Tribuna da Defensoria

Entendimento institucional pode vincular defensor público?

Autor

  • Caio Paiva

    é defensor público federal e chefe da Defensoria Pública da União em Campinas/SP. Especialista em Ciências Criminais. Professor de Processo Penal e Direitos Humanos do Curso CEI. Coeditor do Clube do Direito (www.clubedodireito.com). É autor dos livros Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro e Prática Penal para Defensoria Pública e coautor do livro Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos.

1 de dezembro de 2015, 13h10

1. Individualismo institucional vs. autoritarismo institucional
A independência funcional configura tanto uma garantia dos defensores públicos (artigos 43, I, 88, I, e 127, I, da LC 80/94) quanto um princípio institucional da Defensoria Pública (artigo 3º, caput, da LC 80/94, e artigo 134, parágrafo 4º, da CF), criando um escudo de proteção contra interferências externas e internas no desempenho das atividades funcionais. Investigar os limites da independência funcional implica transitarmos entre dois extremos: o individualismo institucional, que coloca o membro sempre acima da instituição, projetando uma sensação de liberdade absoluta, e o autoritarismo institucional, que coloca a instituição sempre acima do membro, projetando uma atuação vigiada e controlada. Como praticamente tudo na vida, devemos buscar aqui o equilíbrio, o que passa por encontrarmos os limites da independência funcional num ambiente de afirmação e de consolidação institucional.

Entre os diversos cenários para abordar esse tema, escolhi o mais polêmico deles: entendimentos/teses institucionais podem vincular os defensores públicos, relativizando, consequentemente, a independência funcional?

2. Por uma “teoria da uniformização de entendimentos ou teses institucionais” para a Defensoria Pública
É possível, e ainda legítimo, que a Defensoria Pública tenha, em alguns temas sensíveis, uma “opinião institucional”? Trata-se de um desafio que, sem dúvida, se afigura mais complexo para o Ministério Público do que para a Defensoria Pública, principalmente no contexto da atuação no âmbito penal, em que o MP, embora não goze do atributo da imparcialidade, não deve se converter num acusador implacável, podendo se manifestar em favor do acusado quando as circunstâncias do caso concreto assim permitirem (ou exigirem). Diversamente, a Defensoria Pública defende o seu assistido, não podendo, em hipótese alguma, agir em prejuízo do cidadão defendido, cenário que facilita a criação de uma teoria da uniformização de entendimentos ou teses institucionais (adiante denominada apenas de Tueti) em seu âmbito.

Antes de especificar quais são os três pressupostos desta teoria, precisamos entender qual é a finalidade deste empreendimento institucional.

A Defensoria Pública, tal como as demais instituições que compõem o rol das funções essenciais à Justiça, está inserida, atualmente, num contexto jurídico (e também político) de busca pela estabilização das relações, de proteção da segurança jurídica e de promoção da igualdade substancial no acesso aos direitos fundamentais e às conquistas sociais. Súmula vinculante, repercussão geral, recursos repetitivos e incidente de resolução de demandas repetitivas[1], entre outros, são alguns dos mecanismos de busca pela uniformidade que nos cercam. Nesse contexto, a Defensoria Pública não pode se manter engessada numa política de atuação excessivamente individualista, sem qualquer apelo estratégico, tratando cidadãos necessitados conforme a consciência de cada defensor público. Agindo dessa maneira, a Defensoria Pública não comete apenas um erro jurídico, mas, sobretudo, um equívoco político, pois a sua existência se justifica — também — no fato de a instituição ter potencial para superar a ideia de tratar os pobres como indivíduos, e não como classe. Nesse sentido, em crítica direcionada ao sistema judicare, Cappelletti e Garth ressaltam:

“Mais importante, o judicare trata os pobres como indivíduos, negligenciando sua situação como classe. Nem o sistema inglês, francês ou alemão, oferece, por exemplo, auxílio para ‘casos-teste’ ou ações coletivas em favor dos pobres, a menos que elas possam ser justificadas pelo interesse de cada indivíduo. Dado que os pobres encontram muitos problemas jurídicos como grupo, ou classe e que os interesses de cada indivíduo podem ser muito pequenos para justificar uma ação, remédios meramente individuais são inadequados. Os sistemas judicare, entretanto, não estão aparelhados para transcender os remédios individuais”[2].

