Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo chileno (Parte 26)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

19 de agosto de 2015, 8h05

Spacca
1. O Direito na América do Sul e sua vanguarda no século XX
A maior parte dos grandes autores europeus, especialmente os alemães, chegou à América Latina no século XX em larga medida por traduções para o idioma castelhano. Esse mérito deve ser compartilhado com dois países: Espanha e Argentina.

São clássicas as versões espanholas do Tratado de Direito Civil de Ludwig Enneccerus, Theodor Kipp e Martin Wolff, elaboradas por Blas Pérez González e José Alguer, que começaram a ser publicadas nos anos 1930, pela editora Bosch, de Barcelona. É raro um livro brasileiro de Direito Civil da segunda metade do século XX que não cite trechos dessa edição da Bosch, ao exemplo de Caio Mario da Silva Pereira, Silvio Rodrigues e Orlando Gomes. Com as exceções indicadas no artigo A influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX, muitos dos civilistas brasileiros travaram conhecimento com a obra de Karl Larenz ou de Justus W. Hedemann após a leitura das traduções publicadas pela editora Revista de Derecho Privado, de Madri, na coleção Grandes Tratados Generales de Derecho Privado y Público.

No entanto, a Argentina não pode ser ignorada em seu papel de intermediadora da recepção latino-americana do Direito produzido nos grandes centros europeus, principalmente Alemanha, França e Itália. A polêmica discussão sobre a actio e o problema da autonomia do Direito Processual, que envolveu Windscheid e Muther, foi vertida para o castelhano pelas Ediciones Jurídicas Europa América, de Buenos Aires, em 1974. Adolfo Posada, em 1946, traduziu diretamente do alemão para o espanhol o livro Da Vocação de Nosso Tempo para a Legislação e a Ciência do Direito, de autoria de Savigny, do que resultou uma edição da Atalaya, de Buenos Aires. Podem ser citados ainda livros de Kirschmann, Kantorowicz, Ernst Zitelmann e Hans Kelsen, em sua maioria traduzidos na década de 1940 por editoras argentinas.

Para não se ficar apenas com os alemães, convém ainda referir as traduções argentinas de livros essenciais de Robert Joseph Pothier, Georges Ripert, Henri Mazeud, Henri Capitant, dentre os franceses, e de Francesco Carnelutti, Piero Calamandrei, Giuseppe Chiovenda e Giorgio del Vecchio, quanto aos italianos.

A simples reprodução de obras europeias traduzidas para o vernáculo de um país latino-americano no século passado é um dado muito singelo para dele extrair conclusões tão amplas como a superioridade intelectual ou a qualidade do Direito ali produzido. De fato, isso não seria o bastante, mas se for contextualizado com outros elementos será um dado importante para comprovar a hipótese do desenvolvimento excepcional do Direito argentino. Encontrar um tal número de traduções é significativo de haver uma elite intelectual culta e que teve condições de as produzir e, acima de tudo, de as consumir em uma escala economicamente viável. Se for comparada essa circunstância com a brasileira, as conclusões serão ainda mais firmes: em igual período, no Brasil, nunca houve semelhantes produção e consumo de livros jurídicos estrangeiros[1].

Outro ponto que merece destaque: as traduções argentinas centraram-se, como se pode notar, em obras de ponta na cultura jurídica de tradição romano-germânica. Uma gama significativamente maior de leitores conseguiu participar, ainda que em segunda mão, de debates atualizados sobre os temas mais importantes do Direito do Novecentos. E isso não é pouco, considerando-se o caráter capitalista periférico da América Latina. Por fim, os juristas argentinos do século XX não apenas recepcionaram a produção jurídica europeia, mas tomaram parte em grandes debates teóricos do período. Carlos Cossio, Guillermo Antonio Borda, Jorge Joaquín Llambías e Sebastián Soler foram nomes que ultrapassaram as fronteiras argentinas e influíram no Direito em uma escala internacional. De uma geração mais nova, pode-se mencionar Carlos Santiago Nino. Precocemente falecido em 1993, aos 50 anos, foi professor visitante em Yale e deixou sua marca na Teoria do Direito e no Direito Constitucional do último quartel do século passado.

