Opinião

Advogado não pode aceitar calado a morte da democracia processual

Autor

  • Djefferson Amadeus

    é advogado mestre em direito e hermenêutica filosófica pela Unesa pós-graduado em filosofia pela PUC-Rio pós-graduado em processo penal pela ABDCONS-RJ membro da FEJUNN e do Movimento Negro Unificado (MNU).

3 de dezembro de 2015, 14h21

Foi noticiado na ConJur que o advogado Edson Ribeiro fora preso ao desembarcar no Rio de Janeiro.[1] Se não bastasse isso, o supracitado advogado teve a sua inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil suspensa.[2] A sinceridade — sei bem — tem um preço, que em geral não se quer pagar para estar bem com todo mundo. De pronto, registro que não me preocupo com isso. Isto porque “o mais obsceno da vida não é o roubo, a entrega de um país, o mais grave é o ocultamento do terror que sustenta a aparência democrática”[3] e o silêncio daqueles que, sabendo disso, mantêm-se inertes!

Deste modo, penso que quem se mantém silente em tal momento anui à total desgraça da democracia processual. Por isso este é um texto duro; porque trata de vida e morte. Lamentavelmente, mais de morte do que vida. É porque nunca se esteve tão perto, pelas características, do total desprezo às garantias processuais.  De fato, em tempos sombrios de tiranias marcadas pelo desrespeito às prerrogativas dos advogados, o mais cômodo sempre foi nada fazer; esperar que a greve se esvazie; que o cliente morra ou cumpra a pena — mesmo sendo inocente! — tudo, claro, para não correr o risco de “ficar mal” com o juiz. Há quem consiga depois disso — e não são poucos! — ir para casa; e dormir.

Por isso tem razão Jacinto Coutinho: “Ninguém quer se comprometer com nada, por ação ou omissão: morreu, morreu, que bom que não fui eu![4] Vai-se exterminando, assim, aquilo que se tem de mais caro à Democracia, segundo Streck: o “princípio da autonomia do direito”![5] O resultado é que, “tomado como objeto, o outro pode ser desfrutado, literalmente consumido; e tudo sem causar grande – para não dizer nenhum – estupor.”[6] Eis o que acaba de acontecer com a classe dos advogados, o senador Delcídio do Amaral e a própria Constituição: todos tornados objetos! Para alguns, a advocacia seria até um dejeto. A mim não cabe fazer juízo de valor acerca da conduta de ambos os citados. Minha defesa cinge-se à Instituição advocacia. Portanto, estou a analisar apenas a violação à Constituição da República. E só.

Deste modo, permitam-me, neste momento, iniciar, citando Warat para, na sequência, parafraseá-lo: ensina o mestre argentino-brasileiro que “o pior tipo de genocídio é aquele que faz sentir aos excluídos culpados de estarem vivos”.[7] Pois eu digo que o pior tipo de genocídio (processual) é aquele que faz com que os advogados sintam-se envergonhados de exercer a sua profissão!  

 Daí, consequentemente, minha indagação: de que Democracia, de que humanismo podemos falar quando vemos a República desmoronando diante de nós? Deveras, “o pior dos genocídios e do terror multiplicando-se cotidianamente entre nós é silenciado pelas formas da razão jurídica, e as banalizações dos meios de comunicação; o semiocídio”.[8] Nos dizeres de Streck, “esse processo se materializa graças aos meios de comunicação de massa, que são os principais gestores do mito da catástrofe.”[9] E é justamente “pela massificação da desgraça (principalmente), vendida como mecanismo encobridor (ou destruidor) da sensibilidade, que se tem conseguido deixar o ser humano sem a opção de não ser brutalizado.”[10] O resultado, como não poderia deixar de ser, é um punitivismo desmedido.[11]

Daí cabe reperguntar: até quando continuaremos nos silenciando ou achando que isto é “assim mesmo”? “Prendeu, prendeu, que bom que não fui eu?” Aliás, o dilema da Democracia, diz Coutinho, reside justamente aí: “não se nasce democrático! Eis a razão pela qual não é fácil entender a dor, muito menos estender a mão.”[12] Não esqueçamos, portanto, que além da vida (ou morte) de um advogado e senador da República, está em jogo, antes de tudo, a vida (ou morte) da própria democracia processual!

E quando o assunto é a democracia processual, ensina Jacinto Coutinho:

não há meio termo, tanto quanto não há meia tortura ou meia prova ilícita, ainda que alguns venham jogando (até quando não se sabe!) com o princípio da razoabilidade/proporcionabilidade para tornar tudo relativo, como se a legalidade (tem-se presente desde os contratualistas) não fosse o limite máximo de intromissão do Estado na esfera individual dos cidadãos.”[13]

