Opinião

Questões jurídicas do processo de impeachment presidencial

Autor

  • Felippe Mendonça

    é advogado professor mestre e doutor em Direito pela USP associado fundador da Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos (Faddh) e membro do Grupo de Trabalho criado pelo Ministério dos Direitos Humanos para o desenvolvimento para a apresentação de estratégias de combate ao discurso de ódio e ao extremismo.

4 de dezembro de 2015, 5h10

Novamente vivemos no Brasil um processo de impeachment, em que um presidente pode ser retirado do cargo e ser impedido de exercer qualquer atividade pública por oito anos.

Muito é dito pela população leiga em Direito, por desconhecimento de alguns pontos importantes que precisam ser esclarecidos.

Inicialmente, o processo de impeachment é um mecanismo constitucional para retirar um presidente que comete um crime de responsabilidade sem a necessidade de uma revolução ou um golpe. Importante saber, então, que golpes e revoluções atacam a ordem constitucional, ou seja, são eventos em que a constituição vigente é rasgada, seja por um grupo que toma o poder indevidamente (golpe), seja pelo povo revolto que não concorda com a ordem constituída (revolução). O processo previsto pela constituição não se confunde nem com um, nem com outro. Só é possível dizer que um processo de Impeachment é golpe se o procedimento previsto pela Constituição não for respeitado e se negarem ao presidente seus direitos fundamentais de um processo justo (ampla defesa, contraditório etc.).

Neste processo, qualquer cidadão pode peticionar pedindo, ao presidente da Câmara dos Deputados, sua instauração; pedindo, aos demais deputados, a admissão do julgamento do presidente da República pelo Senado e, aos senadores, que o condenem por crime de responsabilidade, com a consequente retirada do cargo e impedimento de exercer qualquer atividade pública por oito anos, especificando, obrigatoriamente, qual ato por ele praticado considera configurar crime de responsabilidade.

Caso o presidente da Câmara aceite o pedido, o processo de impeachment terá duas fases: o “juízo de admissibilidade” da Câmara dos Deputados e o julgamento pelo Senado Federal. Primeiro os representantes do povo, deputados federais, dizem se admitem que o presidente eleito seja julgado, em seguida, os representantes dos Estados, senadores, julgam se, de fato, o presidente cometeu algum crime de responsabilidade ou não. A sessão do julgamento do Senado é presidida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal para garantir que o Presidente da República tenha seus direitos fundamentais respeitados.[1]

A análise feita pelos deputados e senadores dentro deste processo é uma análise política, não jurídica. Não se confunde o crime de responsabilidade com o crime comum — inclusive foi debatida durante a assembleia constituinte a proposta de utilizar nomes diferentes para não confundir um com o outro —, pois não se aplicam técnicas jurídicas[2] durante o processo para verificar se a conduta do presidente é exatamente o que estava previsto pela lei que diz quais são os crimes de responsabilidade[3].

Além disso, a maioria dos dispositivos legais que dizem quais são os atos que configuram crimes de responsabilidade é de normas abertas, que permitem vasto espaço de interpretação. Por exemplo, na lei há a previsão de ser crime de responsabilidade o ato do presidente que “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”[4] — estourar uma bola de chiclete em público pode ser dito como incompatível com o decoro do cargo.

Não cabe, em tese, qualquer interferência do Poder Judiciário em dizer se o ato configura ou não um crime de responsabilidade — a decisão dos deputados no juízo de admissibilidade e a decisão do Senado no julgamento, não podem ser modificadas pelos ministros do STF, pois a constituição outorgou ao Poder Legislativo o poder de analisar as hipóteses de retirada do poder de um presidente eleito pelo povo, não ao Judiciário. Cabe a eles, no máximo, analisar as questões processuais (se o processo foi respeitado ou não) para impedir que seja um golpe.

Importante lembrar que a consequência da admissão pela Câmara dos Deputados é o afastamento do presidente por 180 dias, a contar do momento em que o processo chega no Senado Federal, que é obrigado a julgar (pode absolver ou condenar, mas não pode não processar).

Caso o presidente seja condenado, ele é retirado do poder e fica impedido de exercer qualquer atividade pública, mesmo em cargos não eletivos ou na administração indireta, por oito anos. Além disso, sendo o processo somente contra o presidente — não envolvendo seu vice —, será este quem irá assumir o cargo até o final do mandato; caso ambos sofram o processo de impeachment, presidente e vice, durante o afastamento de 180 dias será o presidente da Câmara dos Deputados que assumirá o cargo de presidente da República. Se ambos forem condenados e retirados dos cargos ainda nos dois primeiros anos do mandato, uma nova eleição popular deverá ser convocada para escolha do novo presidente, já se isso ocorrer nos dois últimos anos do mandato, o novo presidente será escolhido por eleição indireta feita pelo Congresso Nacional (Câmara e Senado).

Por fim, cabe explicações sobre dois pontos relevantes neste momento político que vivemos: (1) a importância do cargo de presidente da Câmara dos Deputados, agora ocupado pelo deputado Eduardo Cunha, e (2) o debate sobre o momento em que o ato que supostamente é considerado crime de responsabilidade foi cometido e a reeleição do presidente.

