Espírito do tempo

"Estatuto da advocacia é um organismo vivo e precisa de atualização", diz Batochio

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4 de julho de 2021, 7h49

No Brasil contemporâneo, os direitos legais do cidadão, a quem a Constituição assegura a presunção de inocência, são espezinhados e pisoteados a mancheias, e, ao lutar por eles, o advogado é tratado como um estorvo, um obstáculo a ser removido da trajetória meramente formal de sentenças antecipadamente lavradas. Tanto mais visado será o profissional quanto mais combativo for.

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A reflexão é do criminalista José Roberto Batochio, sócio do José Roberto Batochio Advogados Associados. Ex-presidente do Conselho Federal da OAB e atual diretor e orador oficial do Instituto dos Advogados Brasileiros, Batochio foi um dos principais artificies do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), que completa 27 anos neste domingo (4/7).

O regramento que resguarda as prerrogativas do advogado e, consequentemente, do cidadão por ele representado, precisa ser atualizado. Como um organismo vivo, deve se adaptar para atender ao espírito do tempo. "Aquilo que não se alterou em milênios se transforma e se modifica em um século, apenas em décadas ou em anos", resume Batochio em entrevista à ConJur.

O criminalista é favorável, por exemplo, a implementação de cotas de gênero e raça nas eleições da OAB e acredita que o modelo "um advogado, um voto" no pleito nacional parece ser um passo natural.

Aos 77 anos, Batochio ainda se espanta com patranhas perpetradas por aqueles que deveriam ser fiscais da lei. "A mal chamada operação 'lava jato', além de conspirar contra o idioma, afrontou o Direito, aviltou o processo penal democrático e não legou mínimo sinal de um Brasil menos corrupto", resume.

Ele afirma que o malfadado consórcio de Curitiba não intimidou os corruptos. "As investigações foram descaradamente seletivas e parece que ainda o são, pois no atual governo federal pululam denúncias de malfeitos na administração pública, a exemplo de falcatruas ambientais e até na compra de vacinas para um povo que está morrendo em razão de patogenia que pode ser prevenida, o que, a nosso ver, é assunto para o Tribunal de Haia", diz.

Leia os principais trechos da entrevista:

ConJur — Como o Estatuto da Advocacia foi criado e instituído? Ele precisa ser atualizado e, em quais pontos, por exemplo?
José Roberto Batochio — O Estatuto é obra de muitas mãos. Estava em em gestação quando assumi a presidência nacional da OAB. No ano de 1993, fizemos os ajustes necessários e os acréscimos que sua atualização já estava a reclamar. Passamos então a uma intensa negociação política para lograr aprová-lo no Congresso que, à época e bem diversamente do que hoje sucede, era composto por muitos parlamentares de sólida formação jurídica — destaco Nelson Jobim na Câmara dos Deputados e o senador Iran Saraiva no Senado. Não fosse assim, não teríamos conseguido vencer a resistência dos conservadores "leigos", digamos assim, do Parlamento. Recordo Roberto Campos e Amaral Neto, entre outros, e dos lobbies econômico-financeiros que nos viam como corporativistas à cata de privilégios. Não conseguiam entender que a lei era muito mais da cidadania do que da advocacia.

Aprovado o projeto no Congresso e remetido à sanção, o então presidente da República Itamar Franco fez questão de nos ouvir sobre o tema e teve lucidez para compreender que, em verdade, era o cidadão e não o advogado que o representa em juízo, o destinatário final das prerrogativas asseguradas naquele texto. Sancionou-o sem vetos. A Associação de Magistrados Brasileiros reivindicava, com insistência, o veto de cerca de 13 dispositivos. Essa pretensão foi por ele rechaçada. Foi nesse contexto que a entidade dos juízes brasileiros achou por bem judicializar suas objeções à já então lei vigente nº 8.906, de 04/07/1994 (Estatuto da Advocacia e da OAB), por meio de ação direta de inconstitucionalidade no STF. Mas este é um outro capítulo da trajetória que tivemos de percorrer.

