Tribuna da Defensoria

Defensoria Pública pode ser amicus curiae em instâncias internacionais

Autor

  • Caio Paiva

    é defensor público federal e chefe da Defensoria Pública da União em Campinas/SP. Especialista em Ciências Criminais. Professor de Processo Penal e Direitos Humanos do Curso CEI. Coeditor do Clube do Direito (www.clubedodireito.com). É autor dos livros Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro e Prática Penal para Defensoria Pública e coautor do livro Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos.

25 de agosto de 2015, 14h13

Dando continuidade ao assunto tratado na última coluna[1], quando constatamos se tratar o acesso à Justiça de um direito humano fundamental previsto em diversos Tratados e Declarações Internacionais de Direitos Humanos, e que, no Brasil, a instituição encarregada de promover a proteção dos direitos humanos da população necessitada é a Defensoria Pública, prossigamos com outros questionamentos sobre o tema, aqui apresentados como forma de contribuir com o debate, e não para encerrar a discussão sobre as diversas conexões entre o acesso à Justiça internacional e a proteção dos direitos humanos[2].

Conforme afirmaram Cappelletti e Garth, o acesso à Justiça “pode ser encarado como requisito fundamental — o mais básico dos direitos humanos — de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos[3]”. A sua essencialidade máxima também é reconhecida por Ana Paula de Barcellos, que insere o direito de acesso à Justiça no denominado “mínimo existencial”, compondo, portanto, o conteúdo nuclear do princípio da dignidade da pessoa humana[4]. De modo semelhante, a Corte Interamericana já ressaltou que “o acesso à Justiça constitui uma norma imperativa de Direito Internacional e, como tal, gera obrigações erga omnes para os Estados de adotar as medidas que sejam necessárias para não deixar na impunidade essas violações (…)[5]”.

Embora o acesso à Justiça internacional seja uma função relativamente nova para a Defensoria Pública, assim como o é, igualmente, a própria possibilidade de demandar contra Estados em instâncias internacionais de proteção dos direitos humanos, além dos exemplos concretos que elenquei na primeira parte deste texto, destaco a importante atuação da Defensoria Pública dos EUA no acompanhamento do Caso Michael Domingues vs. EUA perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ocasião em que tal órgão do sistema regional americano de proteção dos direitos humanos superou o seu precedente firmado no Caso Roach e Pinkerton vs. EUA para estabelecer que a proibição da aplicação da pena de morte a menores de 18 anos configura uma norma consuetudinária em Direito Internacional, proibindo, consequentemente, a execução de Michael Domingues pelo país demandado[6].

Outro exemplo de acesso à Justiça internacional encampado pela Defensoria Pública pode ser encontrado no importantíssimo Caso Mendonza e outros vs. Argentina, julgado em 2013 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando, dentre outras considerações, condenou a Argentina por aplicar pena cruel e desumana (prisão perpétua) a jovens menores de 18 anos. Atuou na representação de cinco das vítimas, nesse caso, a defensora pública-geral da Argentina, Stella Maris Martinez[7].

Com essas considerações iniciais, analisemos mais algumas questões:

A Defensoria Pública pode figurar como amicus curiae em processos que tramitam em instâncias internacionais de direitos humanos?
Sim. Vejamos, por exemplo, o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujo Regulamento define amicus curiae como sendo “a pessoa ou instituição alheia ao litígio e ao processo que apresenta à Corte fundamentos acerca dos fatos contidos no escrito de submissão do caso ou formula considerações jurídicas sobre a matéria no processo, por meio de um documento ou de uma alegação em audiência” (artigo 2.3). O detalhamento da atuação do amicus curiae perante a Corte vem disposto no artigo 44 do Regulamento[8]. Muito importante que as Defensorias Públicas passem a desempenhar essa função, contribuindo, dessa maneira, para a produção da jurisprudência internacional de direitos humanos nas Américas, fornecendo à Corte um instrumental argumentativo sobre os impactos das suas decisões para os cidadãos necessitados, tratando-se, ainda, de oportunidade singular de a Defensoria Pública levar até a Corte informações sobre o cenário de violação de direitos humanos sobre a matéria no próprio país[9].

O defensor público pode figurar como amicus curiae em processos que tramitam perante instâncias internacionais de proteção dos direitos humanos?
Conforme vimos na questão anterior, a Corte admite como amicus curiae tanto pessoas quanto instituições. Digna de nota a informação de que, quando da apreciação do Caso Fermín Ramírez vs. Guatemala, em 2005, no qual se discutia, entre outros temas, a consideração de “juízos de periculosidade” em legislações penais, a Corte Interamericana admitiu como amicus curiae o jurista argentino Eugênio Raul Zaffaroni, que recentemente foi eleito para o cargo de juiz da própria Corte Interamericana[10]. No entanto, a meu ver, a atuação individual do defensor público como amicus curiae, e não como subscritor da atuação institucional da Defensoria Pública, equivaleria a uma forma de exercício de advocacia, o que é vedado pela Constituição Federal (artigo 134, parágrafo 1o).

