Contas à Vista

O que fazer quando o Estado contrata e
dá um calote?

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

1 de dezembro de 2015, 7h00

Spacca
Um dos temas estudados pelo Direito Financeiro diz respeito às cláusulas financeiras dos contratos administrativos, desde os mais simples contratos de fornecimento de bens e serviços até os complexos contratos de parcerias público-privadas (PPPs), passando pelos contratos de concessão simples e por aí vai. É certo que o Direito Financeiro também estuda a fórmula financeira de outros pagamentos, como o dos precatórios judiciários, mas essa é uma prosa para outra coluna, tão largo é o tema. O que se vai analisar é a seguinte situação: o que se deve fazer quando foi realizada uma licitação, e corretamente cumprida a obrigação contratada, mas o poder público não paga, ou seja, não cumpre com sua parte no contrato. O que pode ser feito pela empresa? Apenas chorar? Colocar aquela fatura no fundo de uma gaveta e esperar bom tempo? O que pode ser juridicamente feito nessa situação?

Se você firmou um contrato administrativo para fornecimento de bens e serviços, seguramente o contrato tem uma cláusula de Empenho. Conforme a Lei 4.320/64, empenho de despesa é o ato emanado de autoridade competente que cria para o Estado a obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição (artigo 58). Observe-se que é uma das cláusulas mais importantes dos contratos administrativos, pois a Constituição determina que não pode ser feita despesa que exceda os créditos orçamentários (artigo 167, II), motivo pelo qual o empenho garante a reserva de valor necessária para a despesa. E o artigo 60 da Lei 4.320/64, seguindo a Constituição, determina que não pode ser feita despesa sem prévio empenho. A cláusula contratual de empenho é formalizada por meio de uma Nota de Empenho.

A efetivação do pagamento será sempre pendente de averiguação, que se caracteriza pela figura da liquidação. Suponhamos que o contrato seja para aquisição de mil carteiras escolares, para entrega parcelada em duas etapas de 500 carteiras, e que será pago o valor correspondente a cada quantidade entregue. Uma vez entregue o primeiro lote, deverá ser averiguado se as especificações foram cumpridas exatamente como contratadas, o que tecnicamente se denomina de liquidação, a qual gera direito adquirido para o credor receber o referido valor contratado (artigo 63, Lei 4.320/64). No caso, a empresa contratada para a entrega das carteiras terá direito adquirido a receber os valores contratados a cada etapa do contrato. No exemplo, surgirá para a empresa o direito adquirido a receber o valor correspondente a cada entrega das 500 carteiras. Deve-se ter atenção ao fato de que a lei menciona expressamente que a liquidação gera direito adquirido, o que não é pouca coisa.

Observe-se que essa regra rege tanto os contratos simples como os de compra e venda para entrega imediata de um bem, com pagamento à vista, contra entrega, como contratos complexos, de construção de grandes obras, como as de metrô ou hidrelétricas. Nos contratos complexos, a regra é de medição físico-financeira de cada etapa contratada, com liberação de recursos correspondentes a cada fase. A cada etapa concluída corresponderá um pagamento, o que é liquidado pela fiscalização, que deverá atestar o cumprimento daquela fase. Daí surge o direito adquirido a receber o pagamento a cada fase cumprida do cronograma.

O que pode ser feito se o poder público contratante não pagar? Como esse valor devido pode ser cobrado? A resposta é: por meio de processo judicial, mas isso não deve desanimar o leitor que está em busca de uma solução rápida para essa questão. Afinal, em muitos casos, a inadimplência pública pode acarretar a falência de fato da empresa, que necessita medidas urgentes para receber seus créditos e pagar seus fornecedores, dentre eles os trabalhadores. Isso é um campo fértil para o surgimento da erva daninha da corrupção, pois é mais fácil “soltar algum” para o sujeito que está segurando a fatura do que seguir o caminho da Justiça, que, pela via do processo ordinário, demorará anos a fio para solucionar a demanda — acarretando mais custos para quem já está com a corda no pescoço. O processo judicial a que me refiro não é uma ação ordinária, sujeita a longos e penosos trâmites, cujo desfecho não tem prazo para acabar e deve ser, ao fim e ao cabo, recebido por meio do tortuoso sistema de precatórios. Definitivamente, não é essa a via a que me refiro.

O processo judicial para o recebimento desses valores contratados, que possuem empenho e que foram devidamente liquidados, deve ocorrer por meio da via ágil do processo de execução, bem mais célere, com a possibilidade de penhora dos valores reservados no empenho. O processo deve ser instruído com a Nota de Empenho e com o despacho comprobatório da liquidação daquela etapa contratual. A despeito da norma que determina que os bens públicos são inalienáveis (Código Civil, artigo 100) e que, por serem inalienáveis, são impenhoráveis (CPC, 648 e 649, I), entendo ser plenamente possível a penhora de dinheiro nessa hipótese, pois o montante a ser penhorado estava tecnicamente reservado (empenhado) no Orçamento para o pagamento daquela etapa contratual, que, uma vez liquidada, gera direito adquirido para o credor receber aquela parcela inadimplida pelo ente público.

