Opinião

Impeachment por ato do mandato anterior: uma resposta a Lenio Streck

Autor

  • Gustavo Badaró

    é professor titular de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo advogado criminalista e consulto jurídico.

31 de agosto de 2015, 8h00

No dia 22 de agosto, foi publicado no jornal Folha de S.Paulo artigo de minha autoria, favorável à possibilidade de impeachment do presidente da República por ato do exercício da função praticado no mandato anterior, em caso de reeleição. O ponto de vista contrário, pela impossibilidade, foi defendido por Pedro Estavam Serrano.

Ambos os textos mereceram uma crítica do jurista e articulista Lenio Streck, que se posicionou contrariamente ao meu ponto de vista, em artigo da ConJur, de 24 de agosto.

A crítica não me entristece. Ao contrário, é motivo de orgulho merecer a atenção e reflexão de Lenio Streck. Pelo respeito que tenho pela dialética e admiração pelo autor de sua crítica, analisei com muita atenção seus argumentos e compartilharei com o leitor minhas conclusões.

Não se trata de uma réplica, mas, se houver tréplica, sempre será bem-vinda. Antes, porém, uma síntese dos argumentos pró e contra.

Retomo meus argumentos: (1) a Constituição e a Lei 1079/1950 não preveem expressamente tal possibilidade de impeachment por ato do mandato anterior, mas também não trazem explícita vedação; (2) a Constituição de 1988, em sua redação originária, e, antes, a Lei 1079/50, não foram elaboradas para uma sistemática eleitoral que previa a reeleição do presidente da República, o que foi alterado com a Emenda Constitucional 16/1997; (3) sendo admissível a recondução, o impeachment por ato anterior é perfeitamente possível, no caso de o presidente ser reeleito.

O fundamento para tanto, que é um fundamento constitucional, é que não existe poder sem responsabilidade pelo exercício do mandato. Se assim não fosse, ao final do mandato, e no período em que concorresse à reeleição, o ocupante do cargo estaria no poder, mas sem responsabilidade, porque qualquer crime de responsabilidade que viesse a cometer não seria passível de processo de impedimento por absoluta falta de tempo para sua instauração e conclusão.

Eis os argumentos contrários de Lenio: (1) há limites na atividade de interpretação da lei, que não pode ser um livre atribuir de sentido do intérprete; (2) a interpretação deve se dar de acordo com o texto da Constituição de 1988, e não com o da de 1946 e com as pistas do que a Carta atual dá sobre o que é mandato; (3) literalmente: “A preservação da vontade popular — para o bem e para o mal — é a pedra de toque que deve servir para dar sentido a eventuais vaguezas ou ambiguidades decorrentes de ‘gaps de sentido’, como, por exemplo, a discussão acerca da palavra ‘mandato’ ou ‘estar no exercício’ ou, ainda, ‘se o segundo mandato é ou não uma continuidade do primeiro’”.

Nossa interpretação partiu da Constituição de 1988, mas não ignorando que ela sofreu mutações. No caso, a reforma importante para a atividade do intérprete é a possibilidade da reeleição. Logo, o conceito de responsabilidade pelo exercício do poder não pode ser o mesmo antes e depois. A reeleição pode imunizar atos de incompetência, porque o povo achou que o mandatário deve ser reconduzido, considerando-o apto para o cargo, mas não pode passar uma borracha nos crimes de responsabilidade.

Não creio, portanto, que seja correta a crítica de que meus argumentos interpretaram a Constituição conforme a lei ordinária, quando o correto seria “uma interpretação conforme a Constituição”.

Por outro lado, e isso não estava no texto, a crítica de Lenio Streck parece decorrer do fato de o jurista ter atribuído ao meu texto um sentido que ele não tem: de que a má administração e a incompetência no exercício do cargo do mandatário legitimamente eleito autorizariam o seu processo de impeachment.

Esse não era o propósito do texto, que pretendia discutir, apenas e tão somente, um pressuposto do processo de impeachment: atos de qual mandato autorizam-no? Questão diversa é o que caracteriza “crime de responsabilidade” como hipótese de cabimento do processo de impedimento.

Em texto anterior deixei claro — sempre partindo de uma visão constitucional — meu ponto de vista que o mau governo, ou a incompetência administrativa, não justificam o processo de impedimento. Há, realmente, limites hermenêuticos para a expressão “crime de responsabilidade”. “Crime”, mesmo não se tratando de infração penal, não é má administração! Para isso, realmente, concordo com o meu crítico, para o bem ou para o mal, deve se preservar a vontade popular que reelegeu o honesto, ainda que inapto.

Se o povo votou mal, deverá aprender votando bem na próxima eleição. Na leitura constitucional, o impeachment exige “crime de responsabilidade”, que ainda que não se trata de infração penal em sentido estrito, certamente não basta para caracterizá-lo a simples má gestão.

Diferentemente do modelo norte-americano, não temos impeachment por “má conduta”. A nossa Constituição somente prevê o processo de impedimento por “crimes de responsabilidade”, o que é muito distinto do previsto na Constituição dos Estados Unidos, que no artigo II, sec. 4, refere-se a Treason, Bribery, or other high Crimes and Misdemeanors. Embora a expressão high crimes and misdemeanors permita grande abertura semântica, em especial, em relação a misdemeanors, é evidente que ela se aproxima mais dos “malfeitos”, para usarmos uma expressão ao gosto da atual mandatária. Porém, isso não autoriza o impeachment entre nós. E não se brinca com a legalidade! Seria diferente, para continuarmos no exemplo estadunidense, se nossa Constituição admitisse o impeachment por maladministration (Constituição de Massachusetts, cap, I, sec. II, art. VII) ou ainda malpractice (Constituição de New Hampsihre, part. II, art. 38) ou mesmo incompetency (Constituição de West Virginia, art. IV, n. 9).

Cremos portanto, que não é cabível a crítica de que fizemos analogias ou “pan-hermeneutismo” com a coisa mais sagrada da democracia, que é a vontade do povo. Sim, a democracia é o regime da vontade popular, mas no Estado Democrático de Direito a vontade popular pode muito, mas não pode tudo. Prevalece a vontade da maioria, respeitados os direitos fundamentais das minorias. E, no caso, a aprovação popular não pode manter no cargo um presidente que cometeu crime de responsabilidade, seja antes, seja depois da eleição. Assim como a vontade popular não pode eleger alguém que por seus atos tenha se tornado inelegível.

Encerramos com a mesma convicção do artigo anterior: poder sem responsabilidade é incompatível com Estado Democrático de Direito, mesmo para governante que recebeu seu mandato da vontade popular. Concluímos com a lição do ilustre jurista gaúcho Paulo Brossard: “a só eleição, ainda que isenta, periódica e lisamente apurada, não esgota a realidade democrática, pois, além de mediata ou imediatamente resultante de sufrágio popular, as autoridades designadas para exercitar o governo devem responder pelo uso que dele fizerem”.

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