Isto, a toda evidência, levanta a seguinte questão: se uma norma — produto da interpretação do texto constitucional — que proíbe a prisão preventiva de senadores da República  é, segundo alguns dizem, “elitista ou protetora de uma determinada camada da sociedade”, isto poderia “legitimar” o seu descumprimento, sob o fundamento de que se trata de uma norma imoral? Evidente que não. E o motivo é bem simples: é que, no atual estágio do direito, como bem diz Streck, não cabe mais a frase “é legal, mas é imoral”.[14] É dizer: “entre direito e moral existe uma relação de cooriginalidade”, de sorte que ao juiz não cabe decidir dilemas morais; quem cuida de dilemas morais é a filosofia moral. Juiz, portanto, decide; e não escolhe. Numa palavra: juiz aplica a Constituição. E ponto! Portanto, que se cumpra a Constituição, como diz Streck:

Contra tudo e contra todos, se o direito do réu existe e está comprovado, deve conceder o habeas corpus ou absolver, mesmo que, internamente, pense que o acusado deva ser fritado no inferno.”[15]

A propósito, são nestes momentos de crise que observamos o coeficiente democrático do nosso povo. Nos dizeres de Streck, “os Direitos fundamentais só adquirem sentido quando postos à prova, no seu limite. Talvez nas piores violações é que se mede o coeficiente democrático de um país.”[16] Daí ser o processo penal, nas palavras de Goldschimidt, o termômetro de uma nação. Em suas palavras:

Os princípios da política processual de uma nação não são outra coisa senão os segmentos de sua política estatal em geral. Pode-se dizer que a estrutura do processo penal de uma nação não é mais do que o termômetro dos elementos corporativos ou autoritários de sua constituição.[17]

Tratando-se, como se trata, a democracia processual de um princípio, ela deve ser um padrão observado, como afirma Dworkin, “não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade.”[18]

É dizer: os princípios não são meros conselhos ou mandados de otimização.[19] A propósito — entendidos de modo teleológico — corremos o risco de aceitar repostas finalísticas — como a do STF — onde o fim buscado (acabar com a corrupção) justificou o meio (prender sem o devido processo legal). Numa palavra: Ser deontológico[20] significa dizer que os princípios obrigam (ainda que o custo disso possa ser uma absolvição — indesejada — de um político).

A mídia, portanto, não pode pautar o judiciário e o Ministério Público. Deste modo, a cidadania reclama uma postura — uma tomada de posição — de todos; mormente de nós, advogados, porque, de acordo com a Constituição da República, “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.” Se isto é assim, então nossas posturas não podem ser de resignação diante da tentativa de se ferir de morte à democracia processual.

Eis por que é vital louvar aqueles que conseguem o grande feito: romper as barreiras das ignorâncias e conquistar um merecido lugar diferenciado de reputação. Foi o que se passou — e aqui aproveito para prestar minhas homenagens — com Lenio Streck, Jacinto Coutinho, André Karam Trindade, Alexandre Morais da Rosa, Geraldo Prado, Juarez Tavares, Juarez Cirino, Aury Lopes Jr. Rubens Casara, Salo de Carvalho, Paulo Rangel e outros.

Há de se concluir, porque já se foi longe para as singelas pretensões de uma coluna. Encerro, assim, com uma fala de Lenio Streck proferida no emblemático debate que tivera com o juiz Sergio Moro:

“Nós temos que superar a errônea tese de que isto é assim mesmo. Ou seja: já que o Direito é o que os juízes dizem que ele é, então a tarefa dos advogados e da doutrina é o “do como vamos lidar com isso?” Eu recuso-me a acreditar nisso; isso seria acreditar que o Direito é um mero jogo de poder. Logo, para que estudar, fazer teses, se o Direito vai depender do que os juízes e Tribunais dizem que ele é? Porque, em um país em que o sistema jurídico depende da vontade individual dos juízes, nós não precisamos fazer faculdades; não precisamos escrever livros; somos todos inúteis, vamos para casa, porque não servimos pra nada! Tem que ser duro nisso! A história toda tem sido assim. Desculpem dizer isso, mas todos nós somos culpados por isso! Nós estudamos, ensinamos os meninos de que isto é assim. Não pode ser assim! Nós temos utilidade! Eu sou doutrinador; você é advogado. Se nada depende de você, por que você existe?”[21]

Eis a reflexão que cada um de nós, advogados, devemos refazer: afinal, para que existimos?

Um adendo necessário e final:

