Convenção Americana

Eduardo Cunha não pode ser julgado diretamente pelo Plenário do STF

Autor

  • Caio Paiva

    é defensor público federal e chefe da Defensoria Pública da União em Campinas/SP. Especialista em Ciências Criminais. Professor de Processo Penal e Direitos Humanos do Curso CEI. Coeditor do Clube do Direito (www.clubedodireito.com). É autor dos livros Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro e Prática Penal para Defensoria Pública e coautor do livro Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos.

26 de agosto de 2015, 6h16

Na última quinta-feira (20/8), o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, protocolou no Supremo Tribunal Federal duas denúncias, uma contra o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e outra contra o senador e ex-presidente da República, Fernando Collor. O meu interesse, nesta ocasião, não diz respeito ao mérito das imputações nem às suas consequências jurídico-penais, mas sim, e apenas, à uma verificação de compatibilidade do procedimento destas ações penais originárias com a garantia do duplo grau de jurisdição assegurada em Tratados Internacionais de Direitos Humanos aos quais o Brasil — voluntariamente — aderiu.

Vejamos. A Constituição Federal atribuiu ao STF a competência para julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, dentre outras autoridades, os membros do Congresso Nacional (artigo 102, inciso I, alínea b). Foi o que ocorreu na Ação Penal 470, por exemplo, em que deputados e senadores foram julgados — e condenados — em primeira e única instância pelo STF, sem qualquer direito de revisão do julgamento, com a exceção, para aqueles que preencheram o requisito objetivo, mínimo de quatro votos divergentes, conforme artigo 334, parágrafo único, do RISTF, da interposição dos embargos infringentes (conclusão alcançada pelo Supremo em votação apertada de 6 a 5).

Em 3 de junho de 2014, por meio da Emenda Regimental 49, o STF alterou dispositivos do seu Regimento Interno, atribuindo, agora, a competência para o julgamento, nos crimes comuns, de deputados e senadores, às Turmas (artigo 9º, inciso I, alínea j), mantendo, porém, a competência do Plenário para julgar “o presidente da República, o vice-presidente da República, o presidente do Senado Federal, o presidente da Câmara dos Deputados, os ministros do Supremo Tribunal Federal e o procurador-geral da República” (artigo 5º, inciso I).

Diante deste contexto, deparamo-nos com três cenários: (I) deputados e senadores condenados na AP 470 foram julgados em única e última instância pelo Plenário do STF, com direito, preenchido o requisito objetivo supracitado, ao recurso de embargos infringentes; (II) o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, será julgado pelo Plenário do STF, conforme artigo 5º, inciso I, do RISTF; e (III) o senador Fernando Collor será julgado pela 2ª Turma do STF, conforme artigo 9º, inciso I, alínea j, do RISTF. Estes três cenários provocam, igualmente, três questionamentos: O direito ao duplo grau de jurisdição pode ser excepcionado na hipótese de o cidadão ser julgado em primeira e única instância pelo tribunal máximo do seu país? O recurso de embargos infringentes satisfaz a garantia do duplo grau? A atribuição de competência para julgamento do acusado por uma das Turmas do STF, com recurso para o Plenário, satisfaz a garantia do duplo grau?

Sem qualquer pretensão de esgotar as múltiplas controvérsias em relação ao tema, me parece oportuna uma breve reflexão sobre a compatibilidade das citadas regras de competência em casos de prerrogativa por foro com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, tanto os documentos positivados quanto a interpretação deles oferecida pelos tribunais e órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos.

Pois bem. A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), também denominada de Pacto de São José da Costa Rica, estabelece como uma garantia mínima de toda pessoa acusada de um delito o “direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior” (artigo 8.2.h). O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), por sua vez, prevê que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei” (artigo 14.5). O Brasil aderiu a ambos esses Tratados Internacionais, internalizando-os no ordenamento jurídico nacional pelos Decretos 592/1992 (PIDCP) e 678 (CADH). Conforme se vê, não há qualquer exceção ao duplo grau de jurisdição, no que os sistemas regional americano e global de proteção dos direitos humanos divergem do sistema europeu, e isso porque a Convenção Europeia de Direitos Humanos prevê expressamente que “Este direito [ao duplo grau de jurisdição] pode ser objeto de exceções em relação a infrações menores, definidas nos termos da lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ou culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição” (artigo 2.2).

