Embargos Culturais

Notas de rodapé de Teixeira de Freitas explicam nossa trajetória social

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

16 de agosto de 2015, 8h00

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Sustento que Augusto Teixeira de Freitas (1818-1886) deixou-nos também exaustivo estudo de direito privado, que compõem as notas de rodapé de sua Consolidação das Leis Civis. São informações adicionais, recensões e referências de legislação e de doutrina aos 5 mil artigos de seu projeto. A leitura dessas notas, que formam boa parte da obra, ainda que dissociadas da leitura do texto principal, revelam que o jurista baiano empreendeu pesquisa monumental, o que também certamente colaborou para o esgotamento de sua saúde. Essas notas de rodapé, devidamente exploradas, explicam o Brasil do século XIX. Exemplifico.

No presente ensaio, como esforço de um registro histórico, sublinho as notas de rodapé lançadas aos primeiros artigos do projeto da Consolidação, relativos ao conceito de pessoa, o que nos demonstra relações burocráticas entre Igreja e Estado, exatamente quanto a funções de identificação de nascimento e de óbitos, bem como aspectos de relações escravocratas[1].

Nesse último caso, temos assunto difícil, mas que não pode ser simplesmente esquecido ou relativizado. Muito de nossas relações sociais injustas é explicado por uma odiosa história, cheia de crueldade, que desmente a falácia buarquiana da cordialidade nacional. Difícil a compreensão de afetividade onde imperava uma relação monstruosa de trabalho. Tenho dificuldade em compreender a passagem de Joaquim Nabuco, citada por Luis Vianna Filho, na qual o político e diplomata pernambucano teria afirmado que na lembrança da infância, “(…) está ligada essa ideia de uma escravidão suave e doce…”[2]. Não me parece essa a realidade descortinada pelo estudo da legislação e da jurisprudência que informavam essa delicada questão[3].

No texto central Freitas indicava que as pessoas seriam consideradas como nascidas, apenas formadas no ventre materno; porém, a lei lhes conservaria os direitos de sucessão, para o tempo do nascimento. Nas notas de rodapé recorria à solução das Ordenações, bem como à doutrina de Demolombe (1804-1887), o exegeta do código civil de Napoleão[4].

O civilista brasileiro tratou da alforria, que poderia a ser concedida a escravo, que ainda existisse no ventre materno, e que, enfatizou, se a mãe desse a luz dois ou mais filhos, a liberdade seria reputada a todos[5]. Trata-se de passagem muito embaraçosa de nosso direito, e que revela uma sociedade desumana, escravocrata, para a qual a dignidade da pessoa humana era privilégio de pouca gente.

Há necessidade de uma história do direito que resgate toda essa legislação e doutrina odiosas, como exemplo de um passado bárbaro, que não pode ser dulcificado em nome da construção de uma imaginária sociedade benévola. A história do direito não é apenas uma história da liberdade, otimista e empreendedora, é também a história da não-liberdade, pessimista e mutiladora.

Teixeira de Freitas, por exemplo, mencionou que os párocos deveriam manter livro especial para o registro dos nascimentos e óbitos de filhos de escravos, nos termos da Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871[6], a Lei do Ventre Livre, obra do gabinete conservador de Nabuco de Araújo[7]. Este último foi exaltado pelo filho, Joaquim Nabuco, ao limite, em obra importante para o conhecimento de nossa vida política na segunda metade do século XIX.

Segundo nota de rodapé de Teixeira de Freitas, o nascimento seria comprovado com a certidão de batismo, a morte com a certidão de óbito, ambas extraídas dos Livros Eclesiásticos[8], o que revelava o modelo de padroado, com o qual convivemos ao longo da vigência da Constituição Imperial de 1824. Em outra nota de rodapé, Freitas registrou que o nascimento e o óbito de pessoas não católicas seriam provados por certidões extraídas dos livros dos escrivães dos juízos de paz[9].

