Opinião

Exercício da advocacia e a nova regulação europeia

Autor

  • Heloisa Estellita

    é professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico e da Empresa na mesma instituição.

21 de agosto de 2015, 10h32

Em 20 de maio de 2015, o Parlamento Europeu aprovou a 4ª Diretiva relativa à prevenção da lavagem de capitais (Diretiva UE 2015/849). Os Estados-Membros têm até o dia 26 de junho de 2017 para a implementação das medidas.

A Diretiva reforça todos os âmbitos das medidas preventivas antilavagem: a inclusão de novos obrigados como os consultores tributários, a inclusão expressa do crime tributário como antecedente da lavagem, exigência de identificação e registro dos beneficiários finais de sociedade, trusts, fundações e estruturas análogas[1], medidas especiais com relação a pessoas politicamente expostas e pessoas a elas relacionadas, dentre outras. O Anexo III chega a oferecer uma lista não exaustiva de fatores e tipos de risco elevado da qual constam, por exemplo, pessoas coletivas ou centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica, que sejam estruturas de detenção de ativos pessoais, sociedades com acionistas fiduciários ou ações ao portador, private banking, países identificados por fontes idôneas como estando caracterizados por níveis consideráveis de corrupção ou outra atividade criminosa.

Sob o ponto de vista do exercício da advocacia e seus pontos de contato com o tema da lavagem, a Diretiva amplia ainda mais o âmbito dos prestadores de serviços jurídicos sujeitos às medidas de prevenção e acolhe algumas regras que já tinham sido implementadas na regulação doméstica de alguns países da UE.[2]

Ela impõe aos membros de profissões jurídicas independentes, quando participarem em operações financeiras ou societárias, mas, especialmente, quando prestarem serviços de consultoria fiscal (artigo 2º, 3, a), que se submetam às medidas de prevenção à lavagem: identificação do cliente, manutenção de registros e comunicação de operações suspeitas.

A isenção da obrigação de comunicação — mas não das demais medidas preventivas — está prevista para as informações que esses profissionais recebam antes, durante ou após um processo judicial, ou durante a apreciação da situação jurídica de um cliente, isenção esta já prevista nas diretivas anteriores e objeto da célebre decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos no caso Michaud x France. A consultoria jurídica continua a estar sujeita ao segredo profissional, salvo quando o profissional participar de atividades de lavagem, prestar consultoria para tal finalidade ou souber que o cliente solicita seus serviços justamente para tais efeitos.

Junto com a referência expressa aos consultores tributários, a Diretiva se refere expressamente aos crimes tributários como “atividade criminosa” para fim de lavagem de capitais. Como no âmbito da UE a definição dessa modalidade de crime tem de atender às particularidades locais, já que a competência para definir crimes e cominar penas mantém-se com os Estados-Membros, a Diretiva aponta as infrações de natureza tributária que deverão ser consideradas “atividade criminosa”, cujo produto pode ser objeto de lavagem, ou, crimes fiscais relacionados a impostos diretos e indiretos que sejam puníveis com pena ou medida de segurança privativa de liberdade de duração máxima superior a um ano ou pena mínima superior a seis meses.

A inclusão expressa dos consultores tributários no rol das pessoas obrigadas, juntamente com a determinação de harmonização no sentido da inclusão do crime fiscal como antecedente da lavagem,[3] torna o ambiente de prestação de serviços jurídicos em “operações” extremamente delicado. Muitas vezes, o juízo acerca da suspeita de prática de um crime tributário é particularmente sofisticado e/ou sujeito ao acesso a informações sigilosas, às quais não têm acesso sequer os profissionais jurídicos. Some-se a isso que, no âmbito da UE, não se permite às pessoas obrigadas a conclusão da operação suspeita[4] — como se permite no Brasil, a meu ver de forma mais sábia e eficiente — para sua posterior análise e comunicação, o que exige do profissional, muitas vezes, grande rapidez na formação de um juízo acerca da suspeição da operação, o que pode levar a açodamento.