ConJur — E quanto à atualização?
Batochio — Se o Estatuto precisa ser atualizado? Penso que sim. Aliás, como os organismos vivos, as leis nascem e envelhecem porque a dinâmica social apresenta sempre novas facetas e relações que, antes insuspeitadas, compõem a nova realidade que fica a orbitar no vazio da anomia. Daí a necessidade da atualização normativa. E a velocidade dessas transformações sociais se mostra cada vez mais intensa e vertiginosa, conforme anotou Eric Hobsbawm no seu "A Era dos Extremos: O breve século 20". Diria que atualmente, mais do que nunca, se pode testemunhar que aquilo que não se alterou em milênios se transforma e se modifica em um século, apenas em décadas ou em anos… Parece necessário e natural.

Dentre algumas atualizações que se impõem à atual Lei da Advocacia ousaria mencionar, exemplificativamente, a positivação do instituto da investigação defensiva — já autorizada por provimento do CFOAB —, o regramento dos novos formatos da postulação em juízo introduzidos pela cibernética em cotejo com a diceologia da nossa profissão, regulamentação legal do controvertido tema da publicidade profissional, readequação da quarentena dos egressos de outras carreiras jurídicas para inscrição nos quadros da OAB, a restauração  — via definição das necessárias prerrogativas — da par conditio na jurisdição criminal, em que a legislação infraconstitucional superveniente à Carta Política situou a defesa técnica em patamar nitidamente inferior ao do órgão acusatório, as especificidades da advocacia na esfera da questionável delação premiada, além de outros. Por que não?

ConJur — Como o senhor vê a atuação da OAB e do STF nos anos em que vigorou a onda lavajatista?
Batochio — Ao influxo da avassaladora campanha moralista deflagrada pela autodenominada "República de Curitiba" — e não nos esqueçamos jamais de que todo autoritarismo ou tirania se alçam ao poder pela via do discurso do fundamentalismo moral, da reforma dos costumes e dos padrões axiológicos em suposto benefício da coletividade —  endeusada, amplificada e glorificada, sem cessar, por amplos setores da nossa imprensa, a sempre libertária OAB parece haver recuado um passo (ressalvadas dignas exceções) na resistência ao arbítrio, na luta pelas liberdades e garantias do cidadão, que marcou a sua histórica trajetória.

O Judiciário, bem, este majoritariamente referendou e prestigiou a ação da dita força-tarefa — e também aqui devem ser excetuadas lúcidas e exíguas minorias — cuja odiosa e execrável metodologia veio a ser desnudada pelas provas coletadas pelo próprio Estado na denominada operação spoofing, em que a PF investigava outros fatos. Refiro-me à "VazaJato", que desnudou a maior patranha de que se tem notícia, perpetrada contra o nosso sistema de justiça, contra a ordem constitucional, contra o devido processo legal, em suma, contra a civilização. Juiz orientando e estruturando a acusação de prática de delito versada em causa que ele mesmo vai julgar? Penso que mais não é necessário dizer… Aos de inclinação punitiva, "consequencialistas", que em nome de certo utilitarismo condescendem com a violação das franquias, cabe sempre lembrar a advertência do personagem de Robert O. Bolt, inspirado em Thomas More: "Ao diabo eu daria as garantias da lei, por minha própria segurança!" É que quando todas as garantias legais estiverem violadas ninguém mais, ninguém mesmo, seja bom ou mau, terá onde se refugiar…

ConJur — Como os advogados reagiram a isso?
Batochio — Uma minoria de advogados criminalistas sempre denunciou o que estava a ocorrer nas entranhas desse condenável construto lavajatista, dessa deplorável simulação de justiça, assim como também apontou a existência de interesses alienígenas de natureza hegemônica, geopolítica, subjacentes na hipérbole punitiva que provinha do Sul, mas simplesmente não éramos ouvidos… Saldo? Dizimou-se a indústria da construção civil brasileira, até então líder global com amplo domínio comercial e tecnológico em quase todos os continentes, truncou-se a ascensão da Petrobras, e entregou-se a exploração do pré-sal a quem o cobiçava, drenaram-se bilhões de dólares pela ação da Justiça norte-americana e, de quebra, quase 15 milhões de desempregados no país. Esse o saldo.

