os últimos dias. Segundo consta, o mandado de segurança foi impetrado às 15:59 horas do dia 3 de dezembro de 2015 e distribuído para a relatoria do ministro Gilmar Mendes às 16:19 horas. Pouco mais de uma hora depois da distribuição, os impetrantes peticionaram requerendo a desistência da ação. Tão logo o pedido de desistência foi protocolado, começaram a pulular especulações no sentido de que seria ela fruto da insatisfação dos impetrantes com relação à relatoria do processo, há pouco revelada.

O ministro Gilmar, por sua vez, decidiu indeferindo a homologação do pedido de desistência entendendo que houve abuso de Direito por parte dos impetrantes, com violação dos princípio do juiz natural e da regras de competência, bem como pelo fato de não existir procuração nos autos que autorize o advogado a desistir da demanda, citando precedentes do STF que veicularam decisões semelhantes em casos análogos.

Os impetrantes, de outra banda, alegaram, antes que conhecessem o teor da decisão, que a desistência da ação não teve relação com a escolha do relator, mas com a necessidade de incluir no mandado de segurança uma “declaração pesada” propalada pelo Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, contra a presidente Dilma (de todo modo, seria de se questionar: seria esse um motivo jurídico para desistir da ação? Não seria mais fácil, e mais adequado à economia processual, simplesmente, aditar o pedido?).

Em conclusão, o que fica claro de toda essa situação é que a política está a pressionar os argumentos “de princípio” que justificam tanto a ação dos impetrantes quanto a decisão do ministro. Parece-me que, ao fim e ao cabo, a linguagem jurídica foi aqui instrumentalizada para dissimular o jogo de sombras do embate político, tão típico do atual ambiente nacional.


[1] BERMAN, Harold. Law and Revolution. The formation of the Western legal tradition. Massachusetts: Harvard University Press, 1983, p. 39 et. seq.
[2] Nesse sentido, Cf. GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 64.
[3] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p., p. 36.

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