Freitas reconhecia que a identidade dos nomes poderia resultar na premissa de que as certidões de batismo não fariam prova absoluta; por isso, anotou que a identidade das pessoas somente poderia ser provada por testemunhas; nesse sentido, invocava uma lei de 22 de dezembro de 1761[10]. Pelos batismos era defeso aos padres cobrarem quaisquer emolumentos, pelo que seriam incriminados por simonia, de acordo com uma resolução de 18 de março de 1812, citada em nota de rodapé por Teixeira de Freitas[11]; podiam, no entanto, aceitar doações voluntárias dos fieis, para tais fins.

Justificações de idade deveriam ser produzidas também perante o Juízo Eclesiástico, o qual detinha competência exclusiva para tal, nos termos de um Aviso de 5 de janeiro de 1865 e de outro de 15 de julho de 1874, de acordo com as precisas informações de Teixeira de Freitas[12]. Na hipótese de perda ou desaparecimento dos assentos de batismo as partes interessadas deveriam requerer e processar as devidas justificações junto à Câmara Episcopal; produzida a prova, novos assentos seriam lançados, dos quais as respectivas certidões seriam trasladadas. Verifica-se, assim, que a Igreja Católica exercia intensa atividade cartorária. A manutenção dessa documentação é fonte abundante para a pesquisa de situações e configurações pretéritas, revelando, no limite, confusão entre burocracia do Estado e da Igreja.

Argumento, assim, que a leitura das notas de rodapé de um autor como Teixeira de Freitas descortina e revela arranjos institucionais que emblematicamente explicam nossa trajetória social.


[1] FREITAS, Antonio Augusto Teixeira de, Consolidação das Leis Civis, Rio de Janeiro: Garnier, 1896.
[2] VIANA FILHO, Luís, A Vida de Joaquim Nabuco, Brasília: INL, 1973 p. 16.
[3] Recomendo, nesse tema, ROSEMBERG, André, Ordem e Burla- Processos sociais, escravidão e justiça em Santos, São Paulo: Alameda, 2006.
[4] Cf. FREITAS, Antonio Augusto Teixeira de, cit., p. 1.
[5] Cf. FREITAS, Antonio Augusto Teixeira de, cit., p. 2.
[6] Art. 8º. O governo mandará proceder à matrícula especial de todos os escravos existentes no Império, com declaração de nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se for conhecida. §1. O prazo em que deve começar e encerrar-se a matrícula será convencionado com a maior antecedência possível por meio de editais repetidos, nos quais será inserida a disposição do parágrafo seguinte. §2. Os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados, não forem dados a matrícula, até um ano depois do encerramento desta, serão por este fato considerados libertos. §3. Pela matrícula de cada escravo pagará o senhor por uma vez somente o emolumento de quinhentos réis, se o fizer dentro do prazo marcado, e de mil réis, se exceder o dito prazo. O provento deste emolumento será destinado a despesas da matrícula, e o excedente ao fundo de emergência. §4. Serão também matriculados em livro distinto os filhos da mulher escrava que por esta lei ficam livres. Incorrerão os senhores omissos, por negligência, na multa de cem mil réis a duzentos mil réis, repetidas tantas vezes quantos forem os indivíduos omitidos e, por fraude, nas penas do artigo 179 do Código Criminal. §5. Os párocos serão obrigados a ter livros especiais para o registro dos nascimentos e óbitos dos filhos de escravas nascidos desde a data desta lei. Cada omissão sujeitará os párocos a multa de cem mil réis.
[7] Nesse tópico, NABUCO, Joaquim, Um Estadista do Império, Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, especialmente, volume 2, capítulos 6 e 7.
[8] Cf. FREITAS, Antonio Augusto Teixeira de, cit., loc. cit.
[9] Cf. FREITAS, Antonio Augusto Teixeira de, cit., p. 3.
[10] Cf. FREITAS, Antonio Augusto Teixeira de, cit., loc. cit.
[11] Cf. FREITAS, Antonio Augusto Teixeira de, cit., p. 4.
[12] Cf. FREITAS, Antonio Augusto Teixeira de, cit., p. 7.

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