Não defendo uma ausência total de punição, caso seja comprovada condutas ilícitas. Minha defesa é pela respeito à democracia processual! Portanto, não acredito que, na atual quadra histórica, o Estado possa continuar sendo visto como “inimigo” do cidadão. Por isso tem razão Streck: “o velho modelo de Estado Liberal-absenteísta — contraposto à sociedade, como se dela fosse inimigo, a partir de um modelo liberal-individualista — inexoravelmente dá lugar, no século XX, às novas formas de Estado e Constituição”.[22] Isto, a toda evidência, implica dizer, com Baratta, que é ilusório pensar que a função do direito (e, portanto, por parte do Estado), nesta quadra histórica, fique restrita à proteção contra abusos estatais. Nesta ordem de ideias, é possível dizer, com Roxin, que o Direito protege o indivíduo de uma repressão desmedurada do Estado, mas protege, igualmente, a sociedade e os seus membros dos abusos do indivíduo.[23] Afinal de contas, diz o mestre alemão: “como se pode evitar que sejam não as pessoas justas e que pensem socialmente, mas sim os poderosos a obter o controle, oprimindo e estigmatizando os fracos? A discriminação social pode ser pior que a estatal. Liberar o controle do crime de parâmetros garantidos estatalmente e exercidos através do órgão judiciário iria nublar as fronteiras entre o lícito e o ilícito, levar à justiça pelas próprias mãos, com isso destruindo-se a paz social”.[24] Numa palavra final: “ninguém desconhece que o pacto fundante da vida moderna decorre da necessidade (vista mitologicamente) de todos precisarem proteção, em ultima ratio, contra a morte violenta. (…) Eis por que o Estado tem por missão basilar produzir e aplicar as leis, começando pela Constituição e, nesta dimensão, submete-se a elas no sentido de que, nelas, vai expresso sua missão de garantidor do cidadão”![25]


[1]http://www.conjur.com.br/2015-nov-27/advogado-edson-ribeiro-preso-desembarcar-rio-janeiro?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter

[2] http://www.conjur.com.br/2015-nov-27/oab-suspende-registro-edson-ribeiro-advogado-cervero

[3] Warat, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio. Trad. Vivian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 46.

[4] Miranda Coutinho, Jacinto Nelson de. Temas de Direito Penal & Processo Penal (Por Prefácios Selecionados). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 55.

[5] “Trata-se da institucionalização de uma verdadeira blindagem contra os predadores do acentuado grau de autonomia conquistado pelo direito nesta quadra da história.Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 585.

[6] Prefácio de Jacinto Coutinho in: Marrafon, Marco Aurélio. O Caráter Complexo da Decisão em Matéria Constitucional – Discursos sobre a verdade, Radicalização Hermenêutica e Fundção Ética na Práxis Jurisdicional. Rio de Janeiro, Lumen júris, 2010, p. xxi.

[7] Warat, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio. Trad. Vivian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, P. 46. livrodo Warat

[8] Warat, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio. Trad. Vivian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 46.

[9] Streck, Lenio Luiz. As Interceptações Telefônicas e os Direitos Fundamentais – Constituição – Cidadania – Violência. 2 Ed. Revista e Ampliada. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001, p. 30.

[10] Prefácio de Jacinto Coutinho in: Marrafon, Marco Aurélio. O Caráter Complexo da Decisão em Matéria Constitucional – Discursos sobre a verdade, Radicalização Hermenêutica e Fundção Ética na Práxis Jurisdicional. Rio de Janeiro, Lumen júris, 2010, p. xxi.

[12] Miranda Coutinho, Jacinto Nelson de. Temas de Direito Penal & Processo Penal (Por Prefácios Selecionados). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 55..

[13] Miranda Coutinho, Jacinto Nelson. A absurda Relativização Absoluta de Princípios e Normas: Razoabilidade e proporcionalidade: In MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson; FILHO, Roberto Fragale; LOBÃO, Ronaldo (org.). Consticuição & Ativismo Judicial. Limites e possibilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 138.

[14]http://www.conjur.com.br/2014-ago-28/senso-incomum-matar-gordinho-ou-nao-escolha-moral-ver-direito

[15] http://www.conjur.com.br/2015-ago-06/senso-incomum-decidir-principios-diferenca-entre-vida-morte

[17] Goldschimidt James. Princípios Gerais do Processo Penal. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte, 2002, p. 71.

[18] Dworkin, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 36.

[20] Nas palavras de Habermas, “Princípios ou normas mais elevadas […] possuem um sentido deontológico. Ao passo que os valores têm um sentido teleológico. Normas válidas obrigam seus destinatários, sem exceção e em igual medida […] ao passo que valores devem ser entendidos como preferências compartilhadas intersubjetivamente […]. Habermas, Jurgen.  Direito e Democracia. Entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, vol. I, 1997, pp. 316-317.

[21] http://www.conjur.com.br/2015-set-25/veja-melhores-trechos-palestra-moro-lenio-streck-ibccrim

[22] STRECK, Lenio Luiz. Entre Hobbes e Rousseau – a dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal. In: Direito Penal em tempos de crise. Org. STRECK, Lenio Luiz [et al.]. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p.95.

[23] Roxin, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3 ed. Lisboa: Coleção Veja Universitária, 1998, p. 76 e segs.

[24] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco – Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2006, p. 5.

[25] Miranda Coutinho, Jacinto Nelson. A absurda Relativização Absoluta de Princípios e Normas: Razoabilidade e proporcionalidade: In MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson; FILHO, Roberto Fragale; LOBÃO, Ronaldo (org.). Consticuição & Ativismo Judicial. Limites e possibilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 194.

Autores

  • Brave

    é Mestrando em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ). Bolsista Capes. Pós graduado em filosofia (PUC-RJ). Pós Graduado em Ciências Criminais (UERJ). Pós Graduando em Processo Penal (ABDCONST).

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