Embargos Culturais

Em memória de Klara Placerman, que sobreviveu aos campos nazistas

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

30 de agosto de 2015, 8h00

Spacca
No contexto da literatura memorialística do holocausto[1] há um recente título brasileiro que comove e provoca reflexão na medida em que esse inesquecível drama do século XX – os campos de extermínio nazista – também alcançou pessoas que se reconstruíram entre nós brasileiros[2]. É o caso da história de Klara Pelcerman, nascida na Polônia, humilhada e maltratada em Auschwitz, Bergen-Belsen e Elsing, sobrevivente da barbárie, que emigrou para Israel, e que chegou no Brasil em 1953. Com ela, o marido, Zev, polonês de Varsóvia, e a filha, Amália, hoje médica em São Paulo, que adaptou e condensou em forma de livro as impressionantes anotações dessa inusitada e brava figura humana, marcada pelo otimismo e fortalecida pelo enfrentamento das instabilidades da vida, da história e da contingência. Klara Pelcerman é um exemplo de superação. É em memória dessa lutadora invencível que divido as observações vindouras sobre o livro de memórias que nos deixou.

Klara é de uma próspera família judia que vivia num elegante bairro de Cracóvia, “próximo a um parque, um castelo e uma igreja”[3]; a família desfrutava dos confortos então limitados a uma minoria, a exemplo do rádio e do telefone[4]. Klara descreveu um vizinho, “um jovem rapaz que ajudava o padre nos serviços da igreja próxima de sua casa”[5]. O menino chamava-se Karol Józef Wojtila, que conheceremos como João Paulo II a partir de 1978[6]. Wojtilia desempenhou importante papel na derrubada das ditaduras comunistas no leste europeu, condensando em sua ação as forças do catolicismo polonês.

A ótima situação econômica da família de Klara foi ameaçada e destruída pela expansão do nazismo, conjuntura que Klara teria premunido em um sonho, no qual se via “em um lugar estranho, uma espécie de campo”[7]. Os nazistas invadiram a Polônia em 1º de setembro de 1939, dia que dá início à guerra, e aos desastres que a vida submeteu a Klara. Seguiu uma ordem para uso, por parte dos judeus, de uma faixa amarela com a estrela de Davi, “(…) e a inscrição Jude, amarrada no braço ou pregada na blusa, pois era obrigatório e sempre havia alguém pronto para (…) denunciar (…)”[8]. O mundo se transformou em um palco de humilhações e afrontas.

Os relatos de Klara são assustadores. A irracionalidade da sanha totalitarista, sarcasticamente plasmada em nome da ciência, da inteligência e da vontade, é fortemente denunciada no exemplo pessoal de Klara, para quem a perda de toda a família, a morte da mãe, a humilhação, a separação, a exaustão física e moral de todos com os quais convivia era apenas o começo de um martírio historicamente desnecessário e injustificável. A passagem por Auschwitz, onde Klara chegou a bordo de um “trem de carga, escuro e malcheiroso”[9] é um dos momentos mais dramáticos da narrativa: o almoço no campo de prisioneiros, prossegue Klara, “consistia numa panela cheia de água quente”[10]. A degradação existencial chegava a um ponto limítrofe; segundo Klara, “as meninas nem tinham mais pudor pois nossa moral havia sido enterrada, não havia mais dignidade ou orgulho”[11].

No nazismo, ordens de prisão eram sumárias. As provas dependiam da inteligência do inquiridor. Não havia a reserva legal. Tipificava-se por analogia. A lei penal era retroativa em prejuízo do acusado. Executava-se sob qualquer pretexto. Milhões de vida foram ceifadas. As imposições da política cruel sufocaram o direito, a justiça, a dignidade.