Essa pujança não é mais encontrável nos dias de hoje. Se Eugenio Raúl Zaffaroni e Eugenio Bulygin podem ser mencionados como dois juristas argentinos com repercussão internacional, é evidente que não mais existem as condições históricas, econômicas e sociais que colocaram a República Argentina em uma posição de incomparável distância de outras nações latino-americanas no âmbito jurídico. O Brasil, que nem de longe obteve o prestígio e o reconhecimento que os argentinos alcançaram, não mais pode ser qualificado como um espaço acadêmico, legislativo ou jurisprudencial mais atrasado que o argentino, a despeito de inúmeros problemas que ainda persistem (ou mesmo que se agravaram) em nossas universidades. Quanto a estes últimos, é possível dizer que eles são comuns ao sistema universitário da América Latina.

2. Novos espaços do Direito na América do Sul  
Se a liderança argentina não é mais evidente, quais são os países da América do Sul interessantes para se apresentar um estudo sobre sua experiência no ensino jurídico?

Tem havido grande interesse pelo chamado novo constitucionalismo latino-americano, que alcançou maior desenvolvimento no Equador e na Bolívia. Alguns estudiosos europeus têm se ocupado desse movimento, mas, infelizmente, em certas abordagens percebe-se mais o interesse do protótipo do “ex-colonizador culpado” do que propriamente a intenção de se debater a sério os fundamentos desse movimento e quais suas condições de aplicabilidade. 

Em uma série de colunas sobre como se formam os juristas, alguns critérios devem ser considerados para a escolha dos países com maior relevância para o exame comparativo de suas tradições, experiências, estruturas educacionais e de carreira docente. Assim considerados, far-se-á o estudo dos modelos chileno e colombiano.

No ranking das melhores faculdades de Direito do mundo, elaborado pela consultoria QS –Quacquarelli Symonds, em 2015, a Pontifícia Universidade Católica do Chile ocupa a 37a posição dentre as 200 melhores e é a primeira da América Latina. No rol das 50 primeiras faculdades, só há duas latino-americanas, a PUC do Chile e a Universidade Nacional do México (38ª posição)[2].

Restringindo-se a pesquisa à América do Sul, a colocação é a seguinte nas faculdades de Direito: 1) PUC do Chile; 2) Universidade de São Paulo; 3) PUC de Valparaíso (Chile); 3) Universidade do Chile; 4) Universidade dos Andes (Chile); 5) Universidade dos Andes (Colômbia); 6) Universidade Diego Portales (Chile)[3]. Com todas as ressalvas que sempre se faz a tais rankings nesta série de colunas, não deixa de ser significativo que das seis melhores faculdades de Direito do Cone Sul haja quatro chilenas, uma colombiana e uma brasileira.

É, portanto, a partir da experiência chilena que terá início a viagem pela América do Sul.

3. Chile: “tumba dos livres ou asilo contra a opressão”
Na última estrofe do hino nacional chileno, estão os versos: “Doce pátria, recebe os votos com que o Chile em teus altares jurou: que ou será a tumba dos livres ou o asilo contra a opressão”.

Nos anos 1960, quando caiu sobre o firmamento brasileiro a longa noite da ditadura, por algum tempo o Chile foi o “asilo contra a opressão” para centenas de cidadãos do Brasil, que encontraram refúgio naquele país contra as perseguições do regime instaurado em 1964. Dentre vários dos nomes de exilados encontram-se Marcio Moreira Alves, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Darcy Ribeiro e Plínio de Arruda Sampaio. Com a derrubada do presidente Salvador Allende, em 1974, graças a um sangrento golpe militar, os versos do hino voltaram a ser lembrados: sua terra converteu-se em “tumba dos livres”.

Os laços do Brasil e do Chile são antigos, mas, em relação ao Direito, infelizmente, eles se mostram frágeis. 

O Direito produzido no Chile é muito pouco conhecido no Brasil, o que é algo incompatível com seu desenvolvimento contemporâneo e com o elevado nível de qualidade de suas faculdades de Direito.

