Senso Incomum

Um milhão de advogados + dezenas de carreiras jurídicas. E fracassamos!

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13 de agosto de 2015, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Poderia falar, hoje, da PEC 443 e algumas de suas justificativas (como a de que Advocacia-Geral da União deveria ganhar a tal equiparação porque arrecada e dá lucro ao Estado; genial esse argumento neo-econômico, não? Com esse raciocínio genial, o cobrador do ônibus deveria receber mais do que o motorista e assim por diante) ou do conflito de uma presidente autista com um presidente da Câmara que se comporta como Unabomber, provocando uma crise sem precedentes (além de acabar com Pindorama, vai acabar com o Exame de Ordem; aliás, ele não se contentará se não ajudar a quebrar o que resta deste pobre país que parece não querer sair do terceiro mundo). Não é engraçado? Unabomber é o bad cop; Calheiros é o good cop.

Esquecem os protagonistas e todos aqueles que acham que podem tirar vantagem da crise, de uma coisa: no caos, não há direito a nada. Não adianta tetos, subtetos, garantias, prerrogativas, autonomias orçamentárias… Quem tem dúvida, consulte o que aconteceu na Itália recentemente. Retira-se o direito… e o Tribunal Constitucional simplesmente dirá: com base no Principio da Crise… Perguntem qual foi a resposta do Tribunal Constitucional português às retiradas de direitos… E, bingo. Vai este alerta à comunidade jurídica. No caos, o direito é o “do caos”. No caos, tudo é e nada é.

De todo modo, penso que a PEC 443 tem algo a ver com a coluna de hoje. Indiretamente. Mas, tem. Explico. Em um país com tantos contrastes e com um grau de violação de direitos fundamentais incomensurável, com todas carreiras jurídicas e com tetos e subtetos, auxílios disso e daquilo, não conseguimos até hoje sequer construir uma estrada que leve um direito à liberdade de qualquer comarca até os tribunais superiores (STJ e STF) ou, melhor dizendo, um caminho para possibilitar que alguém preso equivocadamente possa responder um processo em liberdade ou tenha a sua ação penal trancada por falta de justa causa.

Vou dar um exemplo para explicar isso. É uma metáfora. Imaginemos um cidadão preso cautelarmente na Comarca de Itaqui (em tupi-guarany, Cidade das Pedras, minha primeira Comarca que aqui homenageio). O delegado e/ou o promotor invocam com um patuleu qualquer e o juiz decreta a preventiva. Suponhamos que não haja provas ou que a prova tenha sido construída de forma ilícita (cabível a tese dos frutos da árvore envenenada). O advogado tenta a liberdade junto ao juiz. Não consegue. Nega, dizendo “Há clamor social” ou usa outro argumento como “a gravidade do crime” (que o STF já disse não ser suficiente para a custódia), etc. Ou até argumentos como “o paciente não logrou demonstrar que não esteve no local do crime…”, invertendo (ups!) o ônus da prova. O causídico impetra, então, um HC junto ao Tribunal de Justiça. Pede liminar. Leva 10 a 15 dias para ser apreciada e é negada (claro que às vezes é mais rápido). Vai a plenário. Faz sustentação oral e ninguém dá bola. Os desembargadores ficam revisando o Facebook. Perde por três a zero.

O que faz o causídico? Único caminho é um Recurso Ordinário. Ocorre que não há efeito suspensivo e nem cautelar em sede de RO. Como esse RO levará mais de 30 dias só para sair do TJ para o STJ, só resta um caminho, que é tentar um HC junto ao STJ. Terá de juntar o protocolo e cópia do RO e pedirá uma liminar (dia desses explicava isso a um advogado do interior de MG que tinha um problema desses). Afinal, seu cliente está na cadeia em Itaqui. E o tempo vai passando. O relator no STJ leva duas semanas para decidir. O causídico, sem dinheiro — seu cliente no máximo pagou para a viagem até Porto Alegre — não poderá ir ao STJ explicar o caso ao ministro relator. Embora bem atendido, provavelmente sua Excelência lhe dirá que a instrução está em andamento ou que não é possível conhecer do HC porque pende de tramitação do RO. O advogado alega de tudo para superar o não conhecimento, como “que há um direito fundamental em jogo”, “prova ilícita” e assim por diante. Cita autores de processo, etc. Mostra, por exemplo, que a ação penal nem deveria existir. E o relator poderá dizer: “— Doutor, isso é mérito. Discutir prova ilícita não é possível em sede de HC” ou “pelo princípio da confiança no juiz da causa”….Ou “a instrução está em andamento e corre normalmente…”.

O causídico, então, tem três caminhos: espera pelo julgamento do RO, que provavelmente será julgado quando seu cliente estiver cumprindo pena e já tiver progredido de regime; segundo, esperar o julgamento do HC em plenário, que provavelmente não conhecerá do writ exatamente porque há RO a caminho (ou outro argumento). O terceiro caminho é rumar ao Supremo Tribunal Federal e buscar superar a famosa Súmula 691, pela qual o STF não pode conhecer de HC impetrado contra decisão do relator do STJ que indefere liminar. Um parêntesis: É tão boa essa Súmula que nem o Supremo acredita nela… porque, se acreditasse mesmo, já a teria transformado em vinculante, não acham? Como não é uma SV, não daria para inquiná-la de inconstitucional?

