Opinião

Princípio da supremacia do interesse público deve ser reformulado?

Autor

  • Flávio Henrique Unes Pereira

    é doutor e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Minas Gerais diretor titular do Departamento Jurídico da Fiesp presidente do Instituto de Direito Administrativo do Distrito Federal professor do mestrado profissional do IDP (São Paulo) e sócio do Silveira e Unes Advogados.

21 de agosto de 2015, 6h25

Não é de hoje que a Administração Pública se vale do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado para se defender. Em informações prestadas pela autoridade coatora nos mandados de segurança, nos recursos judiciais dos entes federados, em pareceres da advocacia pública.

Sabemos, também, que diversos dispositivos legais estabelecem o “interesse público” como condição para rescisão ou alteração de contratos,[1] criação de empresas estatais (artigo 173, caput, CR/88), entre outros. Entretanto, o déficit de motivação de decisões administrativas e judiciais, ao interpretarem o sentido de tais termos, revela a insuficiência do conceito abstrato de interesse público.

O “público” seria clarividente para prescindir de interlocução efetiva da Administração com os atores interessados, isto é, o “público” dispensaria o relato fiel das pretensões aduzidas e a consideração de todos os argumentos suscitados pelos envolvidos ou interessados. Seria algo da ordem das pré-compreensões, “todos já sabem do que estamos falando”.

Ocorre que a delimitação conceitual da expressão “interesse público” ou “interesse geral”, embora útil, não consegue resolver a questão, dada a própria complexidade do tema e a incapacidade da natureza abstrata dos termos diante da realidade. O perigo, em síntese, é transparecer, por meio do conceito, simplicidade teórica que não se ajusta à realidade.

Indispensável, a nosso ver, é saber se o ordenamento jurídico impõe ao particular o ônus de suportar determinada ação administrativa em determinado contexto, a partir das particularidades de cada caso.

A interpretação do ordenamento jurídico demandará, nesse caminho, a consideração das pretensões argumentativas dos envolvidos. Não há como eliminar a interlocução entre a Administração e o cidadão, especialmente quando em pauta ação limitativa da liberdade ou propriedade privada.

Assim, consideramos relevante a reformulação do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado para o princípio do interesse público, na medida em que este é resultado de um processo interpretativo e essencialmente dialógico, e não uma noção apriorística entre dois “interesses”, o público e o privado.[2]

A análise da jurisprudência pátria revela a complexidade do tema. Em alguns casos, a noção de supremacia do interesse público é utilizada de modo irrefletido, pois não há fundamentação sobre o sentido de interesse público no caso concreto, valendo-se o julgado da máxima ou da fórmula da supremacia como se esta prescindisse de contextualização. Outras vezes, constata-se um cuidado maior em sua aplicação, a revelar, ao menos, necessidade de se repensar a denominação do mencionado princípio.

Ilustrativo o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 22.665-3/DF (STF), em que a empresa Cabotec requereu a uma das delegacias do Ministério de Comunicação autorização para operar serviço de distribuição de sinais de TV a cabo. Contra o indeferimento do pedido foi impetrado mandado de segurança, sob a alegação de que teriam sido atendidas as condições previstas em ato normativo editado pela Administração Pública. Ocorre que a autoridade coatora sustentou que a decisão administrativa sobre a questão estava inserida no âmbito de sua competência discricionária.

O ministro Marco Aurélio, relator originário do referido recurso ordinário, deferiu o pedido, entendendo que a Administração autolimitou-se por meio de ato normativo de que constavam os requisitos para a operacionalização de sinais de TV a cabo, razão pela qual não haveria ato discricionário, mas, sim, ato vinculado. O ministro ressaltou, ainda, que a posição clássica da doutrina sobre a discricionariedade na autorização não se aplicaria no caso, pois a Administração estabeleceu exigências que, uma vez atendidas, conferiram o direito à autorização, esvaziando, consequentemente, a competência discricionária.

O ministro Nelson Jobim pediu vista e apresentou voto divergente, fundado no princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado.

Esse precedente revela o perigo que as pré-compreensões sobre a “supremacia do interesse público” possuem de comprometer significativamente o devido processo legal, na sua perspectiva substancial.

O risco está, portanto, na interpretação solitária — descontextualizada — que o enunciado pode induzir, haja vista que o termo “supremacia” e a noção de “supremacia do interesse público sobre o interesse privado” levam à simplificação de seus sentidos. Quer dizer, nem sempre o interesse manifestado pelo particular pode ser tido, a priori, como oposto ao interesse público.

O interesse público, portanto, construído na esfera pública, requer a consideração de todas as alegações, privadas ou estatais, em jogo para, ao final, revelar seu conteúdo, segundo disponha o ordenamento jurídico vigente. Em outras palavras, é a simplificação sobre a interpretação do “interesse público” que precisa ser superada no contexto do Estado Democrático de Direito[3].

Por fim, é imperioso esclarecer que a proposição de mudança terminológica — de supremacia de interesse público para apenas interesse público — não corresponde à postura ingênua de substituição de uma fórmula por outra, como se, abstratamente ou aprioristicamente, a complexidade em torno do sentido do interesse público fosse, definitivamente, solucionada. A provocação, na verdade, apenas obriga ao desvelamento da fórmula e ao cotejo do ato com a realidade fática a partir da discursividade do devido processo, sem presunção em favor de qualquer interesse, seja o estatal ou o individual.


[1] Cf. artigos 49; 58, I; 78, XII, todos da Lei n. 8.666, de 21.06.1993.

[2]A propósito, o art. 2º da Lei n. 9.784/99, que dispõe sobre o processo administrativo no âmbito federal, indica o princípio do interesse público, a afastar o risco de se interpretar a aparente oposição do interesse público com o privado de modo a confundir público com coletivo e privado com individual ou egoístico.

[3] Jacques Chevallier, ao discorrer sobre o “Estado desmitificado”, afirma que o mito do “interesse geral”, sob o qual o Estado construiu sua legitimidade, perde força, porquanto “[…] não aparece mais como sendo monopólio do Estado, tal como dele não é o signo distintivo”. E conclui: “O interesse geral não é mais considerado como o produto de uma geração espontânea: à base de sua formação, encontram-se necessariamente os interesses particulares dos indivíduos e dos grupos; em decorrência, interesse geral e interesses particulares não aparecem mais como sendo de natureza radicalmente diferente e sua oposição tende a desaparecer.” (CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-moderno. Trad. Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 82-83.)

Autores

  • Brave

    é sócio do Silveira e Unes Advogados, doutor em Direito Administrativo. coordenador e professor do curso de pós-graduação em Direito Administrativo do IDP. Presidente do Instituto de Direito Administrativo do DF. Ex-assessor de Ministros do STJ, TSE e STF.

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