4. Um panorama dos juristas chilenos
Considerando-se o objetivo desta série sobre o ensino jurídico no Chile, é importante apresentar ao leitor brasileiro algumas informações relevantes a respeito de seus juristas mais notáveis, pondo-se ênfase em nomes contemporâneos.

No entanto, seria injusto não principiar esse inventário com o nome de Andrés de Jesús Maria y José Bello López (1781-1865), ou simplesmente Andrés Bello, nascido na Capitania-Geral da Venezuela e que passou à História como redator do Código Civil chileno e fundador da Universidade do Chile. Sua história pessoal confunde-se com a formação da América do Sul pós-independência e, mais particularmente, com a do Chile, que lhe outorgou a nacionalidade por meio de uma decisão unânime de seu Parlamento. Andrés Bello, que foi tutor de Simon Bolívar, sempre defendeu a ideia de uma codificação geral para os países egressos da colonização espanhola, parte dos quais, pelo sonho de Bolívar, constituiriam a Grã-Colômbia[4]. Com o fracasso do projeto bolivariano e tendo-se Andrés Bello radicado no Chile, ele levou adiante a ideia de uma codificação para a nação que o acolhia. Influenciado pelo Código Civil francês, pela legislação espanhola e originalidade do pensamento de Bello, o Código chileno foi aprovado em 1855. O projeto Bello rivalizou em importância e em impacto regional com o Esboço de Teixeira de Freitas, na medida em que foi adotado posteriormente em El Salvador, Equador, Venezuela, Nicarágua, Colômbia e Honduras, além ter sido fonte para a elaboração das codificações de México, Guatemala, Costa Rica, Uruguai e Paraguai[5]. No Brasil, infelizmente, são poucos os trabalhos sobre Andrés Bello, ressalvando-se os estudos de Silvio Meira[6].

No século XX, o Chile conheceu a “era dos grandes civilistas”, indicando-se como o maior dentre eles Arturo Alessandri Rodriguez (1895-1970), professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Chile, da qual foi diretor entre 1924-1927 e 1933-1943. Membro de uma família política tradicional — seu pai foi presidente da República —, Alessandri escreveu obras de referência no Direito Civil, como um tratado sobre a compra e venda e um curso de Direito Civil. Até hoje seus escritos são editados, e Alessandri teve um papel fundamental no desenvolvimento do Direito Comparado no Chile na metade do século XX[7]. Homem dotado de vasta cultura humanística, Alessandri era um aficionado pelo canto lírico e veio falecer em condições muito inusitadas: teve um ataque cardíaco em meio a uma apresentação operística no Metropolitan Opera House, de Nova York. 

No Direito de Família, Manuel Somarriva (1905-1988), colega de Alessandri como professor catedrático na Faculdade de Direito da Universidade do Chile, é um expoente. Seu livro Manual de Direito de Família foi escrito nos anos 1940 e se constitui em um trabalho de grande pesquisa comparatística e histórica[8].

Importantes obras francesas foram vertidas ao espanhol pela Revista de Derecho y Jurisprudência, um periódico chileno criado em 1904, ao exemplo de artigos ou capítulos de livros de Demogue, Planiol, Josserand, Bonnecase, Lyon-Caen e outros doutrinadores famosos da primeira metade do século passado[9].

Em uma lista de nomes contemporâneos, não pode faltar Enrique Barros Bourie, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Chile. Em 1976, ele publicou pela Editorial Jurídica de Chile, de Santiago, a tradução espanhola do livro Analogía y “Naturaleza de la Cosa”: Hacia una Teoría de la Comprensión Jurídica, do original alemão escrito por Arthur Kaufmann (1923-2001), o respeitado professor da Universidade de Munique. Trata-se de uma tradução muito citada nos estudos de Teoria Geral e de Filosofia do Direito no Brasil. Barros Bourie foi assistente de Kaufmann no período de 1977-1978 e, ao voltar para o Chile, tornou-se um dos representantes da tradição germanística em seu país. Ele é autor de um alentado Tratado de Responsabilidade Civil (2006) e tem vasta produção em artigos sobre Direito Civil.