Mas, sigamos com o périplo do causídico itaquiense na república dos bacharéis, dos milhares de livros de direito, da centena de cursos de pós-graduação e do neo-jurisprudencialismo que já tomou conta do direito. Sabe ele que o STF só supera a Súmula em três hipóteses: flagrante ilegalidade, abuso de poder ou teratologia. Em última análise, eis o dilema hamletiano: existe hipótese de HC que já não seja de flagrante ilegalidade ou abuso de poder? Já com relação à terceira hipótese, o que seria isto — a teratologia? Difícil.

Mas, sigamos. Vejam o imbróglio e o fracasso do processo penal e do direito em geral em Pindorama: para o paciente “ganhar” o HC, terá de torcer para que o STF não conheça do writ, mas, de forma discricionária, conceda-lhe de oficio, algo como a concessão de uma graça pelo Lord Chanceler no tempo da criação da equity inglesa.

Traduzindo isso: nosso sistema criou uma metateratologia, isto é, uma teratologia de segundo nível, representada pelo fato de que, para que um direito violado possa ser reconhecido, deve a Suprema Corte não conhecer o remédio heroico para poder dizer que houve ilegalidade, abuso de poder ou teratologia. Entenderam? Não? Tento de novo: O HC é para corrigir tudo isso, só que, para corrigir, deve-se não… conhecê-lo. Aquilo que você pede no STJ (conhecimento), agora é condição para ter uma chance (não-conhecimento). Acham que não é assim? Leiam o HC 122.670, do STF.

O que quero mostrar com isso? Quero denunciar que, passados tantos anos, com tanta gente tanta, mas tanta gente mesmo, atuando no direito, com tantas teses, dissertações e um direito processual cada vez mais jurisprudencializado, não conseguimos construir um remédio para restabelecer a liberdade de alguém que foi ilegalmente encarcerado nos confins de Pindorama.

Portanto, demonstro, aqui, o paradoxo da barreira que se criou para não se apreciar as demandas pelos direitos, alguns absolutamente prioritários como a liberdade. Há muitos processos? Sim. A solução, então, é cortar o HC, fazendo uma espécie de “ajuste-epistemológico-fiscal das liberdades”? Ora, se há processos em demasia, especialmente HC’s em excesso, não seria porque há abusos em excesso? Fosse diferente e não haveria tantas concessões de liberdade, mesmo com a Súmula 691, pois não? No mais, se há cidadão pedindo a proteção da Justiça, ela deveria estar lá de prontidão. Não está? Então devem perguntar se não falta gente. Se há trabalho para dez vezes mais ministros no STJ (quem sabe com turmas só para HCs?), então deveríamos logo aumentar o número de Ministros, como já explicitei em Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, no ano de 2002. E o mesmo se diga sobre o STF. Claro: mais ministros, mais diluição do poder… E não sei se o establishment gosta disso.

O fantasma da modernidade: o discricionarismo
Eis o busílis: afora tudo isso, uma coisa é dramática. Explico: em todas as instâncias os causídicos sempre pagarão pedágio para esse fantasma da modernidade: o poder discricionário, espécie do gênero “livre apreciação-livre convencimento”. Isto é: mesmo que construamos um caminho objetivo da Cidade das Pedras até Brasília na busca da liberdade de um patuleu, ainda assim teremos que parar nos-postos-de-pedágio-do-subjetivismo dos julgadores. Aliás, está no CPP: o poder de livre apreciação (contra o qual a dogmática jurídica nunca se insurgiu e hoje sente o calo apertar). De que modo se pode exigir, objetivamente, o cumprimento de um direito fundamental à liberdade?

E para quem pensa que o processo civil é diferente, ingresse com uma ação em alguma vara cível. Nem preciso falar disso, certo? Afinal, o que fizemos com o direito brasileiro? Eis a pergunta sem resposta. Mas a cada dia mais e mais gente quer fazer concurso. Na machadiana Sereníssima República dos Bacharéis.

Mas, e então? Escrevemos milhares de livros, fazemos milhares de congressos e não conseguimos construir um caminho para o pobre acusado de Itaqui levar seu pleito à instância que lhe dê a liberdade sem depender de… um juízo discricionário. Sim. Semana passada o STJ invocou o livre convencimento para justificar um julgamento antecipado sem exame da prova. E, o pior de tudo: os professores ensinam isso nas Faculdades. E a doutrina — que já não doutrina, porque prefere fazer glosa de repertórios jurisprudenciais — repete ad nauseam justamente aquilo que “ferra” os causídicos na atualidade.

O erro histórico da dogmática
Ora, a dogmática jurídica sempre apostou no protagonismo judicial. Porque lhe era conveniente. E nunca se insurgiu contra a livre apreciação da prova ou o livre convencimento. É só folhear as centenas de livros de processo produzidos nas últimas décadas. Pois é. O poder de livre convencimento é uma espécie de “peemedebismo do direito”, expressão de um candente conservadorismo, porque é o modo pelo qual a convicção pessoal (portanto, um juízo de classe) do juiz se expressa nas decisões. Parafraseando Marcos Nobre, esse “peemedebismo epistêmico” — o discricionarismo — é um paquiderme ideologicamente indefinido. Pode ser qualquer coisa. Apenas é. Está aí. Eduardo Cunha, aliás, está usando de seu poder discricionário. O nosso Unabomber. Mas, enfim, em Pindorama sempre foi assim, não é?

And I rest my case!

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