Assim, além de projetar a Defensoria Pública para o presente, em que a segurança jurídica e a igualdade substancial se sobrepõem ao individualismo de tempos passados, a uniformização de entendimentos ainda fortalece a defesa dos assistidos, porquanto lhes confere o tratamento de classe, com reivindicações que podem ser homogêneas.

3. Pressupostos da Tueti
Encontrada a finalidade precípua da uniformização de atuação, vejamos agora os três pressupostos que orientam a edição das teses ou entendimentos institucionais, os quais devem ser observados cumulativamente, sob pena de ilegalidade ou pelo menos dificuldade de aplicação do enunciado aprovado.

3.1. Primeiro pressuposto: excepcionalidade do enunciado
O primeiro pressuposto da Tueti diz respeito à excepcionalidade do enunciado, o qual somente deve ser editado em temas verdadeiramente importantes do ponto de vista das funções institucionais da Defensoria Pública, havendo ainda que se desincumbir do ônus de demonstrar porquê uma atuação uniformemente articulada poderá melhor atender à defesa do cidadão assistido. Estamos diante, portanto, de um duplo critério para respeitar esse primeiro pressuposto: importância do tema desde o ponto de vista das funções institucionais da Defensoria Pública e demonstração de que uma atuação uniforme melhor atende aos interesses do assistido[3].

3.2. Segundo pressuposto: legitimidade democrática para a aprovação do enunciado
O segundo pressuposto da Tueti exige que o enunciado conte com ampla legitimidade democrática dentro da Defensoria Pública, ou seja, o processo de proposição, discussão e eventual aprovação do enunciado deve ocorrer em ambiente propício para o debate entre os defensores públicos, que poderão trazer suas experiências, críticas e sugestões sobre a proposta de tese institucional[4].

É preciso muito cuidado para definir o procedimento de criação de teses institucionais, principalmente o foro competente para a deliberação e eventual aprovação dos enunciados. A legitimidade da uniformização de entendimento institucional somente é alcançada por meio da democracia. Mas qual democracia? A direta, alcançada pela deliberação entre os próprios defensores públicos, a indireta, com delegação do debate e decisão para órgãos da administração superior cujos membros foram eleitos pela classe (Defensoria Pública-Geral e Conselho Superior), ou ambas?

Entendo que somente a democracia direta pode legitimar a edição de enunciados no âmbito da Defensoria Pública. A independência funcional estaria, portanto, sendo relativizada pelos próprios detentores dessa garantia (os defensores públicos), e não por um órgão da administração superior da Defensoria Pública, afastando, assim, qualquer possibilidade de autoritarismo institucional[5].

Em perfeita sintonia com esta ideia de democracia direta na edição de teses institucionais, as defensorias públicas dos estados de São Paulo e Paraná atribuem à escola, órgão auxiliar da instituição, a competência para “organizar encontro anual dos defensores públicos do estado para a definição de teses institucionais, que deverão ser observadas por todos os membros da carreira, constituindo parâmetros mínimos de qualidade para atuação”[6]. Também observando o processo democrático direto na consolidação de entendimentos institucionais, a experiência da Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro, que em 2011 criou a Oficina de Ideias, que visa a otimização da sua função constitucional e a consolidação de seu papel de excelência como provedora de cidadania, assegurando ampla participação dos defensores públicos nas reuniões para discussão e votação dos “enunciados de recomendação”[7].

Adotando um modelo de democracia indireta na definição de teses institucionais, temos o exemplo da Defensoria Pública da União, em que os enunciados são editados pelas Câmaras de Coordenação e Revisão e depois submetidos ao Conselho Superior para aprovação[8]. O procedimento adotado pela DPU não me parece adequado, isso porque subtrai dos defensores públicos federais a possibilidade de participarem ativamente — e diretamente — da edição e da deliberação sobre as teses institucionais, havendo manifesto prejuízo para a legitimidade dos enunciados aprovados. É necessário, portanto, a meu ver, que a DPU altere o procedimento de aprovação de enunciados, migrando para o sistema da democracia direta e criando o Encontro Anual dos Defensores Públicos Federais.