ConJur — Pós-"lava jato": o Brasil se tornou um país menos corrupto ou mais autoritário?
Batochio — A mal chamada operação "lava jato", além de conspirar contra o idioma, afrontou o Direito, aviltou o processo penal democrático e não legou mínimo sinal de um Brasil menos corrupto. Tal resultado altamente negativo se deve ao fato de que não foi ela planejada nem conduzida para combater a corrupção coisa alguma, mas para servir, usando o sedutor argumento da guerra à corrupção, a interesses econômicos externos e políticos internos, interferindo no processo sucessório da Presidência da República ao alijar, de forma criminosa, o candidato mais bem cotado na última corrida eleitoral. Não intimidou os corruptos, pois eles sabem quem os deixa em paz. As investigações foram descaradamente seletivas e parece que ainda o são, pois no atual governo federal pululam denúncias de malfeitos na administração pública, a exemplo de falcatruas ambientais e até na compra de vacinas para um povo que está morrendo em razão de patogenia que pode ser prevenida, o que, a nosso ver, é assunto para o Tribunal de Haia.

Um prognóstico e um fundado receio: como hoje o Brasil ascendeu ao posto de maior produtor e exportador de grãos e de proteína animal do planeta, o que se espera é que hegemonias globais e conspiradores internos não inventem uma "lava agro" para quebrar o setor produtivo do agronegócio brasileiro e retomar o imperial domínio e o absoluto controle. A ver…

ConJur — Nos últimos anos, advogados, sobretudo os que atuaram em casos midiáticos como os da hoje finada "lava jato", foram alvo de uma série de violações de suas prerrogativas. Os abusos vão desde telefones de escritórios grampeados até contas bloqueadas, bens penhorados e mandados de busca e apreensão. O direito de defesa está ameaçado no Brasil? Como melhorar essa situação?
Batochio — Quando segmentos do aparato judiciário se deixam empolgar pelo discurso da punição a qualquer custo com vistas a se alcançar determinado fim, a defesa do cidadão, e com ela a advocacia, é a primeira vítima. Na "lava jato", em que teria restado comprovada a colusão entre julgadores, investigadores e acusadores, até mesmo a intocável regra, dogmática, do processo penal, de que a defesa sempre fala e produz provas por último, chegou a ser solenemente ultrajada. Mais que uma deformidade de rito, a inversão estava a sinalizar quem tinha a última palavra. Abusou-se do instituto da condução coercitiva antes de intimação para depor, como se fez com um ex-presidente da República. Tentou-se intimidar advogados nas audiências e fora delas. Constrangeram-se testemunhas e se negociaram delações "à la carte" para incriminar uns e isentar outros (afinal, "não se melindra alguém cujo apoio é importante", não é mesmo? [risos…].

Embaralharam-se provas e falsearam-se depoimentos. No Rio de Janeiro, um juiz-estrela, que mais gostava de exibir os bíceps nas redes sociais do que a razão do justo nas suas decisões, mesclou réus e advogados como se fossem vinho da mesma pipa. Em boa hora, ele está a ser contido em seus despautérios por magistrados democratas e legalistas que jurisdicionam no Supremo Tribunal Federal e que estão a salvar nossa democracia, a reafirmar a civilização.    