O artigo 34 prevê que os Estados-Membros podem estabelecer duas limitações ao dever de comunicação de operações suspeitas no que diz respeito aos consultores fiscais e membros de profissões jurídicas independentes: de um lado, esses profissionais estão isentos dessa obrigação sempre que as informações recebidas do cliente ou sobre o cliente o tenham sido no decurso de apreciação de sua situação jurídica ou na defesa desse cliente em processos judiciais ou a respeito de processos judiciais, abarcando, inclusive, aconselhamento sobre como instaurar ou evitar tais processos, e independentemente de a informação ter sido obtida antes, durante ou depois do processo; de outro, o direito local poderá designar um organismo de autorregulação da profissão como autoridade competente para receber as comunicações de operações suspeitas, em substituição à unidade de inteligência financeira nacional.[5]

Goste-se ou não, a Diretiva é mera continuidade de um caminho já iniciado (pelo menos) em 2003, quando o GAFI-FATF apontou os legal professionals como possíveis gate keepers e recomendou sua submissão às medidas de prevenção à lavagem quando atuassem na prestação de serviços em determinadas operações. A medida se refletiu na Terceira Diretiva Europeia, motivou a edição, pela American Bar Association, do Voluntary Good Practice Guidance for Lawyers to Detect and Combat Money Laundering and Terrorist Financing (2010), e, mais recentemente, a edição do A lawyer’s guide to detecting and preventing money laundering pela International Bar Association em conjunto com o Council of Bars and Law Societies of Europe (novembro de 2014).

Como afirmei aqui na ConJur em outra oportunidade, na honrosa companhia de Luiz Armando Badin, Pierpaolo Cruz Bottini e Celso Vilardi e antes mesmo da aprovação desta 4a Diretiva, uma regulamentação nacional seria muito-vinda para proteger os advogados, especialmente os de operações.[6] Naquela época, já nos assustava o crescimento do número de profissionais investigados/acusados por lavagem de capitais ao prestarem serviços jurídicos,[7] as denúncias e fatos recentemente ocorridos no âmbito de famosas “operações” federais deflagradas desde 2014 reforçam a nossa preocupação e evidenciam a atualidade da nova diretiva europeia.


1 De acordo com a nova Diretiva, os administradores fiduciários (trustees) de fundos fiduciários deverão obter, conservar e fornecer informações sobre os beneficiários efetivos às entidades obrigadas que tomem medidas de diligência quanto à clientela, a comunicar essas informações a um registo central ou a uma base de dados central e a declarar o seu estatuto às entidades obrigadas. As pessoas coletivas tais como fundações e os centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica similares a fundos fiduciários (trusts) estarão sujeitos a requisitos equivalentes.

2 Para maiores detalhes, cf.: ESTELLITA, Heloisa (org.). Exercício da advocacia e lavagem de capitais: advogados como sujeitos obrigados e como acusados pela prática de lavagem de capitais. FGV: São Paulo, 2015 (no prelo).

3 Alguns países europeus ainda não incluíram o crime tributário como antecedente da lavagem, como ocorre na Alemanha, por exemplo (cf. § 261 StGB). No Brasil, a reforma feita em 2012 na Lei n. 9.613/98 aboliu o rol taxativo de crimes antecedentes, com o que valores oriundos de quaisquer infrações penais podem ser objeto do crime previsto em seu artigo 1o.

4 A nova Diretiva relativiza parcialmente, pela primeira vez, essa regra ao dispor que caso a abstenção da operação seja impossível ou suscetível de comprometer os esforços para atuar contra os beneficiários, as pessoas obrigadas podem executar a operação e informar imediatamente a autoridade competente (art. 35o, 2).

5 É o que já tinha sido feito em Portugal (cf. ESTELLITA, Heloisa (org.). Exercício da advocacia e lavagem de capitais: advogados como sujeitos obrigados e como acusados pela prática de lavagem de capitais. FGV: São Paulo, 2015 (no prelo)).

6 http://www.conjur.com.br/2014-jul-03/advocacia-lavagem-preciso-desfazer-alguns-mal-entendidos

7 Cf. estudo de casos concretos em ESTELLITA, Heloisa (org.). Exercício da advocacia e lavagem de capitais: advogados como sujeitos obrigados e como acusados pela prática de lavagem de capitais. FGV: São Paulo, 2015 (no prelo).

Autores

  • Brave

    é advogada, professora da FGV Direito SP, doutora em Direito Penal pela USP e pós-doutoranda nas Faculdades de Direito da Universidade Ludwig-Maximilians, de Munique, e de Augsburg, com financiamento da Fundação Alexander von Humboldt e Capes.

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