Assim situado o tema, confrontemos os três cenários descritos com os seus respectivos questionamentos:

O direito ao duplo grau de jurisdição pode ser excepcionado na hipótese de o cidadão ser julgado em primeira e única instância pelo tribunal máximo do seu país? Ou: Eduardo Cunha pode ser julgado direta e exclusivamente pelo Plenário do STF?

A resposta, para ambas as perguntas, é negativa. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando do julgamento do Caso Barreto Leiva vs. Venezuela, em 17 de novembro de 2009, declarou que o país demandado violou o direito do acusado reconhecido no artigo 8.2.h da CADH, na medida em que a condenação adveio de um tribunal que conheceu o caso em única e última instância, inviabilizando, consequentemente, o exercício do direito de obter uma revisão da sentença (parágrafo 91). Assim, a Corte Interamericana ordenou a Venezuela a garantir ao senhor Barreto Leiva a faculdade de recorrer da sentença condenatória, direito que, se exercido, deveria ensejar novo julgamento (parágrafos 128, 129 e 130).

Importante ressaltar que a Corte Interamericana reiterou este entendimento recentemente, em 30 de janeiro de 2014, quando do julgamento do Caso Liakat Ali Alibux vs. Suriname, ocasião em que reconheceu que o fato de o senhor Alibux ter exercido o cargo de ministro de Finanças e ministro de Recursos Naturais em Suriname, o que lhe assegurava o foro por prerrogativa na Alta Corte de Justiça do país, não poderia servir para lhe retirar o direito ao duplo grau de jurisdição, razão pela qual considerou violado o artigo 8.2.h da CADH (parágrafos 103, 104, 105 e 106)

Neste mesmo sentido, já manifestou o Comitê de Direitos Humanos da ONU que “quando o tribunal mais alto de um país atua como primeira e única instância, a ausência de todo direito a revisão por um tribunal superior não é compensada pelo fato de haver sido julgado pelo tribunal de maior hierarquia do Estado Parte; pelo contrário, tal sistema é incompatível com o Pacto, a menos que o Estado Parte interessado haja formulado uma reserva para esse efeito” (Observação Geral 32, 2007, parágrafo 47).

Assim, conclui-se que Eduardo Cunha, mesmo na condição de presidente da Câmara dos Deputados, não pode ser julgado pelo Plenário do STF, de modo que o artigo 5º, inciso I, do RISTF, se afigura inconvencional por afrontar o artigo 8.2.h da CADH e o artigo 14.5 do PIDCP. Para evitar futuro questionamento do caso perante sistemas internacionais de proteção de direitos humanos, agiria bem o procurador-geral da República se peticionasse requerendo a declinação da competência do Plenário para uma das Turmas do Supremo.

O recurso de embargos infringentes satisfaz a garantia do duplo grau? Ou: os deputados e senadores condenados na AP 470, que tiveram a oportunidade de manejar os embargos infringentes, tiveram o direito ao duplo grau respeitado?

Entendo que a resposta — novamente — é negativa, e isso por duas razões. A primeira delas, de natureza objetiva, se relaciona com o fato de a interposição dos embargos infringentes não garantir, sempre, uma revisão integral da decisão questionada, já que tal expediente recursal exige pelo menos quatro votos divergentes para cada matéria discutida. Assim, por exemplo, se o Plenário do STF condena o réu pela prática do crime de lavagem de dinheiro, mas somente três ministros divergem e absolvem o acusado, não se abrirá a possibilidade do manejo deste recurso. E a segunda razão, de natureza subjetiva, é que, tendo havido julgamento único e em última instância pelo Plenário do STF, caberia também a este órgão julgar o recurso de embargos infringentes, não havendo, portanto, verdadeiro “duplo grau”, garantia que exige que outro juiz ou tribunal julgue o recurso.