ConJur — A espetacularização do processo penal como ocorreu em grande escala no Brasil dos últimos anos colabora com o desgaste da imagem da advocacia? Como lidar com a falsa ideia de que o advogado deve ter sua atuação confundida com os crimes imputados a seus clientes?
Batochio — Há tempos policiais e outros agentes da persecução penal vêm exercendo uma função adicional nas investigações, a de cinegrafista. Um ex-presidente da República foi preso na via pública e em minutos o vídeo estava nas redes sociais, expondo-o à execração pública. Muitas pessoas foram investigadas e até processadas sem o elementar direito de ao menos saber do que eram acusadas, pois até ao advogado negou-se a informação acerca do suposto delito, prática que não se admite mesmo nos feitos que tramitam sob segredo de justiça — para o público, bem entendido. Tais casos amalgamam essa inqualificável tirania da deliberada confusão entre advogado e cliente. Insuperável paladino do direito de defesa no Brasil, o grande Ruy Barbosa, na obra-referência "O dever do advogado", deixou assentado que "a defesa não quer o panegírico da culpa ou do culpado". "Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente, ou criminoso, a voz dos seus direitos legais."

A questão atualizada é que precisamente esses "direitos legais" do cidadão, a quem a Constituição assegura a presunção de inocência, são espezinhados e pisoteados a mancheias, e, ao lutar por eles, o advogado é tratado como um estorvo, inconveniente obstáculo a ser removido da trajetória meramente formal de sentenças antecipadamente lavradas. Tanto mais visado será profissional quanto mais combativo for.   

ConJur — Não apenas o Supremo, mas o Poder Judiciário como um todo tem ganhado protagonismo no debate político. Recentemente um juiz deu provimento a uma demanda que pedia que se vetasse a nomeação do senador Renan Calheiros para relatoria da CPI da Covid. Como o senhor enxerga esse fenômeno ativista?
Batochio — O Judiciário, a despeito de sua precípua missão constitucional de administrar a justiça ao compor conflito de interesses segundo as normas que expressam a vontade geral da nação, tem ido além das sandálias em muitas ocasiões, adentrando, sem cerimônia, as competências reservadas aos demais poderes, de sorte a alcançar-lhes a independência e a autonomia. Registre-se, como exemplo, a prisão processual de membros do Parlamento fora da situação de flagrante delito por prática de crime inafiançável, a despeito do que dispõe o artigo 53 da Lei Máxima, a formulação de políticas públicas para compulsória execução pelo Executivo, a interpretação superlativamente elástica de leis em amplitude tal que usurpa a função do Legislativo. Também o Executivo abusa e dilata o perímetro e o alcance dos decretos e das medidas provisórias e se põe a legislar. Curioso, no ponto, é que o Congresso quase nunca cogita manejar o decreto legislativo para defender suas reservadas atribuições de atos invasivos de outro Poder, conforme autorizado no artigo 49, V, da Constituição.

Injusto seria não se pôr em destaque, no entanto, que membros do Congresso também dão causa à essa anomalia ou disfunção. Recorrem demais ao Judiciário, vivem a atravessar a Praça dos Três Poderes… Em vez de travar as batalhas congressuais que lhes são inerentes, resolvendo as divergências no voto ou negociação, apelam para a judicialização da sua derrota política. Sempre que surge a oportunidade, vem a lembrança do desabafo do ex-ministro do Supremo Francisco Rezek: "Só falta o sujeito atravessar a praça para reclamar que lhe negaram um aparte".