Sobre o primeiro ponto, a importância do presidente da Câmara, é questão que merece modificação no texto constitucional, pois, atualmente, quem ocupa este cargo faz uma análise prévia na petição que recebe de pedido de instauração do processo. Em tese, essa análise seria tão somente dos pressupostos formais — para evitar que o plenário da Câmara seja provocado por um pedido de impeachment sem qualquer fundamento, sem imputar ao presidente da República qualquer ato que possa ser analisado futuramente pelo Senado como crime de responsabilidade ou não —, mas, na prática, vira um superpoder de juízo de admissibilidade individual: uma etapa não prevista no processo.

O presidente da Câmara acaba rejeitando ou aceitando o processo de impeachment a seu bel prazer, ou seja, fazendo ele próprio uma análise política de cabimento. Ele pode utilizar isso como moeda política de troca, pressionando o Poder Executivo a atender suas exigências, sob pena de aceitar a instauração do próximo processo de impeachment que lhe for requerido — e entram vários, pois não faltam militantes de oposição tentando afastar o presidente por eles indesejado.

A notícia desta quarta-feira (2/12), para os leigos, é de que a presidente Dilma sofrerá processo de impeachment, mas, na verdade, foi tão somente a aceitação do Eduardo Cunha de submeter ao plenário da Câmara dos Deputados a petição assinada por dois juristas de renome, Helio Bicudo e Miguel Reale Jr, que pedem a eles (deputados) a admissão do processo e, aos senadores, a condenação da presidente por suposto crime de responsabilidade.

É preciso modificar a constituição para retirar este poder do presidente da Câmara e para diminuir as aventuras de militantes que banalizam o processo. Uma sugestão que pode ser estudada é a modificação para tornar obrigatória a submissão ao plenário do pedido de impeachment feito à casa, mas, em caso de falta de formalidades básicas como a fundamentação em crime de responsabilidade, que seja instaurado um processo judicial contra quem fez o pedido aventureiro para que arque com os custos desta sessão.[5]

Quanto ao segundo ponto, mais polêmico, o problema surge porque a constituição permite o processo de impeachment contra o presidente da República por atos cometidos durante o seu mandato e, existindo a reeleição, fica a dúvida quanto à possibilidade de instauração do processo no segundo mandato por atos ocorridos no primeiro mandato.

A análise final é política, não jurídica, ou seja, cabe aos deputados tomarem esta decisão, não ao Judiciário. É exatamente esse o juízo de admissibilidade. Se eles interpretarem a constituição entendendo que cabe, sim, a presidente ser processada por ato cometido no primeiro mandato, essa será a decisão legitimada pela constituição como válida sobre o impasse[6].

Mas cabe uma interpretação jurídica para esclarecer a interpretação que aparenta ser a mais correta.

O processo de impeachment foi pensado pelos constituintes durante a Assembleia que encerrou as atividades em 5 de outubro de 1988, num momento em que decidia-se não ter reeleição no Brasil. Menos de uma década depois, o poder constituinte reformador (aquele que pode emendar a constituição, modificando suas normas) decidiu incluir a possibilidade do presidente da República ser reeleito por um mandato sucessivo.

A interpretação de normas jurídicas deve atender a exigência teleológica, ou seja, a busca pela finalidade do direito que aquela norma pretende atingir (normas são meios de se atingir fins, portanto não podem ser analisadas sem a observação de sua própria finalidade).

É evidente que a intenção do constituinte era permitir um processo constitucional democrático de retirada do presidente da República por crimes de responsabilidade e, se na época existisse a reeleição, incluiria em sua previsão a retirada mesmo em segundo mandato.

A confusão é mero efeito colateral de reforma constitucional que não teve a menor intenção de permitir a manutenção de presidente no cargo após cometimento de crime de responsabilidade reconhecido pelo Poder Legislativo. A boa interpretação da norma, portanto, para atender as suas próprias finalidades, compreende a leitura extensiva do termo “mandato” incluindo os dois subsecivos decorrentes da reeleição.

O importante é tratarmos as análises jurídicas sem o calor das emoções que são fruto de posicionamentos políticos. Presidentes ficam no cargo por, no máximo, oito anos, enquanto que o processo de impeachment continuará na constituição por tempo indeterminado.[7]


[1] O presidente do Supremo está na sessão apenas para manter a ordem e garantir o devido processo legal. Ele não vota, não decide nada, cuida apenas do processo.

[2] Não se analisa a tipicidade no crime de responsabilidade como se analisa no crime comum. Cabe a brincadeira de que o Tiririca não conhece o Savigny, nunca leu Kelsen, e não aplica a teleologia de Ihering – ele decide de acordo com o seu convencimento e nada mais.

[4] Art. 9º, 7 da Lei nº 1.079/50.

[5] É apenas uma sugestão – que pode ser considerada para estudos acadêmicos –, a única coisa que se afirma aqui é que é preciso mudar.

[6] Em outras palavras, o constituinte deu o poder de decidir sobre a admissibilidade do processo de Impeachment à Câmara dos Deputados, portanto a legitimidade constitucional para decidir é deles, não do Judiciário.

[7] Não fiz qualquer análise sobre a minha opinião política de cabimento ou não do processo de Impeachment.

Autores

  • Brave

    é advogado no escritório MGRS Advogados Associados. Doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP e especialista em Direito Constitucional pela ESDC.

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