Inegável o retorno da discussão da culpa do agressor nazista, tema explorado por Karl Jaspers, que investigou e problematizou essa situação, logo no fim da guerra, e que a definiu e a dividiu em culpa moral, política e metafísica. O culpado, do ponto de vista criminal, seria quem teria violado a lei, isto é, o direito natural e as normas positivas de direito internacional. O culpado político fora aquele que consentiu com os excessos do regime; as potências invasoras, assim, estariam legitimadas para responsabilizar os vencidos. A culpa moral atingiria a todos aqueles que invocavam que cumpriam ordens superiores. A culpa metafísica, a mais complexa delas, porque transcendia aos agressores, seria de alguma forma sentida por todos aqueles que sobreviveram, e que se lembravam de que todos quantos sofreram e morreram nos campos de extermínio. Isto é, os judeus que sobreviveram, também sofreram por aqueles que foram sacrificados[12].

É esse o ponto que justamente me cativa nas memórias de Klara Percelman. Não percebi, em nenhuma linha, passagem ou alusão, qualquer sentido de revanche, de desforra, de ódio ou de vingança. Klara parece transcender ao desgosto entregando-se para o enfrentamento dos problemas na medida em que foram surgindo. Encarou também inúmeras dificuldades para chegar em Israel, como integrante de “(…) uma família de órfãos de guerra judeus (…) o grupo era alegre, embora cada jovem coração carregasse inúmeras feridas, que dificilmente cicatrizariam um dia”[13]. A viagem foi marcada por mágoas ainda pendentes de cura, refratárias a rejeição sofrida na Polônia, onde Klara fora maltratada, entregue a carrascos que regavam os campos com o sangue de pessoas indefesas[14].

A vinda para o Brasil também resgata a imagem de futuro que nosso País suscitava no estrangeiro, ecos da propaganda de Vargas, também veiculadas no livro de Stephan Zweig, Brasil, país do Futuro. Há muito a ser desvendado sobre as ambiguidades de Vargas para com a imigração sionista. Mais tarde, Klara percebeu a movimentação suspeita que houve na ditadura militar pela qual passamos, momento em que recordou momentos de angústia vividos na Polônia. Assim, a propósito do que viu em 1968, escreveu que estavamos em “(…) tempo de perseguições e prisões (…) tempo de ditadura militar (…) qualquer movimentação popular era tolhida pelo exército, que estava nas ruas (…) todos estavam sujeitos a interrogatórios e até torturas (…)”[15].

Klara Pelcerman viveu metamorfoses e revoluções. Certamente possuidora de um fortíssimo instinto de sobrevivência, sua vida é prova absoluta de que as grandes tiranias não triunfam porque em cada pequeno inocente há uma força inexplicável que comprova a natureza também divina da existência humana. Refiro-me ao amor pelo próximo, que também se revela no cuidado de si mesmo. E são esses pequenos inocentes, como Klara, agredida num campo de concentração, que subjugaram, com sua força moral, os inimigos da sociedade aberta e esclarecida.


[1] Entre outros, Levi, Primo, É isto um homem?, Rio de Janeiro: Rocco, 1988, Tradução de Luigi Del Re. Raschke, Richard, Fuga de Sobibor, Porto Alegre: 8Inverso, 2011, Tradução de Felipe Citolin Abal. Para uma problematização política do tema, por todos, Agambem, Giorgio, O que resta de Auschwitz, São Paulo: Boitempo, 2008. Tradução de Selvino J. Assman.

[2] Pelcerman, Klara, Coração sem lágrimas, São Paulo: Editora e Livraria Sêfer, 2014. Adaptação de Aália Pelcerman a partir de uma tradução de Anna Elzbieta Parzewska Valentim.

[3] Pelcerman, Klara, cit., p. 9.

[4] Pelcerman, Klara, cit., p. 11.

[5] Pelcerman, Klara, cit., loc. cit.

[6] Cf. Pelcerman, Klara, cit., loc. cit.

[7] Pelcerman, Klara, cit., p. 14.

[8] Pelcerman, Klara, cit., p. 17.

[9] Pelcerman, Klara, cit., p. 43.

[10] Pelcerman, Klara, cit., p. 45.

[11] Pelcerman, Klara, cit., loc. cit.

[12] Cf. Jaspers, Karl, The Question of German Guilty, New York: Fordham, 2001.

[13] Pelcerman, Klara, cit., p. 61.

[14] Cf. Pelcerman, Klara, cit., loc. cit.

[15] Pelcerman, Klara, cit., p. 97.

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