Em suma: considerando que a Defensoria Pública representa, conforme prevê o artigo 134, caput, da CF, com redação dada pela EC 80/2014, “expressão e instrumento do regime democrático”, somente a democracia direta, isto é, exercida pela participação dos próprios defensores públicos, legitimará o processo de aprovação de enunciados, de modo que as teses institucionais decorrerão de um procedimento horizontal de deliberação, e não de um procedimento vertical de imposição.

3.3. Terceiro pressuposto: objetividade do enunciado
Finalmente, o terceiro pressuposto da Tueti é a objetividade do enunciado, que deve efetivamente servir de orientação para os defensores públicos no desempenho de suas atividades funcionais, não podendo, consequentemente, conter meras invocações de padrões subjetivos de condutas.

4. Questões polêmicas sobre a uniformização
Compreendidos os pressupostos da teoria de uniformização de entendimentos ou de teses institucionais (Tueti), enfrentemos agora as seguintes questões.

4.1. Os enunciados possuem efeito vinculante ou meramente sugestivo? Se vinculante, em quais hipóteses o defensor público está autorizado a não observar a tese institucional?
Inicialmente, me parece didático e oportuno que separemos os enunciados em dois grupos temáticos, para os quais o grau de vinculação dos defensores públicos será diferente: (a) de um lado, temos o que denominarei aqui de enunciados de atuação ou de não atuação; (b) e de outro, o que denominarei de enunciados meritórios.

Para o primeiro grupo de enunciados, que dizem respeito a hipóteses de atuação ou não atuação da Defensoria Pública, entendo que a vinculação do defensor público é absoluta quando o enunciado veicular uma obrigação de atuação, e que a vinculação será relativa quando o enunciado veicular uma dispensa de atuação. Temos aqui o que Diogo Esteves e Franklyn Roger denominam de “eficácia positiva do enunciado” [9], de modo que a tese institucional deverá ser observada pelo defensor público sempre que imponha uma hipótese de atuação, ressalvando a possibilidade de o defensor público superar o enunciado quando este, por alguma razão, dispense a atuação no caso hipotético.

A polêmica aumenta quando tratamos de enunciados meritórios, quais sejam, aqueles que estabelecem que o defensor público deverá adotar determinada tese institucional em favor do assistido. Aqui, há quem sustente, e acredito que esse seja o entendimento institucional da maioria das defensorias, que os enunciados, “ainda que obtidos com a participação de todos os membros da carreira convocados para o Encontro de Teses a fim de afirmar a identidade e força institucional, entretanto, são de orientação, e não de subordinação”[10]. Não há como negar que os enunciados meritórios enfrentam uma maior dificuldade em razão de os casos concretos submetidos à apreciação do defensor público oferecerem, quase sempre, mais de uma forma de solução. No entanto, há teses presumidamente adequadas[11], as quais, observado o primeiro pressuposto da Tueti (excepcionalidade do enunciado), podem se converter em padrões obrigatórios de atuação.

Toda a celeuma em torno da vinculatividade das teses institucionais para os defensores públicos perde, porém, um pouco de importância se invocamos e resgatamos o fundamento maior da garantia da independência funcional: a melhor defesa para o assistido. Podemos, a partir desse cenário, estabelecer o seguinte: os enunciados meritórios vinculam, como regra, a atuação do defensor público, o qual poderá, no entanto, deixar de seguir o enunciado, desde que, motivadamente, demonstre que a sua linha de atuação acarrete mais benefício para a defesa do assistido[12]. Entendo, portanto, que o enunciado produzirá o efeito vinculante sempre que reproduzir o único ou o melhor modo de alcançar os objetivos e as funções institucionais da Defensoria Pública na defesa do cidadão necessitado[13].

A vinculação do defensor público ao conteúdo dos enunciados, admitida a superação da tese institucional quando a estratégia do membro propicie mais benefício para a defesa do assistido, confirma que estamos diante de um entendimento equilibrado: nem uma unidade rígida, que impõe ao defensor público a obrigatoriedade de atuar — sempre — contra a sua convicção, nem uma independência funcional imotivada e desarrazoada, que conduziria ao individualismo institucional.

