Opinião

OAB precisa se tornar democrática e repensar seu sistema eleitoral

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2 de dezembro de 2015, 5h54

As corporações são, por definição, associações internas de membros de uma mesma categoria profissional, formadas para proteger os interesses legítimos e os direitos específicos de seus membros. Este curto espaço não permite digressões, mas é imprescindível lembrar que as corporações surgiram com a própria burguesia, quando a sociedade se estruturou entre senhores feudais, servos da gleba e uma nascente população urbana de comerciantes e artesãos. Os artesãos, espremidos entre diferentes pressões sociais, constataram a necessidade de se unir para assegurar sobrevivência. Não há nada de errado com o conceito de corporação, mas sempre cabe indagar como devem evoluir as corporações para se distanciarem do seu próprio primitivismo, de seu nascedouro na Idade Média. Mudam os tempos, mudam os fins e se devem mudar os meios. Hoje, o que confere legitimidade às corporações é a sua capacidade de contribuir para o bem comum da Nação.

A ordem jurídica, por sua vez, é a estrutura organizada pela sociedade para possibilitar o convívio social que satisfaz o instinto gregário do homem, e que toma as leis como espinha dorsal. A lei não é, absolutamente, o único elemento da ordem jurídica. Mas, esta se estabelece fundamentalmente em quatro estágios e uma direção. O primeiro estágio são os costumes, em que as necessidades e as crenças comuns determinam a evolução dos hábitos pessoais em comportamentos coletivos, que se auto alimentam pela psicologia das massas. O segundo estágio é político, em que se buscam formas democráticas de escolher quais, dentre os cidadãos, aqueles que terão a missão prioritária de redigir as leis, de executá-las, e de julgar as possíveis inadequações no seu cumprimento. O terceiro estágio da ordem jurídica é a efetiva elaboração das leis por aqueles que tenham sido democraticamente escolhidos para essa tarefa em prol do bem comum. Nessa elaboração, os costumes são fundamentais. A pretensão última da lei é consolidar em comportamentos coercitivos os bons costumes, aqueles que aproveitam ao bem comum, e interromper a prática dos maus costumes, aqueles que causam a ruptura do tecido social, ou contribuem para essa corrosão. O quarto estágio da ordem jurídica é a adesão da sociedade às leis elaboradas por seus representantes. Aqueles bons costumes transformados em lei precisam ser disseminados e tornados obrigatórios para toda a sociedade. Os maus costumes, proibidos pela lei, deverão ser efetivamente interrompidos. Esse processo de adesão da sociedade à lei se faz espontaneamente, pela força da educação, da cultura e da marcha do processo civilizatório, ou se faz coercitivamente, pela força do Judiciário e do aparato do Estado que deve dar efetividade às suas decisões.

Esses quatro estágios marcham em uma direção. Organizam-se e se movem em direção à Justiça. A Justiça não é, todos sabemos, um ponto objetivo de chegada. É um sentimento de valoração da dignidade humana, segundo o qual cada um tem a expectativa de ser tratado em igualdade de condições, nas mesmas circunstâncias, como todos os demais. A Justiça como manifestação de subjetividade é um ser etéreo, móvel e fluido. Cada um sabe onde ela se encontra, mas no próprio interesse nem sempre a coloca onde deveria estar. É um dilema entre o eu individual e o eu coletivo, o nós. Como meta objetiva, é a tentativa de conferir distribuição dos bens e dos ônus da vida segundo critérios uniformes de merecimento.

Mas, o que têm a ver as corporações, a ordem jurídica e a oportunidade em que escrevo este artigo? Ocorre que nesta oportunidade, do aniversário da República, se realizaram eleições em várias seccionais do Brasil para a direção de uma das mais importantes corporações brasileiras, que é a Ordem dos Advogados do Brasil.

A nossa corporação tem tudo a ver com a ordem jurídica, que é ao mesmo tempo sua causa e seu objeto.

