Opinião

Constituição é contra impeachment de Dilma por fato do mandato anterior

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24 de agosto de 2015, 10h05

A Folha de S.Paulo publicou no último sábado (22/8) um debate entre dois importantes juristas, um defendendo a tese de que atos praticados no primeiro mandato de Dilma Rousseff podem gerar impeachment e o outro dizendo que não.  Trata-se de interessante debate. Mas o que mais interessa é até onde podemos chegar com a interpretação. Onde está escrito x pode-se ler y? Será que interpretar a lei é como escolher uma das margens do rio e lá acampar? Trata-se de uma questão ideológica? Ou meramente subjetiva? Ou existe algo mais no meio do caminho até chegarmos ao final da trilha hermenêutica?

Claro que não pode ser assim. Sendo prosaico: hermenêutica vem de Hermes, que era um semideus. Na mitologia, não havia controle sobre o que Hermes dizia acerca do que os deuses diziam. Por isso ficou tão poderoso. Na verdade, Hermes já nasceu passando a perna em seu irmão. Depois enganou Zeus. Porém, na modernidade, a hermenêutica do século XVII já veio com outro viés. A modernidade começava a mostrar a que veio. Schleiermacher foi o primeiro, tempos depois, a se preocupar com os mal entendidos dos textos. Assim avançamos. Hoje parece não haver dúvida de que há limites interpretativos. Ou seja, a interpretação não é nem uma revelação de essência e nem um livre atribuir de sentidos.

Por isso, quando o texto não diz o que queremos, não podemos lhe dar o sentido que queremos. Ao contrário: se queremos dizer algo sobre um texto, diz Gadamer, deixemos, primeiro, que ele nos diga alguma coisa.

Este o caso em debate. Diz o articulista defensor da possibilidade de impeachment por atos do primeiro mandato que a lei de 1950 nada fala disso. Claro. E nem poderia. Não havia reeleição. Mas o fato de a lei silenciar não dá o direito ao intérprete de ali colocar algo nem pensado ou imaginado. E mesmo que falasse, teríamos que resolver isso à luz de uma interpretação conforme a Constituição de 1988 e não aquela de 1946. A interpretação tem de ser histórica e não historicista.

O que é um mandato? A Constituição dá várias pistas. Por atos de seu mandato, o mandatário presidencial não pode ser responsabilizado enquanto este – o mandato – persistir (artigo 86,parágrafo 4º). Ao que li na Constituição, o mandato será de quatro anos. Se ele pode ser renovado, continua sendo de… Quatro anos. Não é de oito anos. Consequentemente, de onde se pode tirar que os atos do primeiro mandato transcendem e alcançam o segundo?

As regras de interpretação – sobre as quais não existe uma taxonomia – apontam para algumas questões básicas: quando se trata de Direito Penal, não pode haver analogia in malam partem. E quando está em jogo a coisa mais sagrada da democracia – que é a vontade do povo — também não se podem fazer pan-hermeneutismos, a partir de analogias e/ou interpretações extensivas. Parece-me que qualquer interpretação sempre deverá ser in dubio pro populo. In dubio pro vontade popular. Foi o povo que conferiu um novo mandato. Um mandato termina. Outro começa. Há posse. Não há um dia de vacância. Autoridades presentes. O mandatário eleito promete cumprir a Constituição. Fosse uma mera continuidade, porque fazer toda a churumela cerimonial, com gastos desnecessários? Parece-me elementar: uma coisa é o primeiro mandato; outra é o segundo. A Constituição não pode ser lida contra ela mesma. Se a opção foi pelo Presidencialismo – gostemos ou não – essa opção acarreta compromissos e sérios ônus políticos. Não dá para pensar em tirar o mandatário porque “está indo mal”.

A preservação da vontade popular – para o bem e para o mal — é a pedra de toque que deve servir para dar sentido a eventuais vaguezas ou ambiguidades decorrentes de “gaps de sentido”, como, por exemplo, a discussão acerca da palavra “mandato” ou “estar no exercício” ou, ainda “se o segundo mandato é ou não uma continuidade do primeiro”. Como ficaria, por exemplo, se houvesse um direito de reeleição sem limite de número de mandatos? No quarto mandato poderia haver impeachment de problemas ocorridos no primeiro? E a vontade da malta nesse período todo de nada vale? O skeptrom da interpretação está no artigo da CF que diz “todo poder emana do povo”. Por isso, temos de ir ao máximo para respeitar essa manifestação. Nem que isso seja contra o próprio povo, que, por vezes, vota mal. E terá de aprender a votar melhor. Assim de faz a democracia e não com recurso aos tribunais.

Penso que, quando se discute a possibilidade de impeachment da figura de um(a) Presidente de um país com mais de 200 milhões de pessoas, não se pode nem pensar em lançar mão de conceitos de Direito Administrativo como “continuidade administrativa” ou conceitos dicionarizados acerca dos sentidos das palavras. Deveria ser o contrário, como tenho repetido: devemos partir da Constituição, e não do direito que está abaixo desta. Por isso que o locus de sentido está no Estado Democrático, cujo cerne é a vontade do povo nas urnas. Claro que o respeito a alguns limites semânticos também são importantes, com o  sentido da palavra “mandato”. O artigo 77 da CF não distingue se o mandato é novo ou decorrente de reeleição. O artigo 78 não distingue “posse nova” de “posse decorrente de reeleição”. E o artigo 82 fala apenas que o mandato será de 4 anos. Simples assim. O sentido das palavras sempre ajuda, pois não?

Em resumo: façamos uma interpretação conforme a Constituição e não a interpretação da Constituição conforme lei ordinária.

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