Embargos Culturais

Livro aborda as ambiguidades de Antonio Rebouças, o fiador dos brasileiros

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

23 de agosto de 2015, 8h01

Spacca
“O fiador dos brasileiros” é o título de belíssimo livro da historiadora Keila Grinberg, que trata de Antonio Pereira Rebouças (1798-1880), advogado (ainda que não formado em direito), cujo nome merece lugar de destaque em um imaginário panteão de nossos juristas[1], ainda que carregado de muitas ambiguidades, exploradas e reveladas nesse livro muito bem pesquisado.

O cerne do livro, na minha compreensão, radica na premissa de que a escravidão e um código civil não poderiam coexistir. Nesse sentido, Keila Grinberg solucionou um enigma da história do direito privado brasileiro: a demora no código não fora exclusiva por conta e risco de uma fogueira das vaidades, que envolveu Teixeira de Freitas, Nabuco de Araújo, José de Alencar, Clóvis Beviláqua, Felício dos Santos, o Conselheiro Lafayette, e tantos outros; é resultado também do problema da escravidão, além de outras causas que apontou, a exemplo da fórmula do padroado, que engessou as relações entre Estado e Igreja.

Mulato, e vítima de recorrente preconceito de uma sociedade arraigada na escravidão, Rebouças fez nome inicialmente na guerra da independência da Bahia, bem como na administração do Sergipe. Mais tarde, destacou-se na corte, como político (foi deputado) e advogado. Foi também advogado do Conselho de Estado. É um personagem memorável, ainda que posteriormente relegado ao esquecimento.

É muito menos conhecido de que seu filho, André Rebouças, engenheiro e abolicionista. Antonio Rebouças defendia a igualdade civil, e não necessariamente uma fórmula de abolição que se preocupasse com a condição do escravo enquanto tal. Porém, não deixa de ser fascinante, e suas ambiguidades revelam um pensamento também radical e inovador.  

Tendo como fio condutor a trajetória biográfica de Rebouças, Keila Grinberg recriou vários aspectos do ambiente jurídico brasileiro no século XIX, com especial atenção nas chamadas ações de liberdade, um assunto amiúde negligenciado na historiografia jurídica brasileira, pelo menos no contexto da literatura canônica utilizada nos cursos de direito. Há hoje uma predileção por manuais de síntese, que vão das Leis de Manu à Revolução Francesa, em detrimento de assuntos nossos, e que exigem atenção e esmero. No livro de Keila Grinberg encontra-se uma imensa pesquisa, em fontes primárias, colhidas no Arquivo Nacional, e analisadas com os olhos argutos de historiadora, que muito compreende as sutilezas da argumentação jurídica.

Keila Grinberg reproduziu inventário da biblioteca de Antonio Rebouças (feito originalmente por Carolina Pinto Rebouças); pode-se perceber a influência francesa em nosso direito (tão combatida por Tobias Barreto, nosso germanófilo da primeira leva). Rebouças contava em suas estantes com traduções francesas de vários autores (Maquiavel, Adam Smith e Vico, por exemplo), a par de clássicos franceses como Pothier, J. B. Say, Corneille, Chateaubriand, Voltaire, Montaigne e Dumont. Rebouças possuía muitas obras de Lobão, o praxista português por excelência, bússola dos militantes do foro novecentista. A lista desses livros nos exemplifica uma biblioteca de advogado militante, com vários tomos de cultura geral: um arsenal.

De um ponto de vista da história do direito o livro contém méritos insuperáveis ao avaliar a construção de uma agenda de liberdades civis, que se percebe absolutamente dissociada do contexto histórico escravocrata. A atuação de Rebouças nas ações de liberdade (entre 1847 e 1867), quando advogou tanto para escravos, como para senhores, sugere a contradição no biografado. Keila Grinberg, no entanto, esmiuçou essas atuações, revelando um personagem enigmático, centrado em uma convicção de liberdade que era matizada pela formalidade.

Para Rebouças, observou a autora, “a luta pela posse e garantia dos direitos civis deveria ser feita por intermédio da militância individual, ou, no máximo, por um conjunto de indivíduos, mas nunca por uma comunidade que se definisse em bases étnicas e, conjuntamente, reivindicasse seus direitos. Origem étnica, para o bem ou para o mal, não deveria diferenciar ninguém”[2]. Rebouças chegou a defender descendentes de um casal de proprietários de escravos, contestando a liberdade de um cativo, que se baseava em carta de alforria gravada com cláusula de condição[3].

Segundo a autora aqui estudada, “analisando as intervenções de Antonio Pereira Rebouças nestas ações de liberdade, pode-se perceber que, à parte os processos nos quais ele tentava obstruir o prosseguimento, o que era prática comum, as discussões versaram sobre três assuntos: a legitimidade do documento eclesiástico para comprovação da demanda, as possibilidade de doações de bens e as condições de posse de liberdade”[4]. Tem-se uma pista relativa aos temas e argumentos então utilizados, nas discussões relativas aos problemas da escravidão.

A concepção de liberdade, e seus atributos de propriedade e de posse, é insumo conceitual para mapeamento da fragmentação desses conceitos no direito brasileiro, atributo da herança romana, na qual essa odiosa instituição – escravidão– era lugar comum.

Afeiçoei-me a Rebouças, admirando sua luta para afirmação em uma sociedade que lhe era absolutamente hostil, ainda que ambíguo em suas proposições e agendas. Admiro especialmente o trabalho de Keila Grinberg, que nos proporciona nesse belo livro uma inteligente viagem por um Brasil distante no tempo, mas infelizmente tão próximo de nossas desigualdades e dilemas.

 


[1] GRINBERG, Keila, O fiador dos brasileiros- cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

[2] GRINBERG, Keila, cit., p. 310.

[3] Cf. GRINBERG, Keila, cit., p. 203.

[4] GRINBERG, Keila, cit., pp. 203-204. 

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