ConJur — Qual a sua opinião sobre o inquérito das fake news (Inq 4.781)? Que legado o senhor espera dessas investigações?
Batochio — Não fosse o Supremo o que "erra por último", na frase que segue à procura de um autor, concedidas todas as vênias e sem qualquer quebra de respeito a quem quer que seja, esse inquérito se mostra de legitimidade discutível e, por isso, se tornou objeto de controvérsia. É que foi instaurado de ofício e contrariando opinião expressa do titular exclusivo da ação penal pública, a quem se destina o resultado das apurações, que é o Ministério Público. Malgrado o sistema acusatório entre nós instituído com a Constituição de 1988, parece que estamos diante de uma manifestação de resiliência do sistema inquisitorial. Embora o disposto no artigo 43 do referido Regimento Interno pudesse amparar em tese a sua instauração (desconsiderada aqui a discussão sobre a integral recepção ou não do dispositivo pela Lei Maior), pode-se dizer que melhor teria sido, na hipótese, fosse requisitada à polícia judiciária a aludida apuração, nos termos do disposto na parte final do parágrafo primeiro dessa norma regimental.

Sob o ângulo utilitário, cabe indagar: de que servirá o inquérito se o MP não oferecer denúncia por insistir em que não se acha formada a opinio delicti?  Há, igualmente, a questão de sua condução; complexo se antolha assimilar que o julgador, ao mesmo tempo em que é vítima, também possa investigar e julgar a lide (judex in causa sua). Mais adequado mesmo parece, repita-se, que se tivesse requisitado essa apuração à Polícia Federal, a quem está distribuída tal competência segundo o artigo 144 da Constituição, sem prejuízo, é claro, do controle de legalidade dos seus atos. De outra mão, todavia, não há dúvida de que decididamente atos que atentem contra o Estado Democrático de Direito exigem resposta pronta e efetiva em nome da preservação da autonomia, independência e funcionalidade das democráticas instituições da República.

ConJur — Recentemente tivemos alguns casos de escritores e jornalistas vítimas de assédio judicial. Seja por meio de processos em massa nos juizados especiais ou pelo uso desmedido da LSN. Como evitar que a Justiça seja usada como instrumento de perseguição? 
Batochio — O assédio à imprensa agiganta-se em rigor contra a inteligência, a cultura, a liberdade de informação e de pensamento em todo o mundo. Entre nós, o carcomido entulho normativo da ditadura militar chamado Lei de Segurança Nacional tem sido largamente utilizado pelo governo, o Ministério Público e até invocado pelo "guarda da esquina" de que falou o vice-presidente Pedro Aleixo quando da promulgação do sempre lamentável AI-5. Já temos até casos de policiais militares a prender quem afixa no seu veículo um adesivo contra o presidente. A mais recente e sinistra fórmula em maquinação é a proposta de que supostos crimes de civis contra militares sejam julgados na justiça castrense. Querem reinstituir as áulicas auditorias de guerra da ditadura.

Os tribunais militares devem se circunscrever aos temas e conflitos internos específicos das corporações, mas, pelo visto, uma charge humorística glosando um general-ministro-garoto-propaganda da cloroquina seria julgada por juízes de cortes militares, e, quem sabe, o processo considerado ultrassecreto guardado em um blindado de grande porte por cem anos.

ConJur — O senhor foi deputado federal. Como enxerga o atual parlamento? A sociedade brasileira está bem servida de legisladores?
Batochio — O Legislativo é o poder popular e representativo por excelência, pois é eleito pelo povo para representá-lo, em seu nome elaborar as leis e fiscalizar e controlar outros poderes. Daí constituir truísmo afirmar que o pior parlamento é melhor que nenhum. Inegável, no entanto, que a atual legislatura se destaca pela deficiência de grandes líderes, tão frequentes e cintilantes no passado, e pela predominância de congressistas mais próximos de corporações, credos, interesses setoriais e quejandos, do que inspirados pela chama do espírito público, inteiramente comprometidos com a agenda nacional mais ampla além das ninharias paroquiais e manobras de interesses locais.

Especialmente as bancadas da chamada direita se apequenam diante daquelas que um dia até sustentaram o regime militar, apoiado por figuras da densidade de Aliomar Baleeiro, Célio Borja, Djalma Marinho, Teotônio Vilela. Alguns tão lúcidos eram que até mudaram de posição, deslocando-se ao espectro mais progressista.