Essa comparação entre corporações e ordem jurídica parece necessária em um momento da vida nacional em que a ordem jurídica se encontra absolutamente tumultuada. Temos leis que são, em tese, no papel, comparáveis às melhores legislações do mundo. Mas, há uma distância abissal entre o que está escrito nas leis e a forma como a sociedade e o Estado se comportam. Ignoram-se as leis que não servem ao interesse pessoal ou imediato do agente. O interesse coletivo, da sociedade como um todo e acima das corporações, está desprotegido. Acostumamo-nos ao brocardo de que há leis que “pegam” e leis que não “pegam”. E, de repente, nos surpreendemos com a constatação de que as nossas leis que deveriam nos proteger da violência, da corrupção, da discriminação, e das mais diferentes formas de indignidade, simplesmente não pegaram. Pior do que isso, constatamos que o nosso processo legislativo está viciado. Nosso Congresso não representa uma significativa parcela da população e está frequentemente mancomunado com os mal feitos do Executivo, que deveria fiscalizar. Os nossos parlamentares frequentemente não legislam para o bem comum. Legislam não raramente para si próprios, nos seus interesses corporativos, de perpetuação do poder, das suas aposentadorias prematuras, dos seus aparatos de benefícios funcionais, de seus salários e penduricalhos do contra cheque. E dividem essas tarefas de legislar para si próprios com aquela de legislar em beneficio dos grupos econômicos que pagam as suas campanhas e outras contas. Há, felizmente, muitas exceções. Mas estão tão acuadas, que mal chegam a aparecer no noticiário.

A sociedade está atônita, aparentemente inconformada, mas paralisada. Pia como um filhote de passarinho prestes a sofrer o bote da serpente, mas não consegue sair de onde está.

Neste momento crítico da nossa história como povo e nação é que a OAB, como corporação de profissionais da ordem jurídica, no interesse legítimo de proteger os seus integrantes que têm como profissão defender o direito alheio e o bem comum, precisa assumir um protagonismo que transcenda aos seus interesses corporativos mais imediatos.

E não há nada melhor para redirecionar condutas humanas do que o exemplo. Para fazer com credibilidade grandes propostas de reforma política, a OAB precisa começar por si mesma. A Ordem precisa se tornar democrática. A minha proposta é a de que a OAB repense o seu sistema de representação eleitoral. No Conselho Federal, penso que cabe discutir se a eleição indireta é, ou não, a melhor forma de eleger mandatários.. Nos Estados, penso que não faz sentido elegermos os nossos representantes por chapas fechadas, que na realidade correspondem ao voto lista. Não me sinto representado quando sou obrigado a votar em uma lista de mais de uma centena de candidatos, dos quais conheço menos de 10%.

A Constituição, prevê para o país o voto direto (artigo 14). O eleitor escolhe diretamente os candidatos que quer eleger, sem ser obrigado, para eleger o que escolheu, a carregar com as consequências indiretas do seu voto o candidato que jamais escolheria. Há distorções dessa proteção constitucional na legislação eleitoral ordinária, mas é preciso corrigi-las.

Eleger, como se faz em muitas secções estaduais da OAB, uma lista formada por critérios pouco transparentes, que algumas vezes dizem respeito mais a compadrios, à capacidade de captar votos e de financiar campanhas do que à de pensar e executar o bem comum, não é democrático. A Ordem dos Advogados, para assumir protagonismo respeitável na transformação da ordem política do país, que resultará no aprimoramento da ordem jurídica, precisa provar em si própria a possibilidade, validade e necessidade da democracia representativa. Portanto, precisa aprimorar os seus próprios critérios de representação.

Nas eleições recentes, votei sob protesto. Vinculado às regras atuais, elegi alguns ótimos candidatos que aprecio e apoio, e muitos candidatos que nem conheço. E deixei, constrangido, de votar em outros que teriam uma importante contribuição a fazer à nossa instituição e ao próprio país. O grupo vencedor fica com todos os cargos, e as minorias não serão sequer representadas. Minorias que, somadas, fariam a maioria. A democracia pede mudanças. A República se proclama a cada dia, na reconstrução contínua dos seus princípios em todas as questões e instituições em que o bem comum, a ordem democrática e a coisa pública estão envolvidos.

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