Haverá sempre quem defenda que esse valor é impenhorável, na forma do Código Civil e do Código de Processo Civil, e que deveria ser pago por meio de precatório requisitório, na forma do artigo 100 da Constituição. Observe-se que esse argumento parte do entendimento de que o processo judicial deve seguir o rito ordinário, com longa fase probatória e obrigatório duplo grau de jurisdição, e só ao final desse trâmite, se o ente público viesse a ser condenado a pagar, é que seria expedido o precatório requisitório, que seria pago, com muita sorte e eficácia, após 18 meses de sua expedição.

Esse argumento não pode ser aceito, por duas razões, ambas amparadas nas normas acima expostas: 1) o valor correspondente ao pagamento daquela etapa contratada estava empenhado, ou seja, reservado para essa finalidade; e 2) a comprovação do cumprimento daquela etapa foi efetuado através da liquidação, o que gera direito adquirido, estabelecido por lei, ao recebimento dos valores, por meio do processo de execução. Logo, por qual motivo seria necessário um processo ordinário para comprovar o que está de antemão aferido?

De fato, o CPC/73, no artigo 585, II, considera a Nota de Empenho como um título executivo extrajudicial, ao afirmar como tal “a escritura pública ou outro documento público assinado pelo devedor”. Ademais, não se há de afastar o artigo 586 da mesma codificação, quando estabelece que “a execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível”. Ora, a Nota de Empenho, devidamente liquidada, se configura em uma obrigação desse jaez.

É possível haver contratação sem empenho de despesa? Entendo que não. O artigo 55, V, da Lei 8.666/93 menciona que deve constar como cláusula obrigatória nos contratos administrativos “o crédito pelo qual correrá a despesa”, e o artigo 60 da Lei 4.320/64, já acima referido, menciona que não pode ser feita despesa sem prévio empenho, o que afasta qualquer possibilidade de uma contratação sem empenho.

Essa sistemática acabará por implementar também o artigo 5º da Lei de Licitações (Lei 8666/93), que estabelece a necessidade de obediência à “estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, salvo quando presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente, devidamente publicada”, o que não é usualmente obedecido por várias das administrações públicas ao longo de nosso país, mas não tem gerado a penalidade prevista na mesma lei, em seu artigo 92, que estabelece detenção de dois a quatro anos, além de multa, o que alcança inclusive as pessoas/empresas beneficiárias desse ato.

Dessa forma, o inadimplemento do que tiver sido empenhado e liquidado gera direito adquirido ao recebimento, que deverá ocorrer de acordo com a ordem cronológica de apresentação das faturas ao ente público. O descumprimento dessa sistemática ensejará a responsabilidade penal do servidor responsável pela quebra injustificada da ordem cronológica e a possibilidade de ser proposta ação de execução contra o ente público, inclusive com penhora judicial do dinheiro público reservado para aquele pagamento.

Esse é mais um dos vários argumentos que justificam o procedimento ético e jurídico de cobrança dos valores não pagos por meio de uma via expedita, que é a do processo judicial de execução, com penhora dos valores empenhados, e não por meio do processo ordinário de cobrança, que acaba por colocar os créditos em uma penosa e tortuosa via judicial sem fim e que culmina na tortura que é o uso deturpado do sistema de precatórios, que se caracteriza como uma boa ideia completamente distorcida pelos nossos administradores públicos, em especial os estaduais e municipais.

Esses impasses no sistema de pagamentos dos contratos administrativos aumentam em demasia o custo das obras e serviços públicos, pois trazem insegurança aos agentes privados sobre a data em que o pagamento será efetivamente recebido, e deixa as empresas à mercê de eventuais espertos, com pouca ética, que acabam por apresentar dificuldades visando vender facilidades.

Parodiando Mário de Andrade, que escreveu em sua obra-prima, Macunaíma – O Herói Sem Nenhum Caráter, que os males do Brasil são muita saúva e pouca saúde, pode-se afirmar que os males do país são pouca ética e muita esperteza. O procedimento expedito do processo judicial de execução, com penhora dos recursos públicos empenhados, se caracteriza como um necessário componente para o recebimento dos valores efetivamente devidos pelo poder público e não pagos às empresas que com ele contratam.

Em suma, a situação perversa acima descrita aumenta o famigerado custo Brasil, que acaba onerando toda a sociedade sem trazer nenhum benefício à mesma, só a uns poucos espertos, Macunaímas redivivos, que se locupletam dessa sistemática.

Autores

  • Brave

    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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