De “qual” Defensoria Pública é a legitimidade para promover a execução, internamente, de sentenças proferidas contra o Brasil por instâncias internacionais de proteção dos direitos humanos?
Na primeira parte deste texto, sustentei que a legitimidade para demandar contra o próprio país perante sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos é concorrente entre as Defensorias Públicas, não havendo que se falar em legitimidade exclusiva da Defensoria Pública da União. No entanto, considerando que os Estados-membros não têm personalidade jurídica de direito internacional[11], a qual é reservada, no nosso país, à República Federativa do Brasil, representada pela União, me parece que a legitimidade para promover a execução de sentenças proferidas contra o Brasil deve ser atribuída à DPU, que judicializará a questão perante a Justiça Federal. Nada impede, porém, muito pelo contrário até, o litisconsórcio ativo entre a Defensoria Pública do Estado que eventualmente tenha demandado contra o país em sistema internacional de proteção dos direitos humanos e a Defensoria Pública da União.

A Defensoria Pública Interamericana interfere na legitimidade das Defensorias Públicas nacionais para demandar perante o sistema interamericano de direitos humanos?
Responderei em breve a essa pergunta num texto exclusivo sobre a Defensoria Pública Interamericana.


[1]Cf. Defensoria Pública tem a possibilidade de demandar contra o próprio país: http://www.conjur.com.br/2015-ago-18/tribuna-defensoria-defensoria-possibilidade-demandar-proprio-pais Aproveito para fazer, aqui, uma correção sobre esse texto, a partir de informação que me foi passada pelo colega defensor público do Estado de São Paulo Felipe Hotz, no sentido de que, na verdade, a escolha dos integrantes e coordenadores dos Núcleos Especializados da DPE-SP é feita pelo Conselho Superior, conforme o artigo 8º, parágrafo 2º, da Deliberação 38/2007 daquele órgão colegiado, e não pelo defensor público-geral, como eu havia afirmado.
[2]Aprofundo a abordagem da matéria na pesquisa, ainda em andamento, intitulada de Defensoria Pública e Proteção dos Direitos Humanos: teoria e prática do acesso à justiça internacional.
[3]CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 12.
[4]BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 293-301.
[5]Cf. Caso Goiburú e outros vs. Paraguai. Fundo, reparações e custas. Sentença de 22/09/2006, § 131.
[6]Para mais informações sobre esses precedentes, cf. PAIVA, Caio; HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. Manaus: Dizer o Direito, 2015, p. 53-54 (http://www.editoradizerodireito.com.br/livro/jurisprudencia-internacional-de-direitos-humanos).
[7]Um estudo sobre o Caso Mendonza e outros vs. Argentina pode ser encontrado em PAIVA, Caio; HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. Manaus: Dizer o Direito, 2015, p. 172 e seguintes.
[8]Cf. “Artigo 44. Apresentação de amicus curiae. 1) O escrito de quem deseje atuar como amicus curiae poderá́ ser apresentado ao Tribunal, junto com seus anexos, através de qualquer dos meios estabelecidos no artigo 28.1 do presente regulamento, no idioma de trabalho do caso, e com o nome do autor ou autores e assinatura de todos eles. 2) Em caso de apresentação do escrito de amicus curiae por meios eletrônicos que não contenham a assinatura de quem o subscreve, ou no caso de escritos cujos anexos não os acompanhem, os originais e a documentação respectiva deverão ser recebidas no Tribunal num prazo de sete dias contado a partir dessa apresentação. Se o escrito for apresentado fora desse prazo ou sem a documentação indicada, será́ arquivado sem mais tramitação. 3) Nos casos contenciosos, um escrito em caráter de amicus curiae poderá ser apresentado em qualquer momento do processo, porém no mais tardar até os 15 dias posteriores à celebração da audiência pública. Nos casos em que não se realize audiência pública, deverá ser remetido dentro dos 15 dias posteriores à resolução correspondente na qual se outorga prazo para o envio de alegações finais. Após consulta à presidência, o escrito de amicus curiae, junto com seus anexos, será́ posto imediatamente em conhecimento das partes para sua informação. 4) Nos procedimentos de supervisão de cumprimento de sentenças e de medidas provisórias, poderão apresentar-se escritos de amicus curiae.
[9]Sobre o desempenho da função de amicus curiae pela Defensoria Pública no acesso à Justiça nacional, cf. o excelente estudo de Franklyn Roger, publicado aqui na ConJur: http://www.conjur.com.br/2015-ago-11/tribuna-defensoria-defensoria-publica-hoje-papel-amiga-ordenamento-juridico.
[10]Um estudo sobre o Caso Fermín Ramírez vs. Guatemala pode ser encontrado na já citada obra Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos.
[11]Cf., a propósito, BARROSO, Luís Roberto. Vinculação de Estado-membro pelo Direito Internacional. Reflexões acerca do cumprimento de recomendações oriundas da Comissão Internacional de Direitos Humanos da OEA. Em (org.) FILHO, Alceu José Cicco; VELLOSO, Ana Flávia; TEIXEIRA ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães. Direito Internacional na Constituição: Estudos em homenagem a Francisco Rezek. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 428 e ss.

Autores

  • é defensor público federal, especialista em ciências criminais e professor do curso CEI. É autor do livro "Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro" (2015).

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