4.2. Como deve ocorrer o processo de revisão ou cancelamento dos enunciados?
É imprescindível que os documentos normativos das defensorias públicas assegurem mecanismos de revisão ou cancelamento dos enunciados, os quais devem passar pelo mesmo procedimento democrático utilizado para a aprovação daqueles. Como argumentos que podem ensejar a revisão ou o cancelamento das teses institucionais, me parece que podemos trabalhar, analogicamente, com os requisitos estabelecidos pelo STF para a revisão ou o cancelamento de súmula vinculante, que, alternativamente, são os seguintes: (a) a evidente superação da jurisprudência do STF no trato da matéria, requisito adaptado, aqui, para a evidente superação do entendimento institucional no trato da matéria; (b) a alteração legislativa quanto ao tema; ou (c) a modificação substantiva de contexto político, econômico ou social[14].

5. Conclusão
A Defensoria Pública não é, como se costuma dizer, o maior escritório de advocacia para os pobres, com profissionais atuando livremente sem um objetivo maior. Agindo como instituição, a Defensoria trata dos usuários de seu serviço como classe, tomando para si, inclusive, a responsabilidade de desafiar e combater as circunstâncias políticas, jurídicas e sociais que, de alguma forma, estão a serviço de manter o status quo.


[1] Ver artigos 976 a 987 do novo Código de Processo Civil.
[2] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução e revisão: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 39.
[3] Nesse sentido, ver SOARES DOS REIS, Gustavo Augusto; ZVEIBIL, Daniel Guimarães; JUNQUEIRA, Gustavo. Comentários à Lei da Defensoria Pública. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 212-213.
[4] Neste sentido, ver ESTEVES, Diogo; ALVES SILVA, Franklyn Roger. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 521.
[5] Neste sentido, ver SOARES DOS REIS, Gustavo Augusto; ZVEIBIL, Daniel Guimarães; JUNQUEIRA, Gustavo. Comentários à Lei da Defensoria Pública, p. 210-211.
[6] Ver artigo 58, XV, da LC 988/2006 (DPE/SP), e artigo 45, XV, da LC 136/2011 (DPE/PR).
[7] A Oficina de Ideias da DPE/RJ foi criada por meio da Resolução 593/2011, de autoria do defensor público-geral.
[8] As Câmaras de Coordenação e Revisão da DPU são regulamentadas pela Resolução 58/2012 do Conselho Superior da instituição. A competência para editar enunciados e submeter para a aprovação do Conselho Superior se encontra no artigo 6º, IV, da resolução.
[9] Princípios Institucionais da Defensoria Pública, p. 521-522.
[10] ROCHA, Amélia Soares da. Defensora Pública: fundamentos, organização e funcionamento. São Paulo: Atlas, 2014, p. 116-117.[11] Neste sentido, afirma Aluísio Iunes Monti Ruggeri Ré: “Quanto à matéria tratada, a amplitude é maior, pois há uma gama enorme de métodos interpretativos, raciocínios lógicos e aspectos possíveis. Porém, há teses presumidamente adequadas (…)” (Manual do Defensor Público: teoria e prática. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 147).
[12] Entendendo o defensor público por adotar uma linha de defesa que divirja de tese institucional, me parece recomendável que tal informação seja transmitida, de forma motivada, ao assistido. Com a mesma opinião, Aluísio Ruggeri Ré defende que, optando o defensor por afastar a aplicação do enunciado, afigura-se “de bom juízo que esta construção diagonal seja motivada e transmitida ao usuário” (Manual do Defensor Público: teoria e prática, p. 147).
[13] Também neste sentido, ver WEIS, Carlos. Parecer sobre autonomia funcional, autonomia administrativa e independência funcional no âmbito da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Disponível em: http://www2.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Materia/MateriaMostra.aspx?idItem=868&idModulo=4947.
[14] Tais requisitos foram estabelecidos recentemente pelo STF, conforme noticiado no Informativo 800.

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    é defensor público federal, chefe da Defensoria Pública da União em Guarulhos (SP), especialista em Ciências Criminais e professor do curso CEI. É autor do livro "Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro" (2015) e coautor de "Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos".

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