Há pouco tivemos como presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara, função já exercida por homens da estatura de Franco Montoro, um escriba policial cuja grande experiência internacional e diplomática era, segundo ele mesmo declarou, ter fritado muito hambúrguer nos Estados Unidos. Será que dignitários desse jaez supõem que "multilateralismo" possa ser um time de futebol a jogar com três laterais? [risos]

ConJur — Ainda na seara política. Como o senhor enxerga o lobby de entidades de classe de carreiras ligadas ao Judiciário e ao MP no Congresso?
Batochio — O lobby é legítimo na democracia, desde que se circunscreva ao papel de esclarecer, fornecer subsídios, inteirar as instâncias decisórias das nuanças de um assunto que se encontra em pauta. O que não pode, no entanto, é transmutar-se em influência coativa, exercida à sorrelfa, no lugar dos vestíbulos que originaram a palavra, por autoridades que também exercem funções no aparelho de Estado.

Certas entidades de classe agem como partidos políticos, atuando não pelos reais interesses da coletividade, mas apenas buscam vantagens e benefícios, quando não privilégios, para a guilda. Vez ou outra, os tribunais superiores barram essa ofensiva corporativa, como acaba de fazer o Supremo ao negar provimento a uma demanda de associação de procuradores que pleiteava o direito de advogar.

ConJur — Como ex-presidente do Conselho Federal da OAB, como enxerga a aprovação das cotas raciais e da paridade de gênero no processo eleitoral da entidade?
Batochio — Quando esse tema ainda não se achava formalmente normatizado, a Seção de São Paulo da OAB inaugurou, pioneira e espontaneamente, a adoção das cotas, assegurando às advogadas 30% dos cargos nas chapas que concorriam ao Conselho e à diretoria. Ao regulamentar recentemente a paridade, o Conselho Federal da OAB ampliou a participação para 50% e, em acréscimo, reservou uma parcela mínima de 30% dos quadros diretivos para negros. A paridade de gêneros consubstancia uma exigência democrática e se mostra até mesmo uma imposição estatística: hoje as mulheres são maioria na Advocacia, mas não só vivem a sub-representação como se acham alijadas dos cargos de comando. Injustificável. Quanto aos negros e pardos, elementos definidores da nossa etnia, bastaria lembrar, para nunca se esquecer, que o Brasil se localiza na América, mas tem a matriz de sua alma na África.

ConJur — O senhor é favorável a eleições diretas para a OAB Nacional? E eleições online?
Batochio — A eleição direta do Conselho Federal da OAB tornou-se reivindicação da ampla maioria dos advogados, segundo pesquisa do Ibope de 2018. O pleito indireto, no qual apenas 81 conselheiros federais eleitos nos estados e Distrito Federal votam em nome de aproximadamente 1,2 milhão inscritos nos quadros da entidade, foi legítimo como mecanismo de preservação do equilíbrio no modelo federativo, mas já cumpriu uma etapa histórica a ser superada. Processo decisório mais alinhado à atualidade, quando viceja no mundo uma desconfiança da democracia representativa, o modelo um advogado, um voto, parece irreversível, a depender apenas de um projeto de lei em discussão no Congresso.

A informatização permite a votação à distância, processo complexo, mas factível, que exige cadastramento por aplicativo de cada um dos eleitores. No dia do pleito, todos recebem um "link" para clicar seu voto. Na era da urna eletrônica, do algoritmo digital e em tempos de pandemia, a tecnologia amplia e alonga o alcance da democracia e reforça a espirituosa reflexão de Churchill de que ela ainda é o pior dos regimes, com exceção dos demais. E, para terminar esta agradável conversa, considerando que temos ouvido dos atuais governantes muitas palavras de ordem, seja-me também permitido um pensamento que guarda a pretensão de merecer alguma consideração de parte dos que dele tiverem ciência. "Liberdade, sim, acima de tudo e Democracia, sempre, acima de todos".

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