O Direito Romano é uma disciplina muito importante no Chile até hoje. Alejandro Guzmán Brito, professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso, é um romanista chileno muito respeitado. Seu orientador foi Álvaro d’Ors, catedrático da Universidade de Navarra e um perito internacionalmente reconhecido na matéria. Alejandro Guzmán é autor do Tratado de Direito Romano, publicado em Santiago, pela Editorial Jurídica de Chile (1996-1997).  

No Direito Constitucional, Humberto Nogueira Alcalá, professor catedrático de Direito Constitucional da Universidade Nacional Andrés Bello, pode ser citado como um expoente nessa área. De formação francófona, Humberto Nogueira doutorou-se na Universidade Católica de Louvana, a Nova, no Reino da Bélgica. Seus estudos ocupam-se de diversas áreas do constitucionalismo, especialmente a teoria dos direitos fundamentais e a estrutura do Estado.

***

Os juristas chilenos vivem uma interessante situação de conflito entre influências da tradição romano-germânica (especialmente espanhola, francesa e alemã) e a anglo-saxã, que veio a crescer fortemente desde os anos 1970. Apesar da prestigiosa posição nos rankings universitários, há alguns anos a sociedade e o governo são submetidos à contestação estudantil em face ao modelo de ensino majoritariamente privado no Chile. Sobre essas e outras questões, ocupar-se-á a próxima coluna.

Por aqui, fica apenas um comentário final: a doutrina jurídica chilena não foi contaminada pela grafomania hoje vicejante no Brasil, com uma produção assustadoramente alta de livros e artigos, mas nem sempre de qualidade. O respeito internacional pelo que se produz no Chile é crescente, e isso reflete uma postura contida e responsável da academia chilena, que é a “de saber muito sobre o tanto que sabe” e não a de “quase nada saber sobre o muito que se pensa conhecer”. Se os demais aspectos não fossem, por si mesmos, dignos de reflexão, essa atitude dos chilenos já seria fonte de um ótimo aprendizado.


[1]Outra hipótese que poderia ser desenvolvida para explicar essa quantidade de traduções está na imigração que a Argentina recebeu nos anos 1930-1940 de refugiados ou fugitivos da Guerra Civil Espanhola, da ascensão do Nazismo na Alemanha e da Segunda Guerra Mundial. Em todos esses grupos havia uma parcela não desprezível de intelectuais e, dentre esses, de conhecedores das línguas alemã, francesa e italiana que possuíam formação jurídica.
[2]Disponível em: http://www.topuniversities.com/university-rankings/university-subject-rankings/2014/law-legal-studies#sorting=rank+region=+country=+faculty=+stars=false+search=. Acesso em 23-7-2015.
[3]Disponível em http://www.topuniversities.com/university-rankings/university-subject-rankings/2014/law-legal-studies#sorting=rank+region=349+country=+faculty=+stars=false+search=. Acesso em 23-7-2015.
[4]MIROW, M. C. The power of codification in Latin America: Simon Bolivar and the Code Napoleon. Tulane Journal of International & Comparative Law, v. 8, p.83-116, Spring. 2000.p.100-101.
[5]MIROW, M. C. Borrowing Private Law in Latin America: Andrés Bello’s use of the Code Napoléon in drafting the Chilean Civil Code. Louisiana Law Review. v.61, n.2, p.291-329, Winter, 2001. p. 291-293.
[6]MEIRA, Silvio A.B. Andrés Bello e Teixeira de Freitas em face das codificações civis do Chile e do Brasil. Um paralelo. Coimbra S.ed. 1988.
[7]DOMÍNGUEZ ÁGUILA, Ramón. La influencia de la doctrina francesa en el Derecho Chileno. AA.VV. De la codificación a la descodificación: Code Civil (1804-2004). Código de Bello (1855-2005). Cuadernos de Análisis Jurídicos. Colección Derecho Privado. Santiago de Chile: Ediciones Universidad Diego Portales, s.d.. v.2. p.66-67.
[8]DOMÍNGUEZ ÁGUILA, Ramón. Op. cit. p.70-71.
[9]DOMÍNGUEZ ÁGUILA, Ramón. Op. cit. p.72-73.

Autores

  • Brave

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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