Assim, conclui-se que os réus condenados na AP 470, que já denunciaram o Brasil na Comissão Interamericana por violação do direito ao duplo grau, têm, sim, chance real de anularem o julgamento se a corte mantiver os precedentes firmados nos Casos Barreto Leiva vs. Venezuela e Liakat Ali Alibux vs. Suriname[1].

A atribuição de competência para julgamento do acusado por uma das Turmas do STF, com recurso para o Plenário, satisfaz a garantia do duplo grau? Ou: o julgamento de Fernando Collor pela 2ª Turma do STF, com recurso para o Plenário, satisfaz a garantia do duplo grau?

A resposta, diversamente das anteriores, é positiva. Se o réu é julgado por um órgão fracionário do STF, ou seja, por uma das suas duas Turmas, garantido o recurso para o Plenário, conclui-se que o duplo grau é observado, de modo que o artigo 9º, inciso I, alínea j, do RISTF, está em conformidade com a CADH, tratando-se, portanto, de um dispositivo que passa pelo controle de convencionalidade.

Nesse sentido, já decidiu a Corte Interamericana, no julgamento do Caso Liakat Ali Alibux vs. Suriname, que “ao não existir um tribunal de maior hierarquia, a superioridade do tribunal que revisa a sentença condenatória se entende cumprida quando o Pleno, uma sala ou câmara, dentro do mesmo órgão colegiado superior, mas de distinta composição da que conheceu a causa originariamente, aprecia o recurso interposto com possibilidade de revogar ou modificar a sentença condenatória ditada, se assim o considerar pertinente” (parágrafo 105). A mesma conclusão alcançou a Corte Interamericana no julgamento do Caso Barreto Leiva vs. Venezuela, oportunidade em que, após ter considerado compatível com a CADH o estabelecimento de foros especiais para altos funcionários públicos, ressaltou que, ainda nestas hipóteses, o Estado deve permitir que o cidadão conte com a possibilidade de recorrer da sentença condenatória, o que pode ocorrer, por exemplo, “se for disposto que o julgamento em primeira instância estará a cargo do presidente ou de uma sala do órgão colegiado superior e o conhecimento da impugnação corresponderá ao Pleno de dito órgão, com exclusão daqueles que já se pronunciaram sobre o caso” (parágrafo 90).

Deste modo, conclui-se que Fernando Collor pode (na verdade, deve) ser julgado por uma das Turmas do STF, com recurso para o Plenário, observando-se, porém, que os ministros que participaram do julgamento na Turma não poderão participar do julgamento do recurso no Plenário.

Considerações finais
Já passa da hora de o Supremo Tribunal Federal, assim como os demais sujeitos processuais que transitam por aquela corte, a exemplo da advocacia, da Defensoria Pública e do Ministério Público, assumirem a responsabilidade de artífices do controle de convencionalidade das normas processuais penais, promovendo uma verificação de compatibilidade do ordenamento jurídico doméstico com a ordem jurídica internacional, o que somente será alcançado a partir do estudo, da incorporação e do diálogo (inclusivo) com a jurisprudência que emana dos Tribunais Internacionais de Direitos Humanos[2].


[1] A morosidade do sistema interamericano, porém, prejudica um exame célere do pleito, o que seria atenuado (e espera-se que assim seja num futuro próximo) se, à semelhança do sistema europeu de proteção dos direitos humanos, fosse facultado ao cidadão o acesso direto à Corte Interamericana.

[2] Convido o leitor à leitura da obra Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos, que escrevi com o amigo e professor Thimotie Aragon Heemann, publicada pela Editora Dizer o Direito: http://www.editoradizerodireito.com.br/livro/jurisprudencia-internacional-de-direitos-humanos

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    é defensor público federal, especialista em ciências criminais e professor do curso CEI. É autor do livro "Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro" (2015).

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