Opinião

Qual o papel do compliance na responsabilização objetiva das empresas?

Autores

  • Flávio Henrique Unes Pereira

    é doutor e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Minas Gerais diretor titular do Departamento Jurídico da Fiesp presidente do Instituto de Direito Administrativo do Distrito Federal professor do mestrado profissional do IDP (São Paulo) e sócio do Silveira e Unes Advogados.

  • Márcio de Aguiar Ribeiro

    é especialista em Direito Administrativo. Professor de Direito Administrativo Sancionador (Esaf). Auditor Federal da Controladoria-Geral da União exercendo suas atividades funcionais na Coordenação-Geral de Responsabilização de Entes Privados.

12 de agosto de 2015, 9h06

O recente advento da Lei Anticorrupção, Lei 12.846/2013, descortinou verdadeira revolução em termos de responsabilização administrativa de pessoas jurídicas. No cerne das transformações, merecem registro: a responsabilidade objetiva de pessoa jurídica; a responsabilidade solidária no âmago de grupos societários e a responsabilização de entes jurídicos no curso de operações societárias sucessórias (sucessorliability).

Sem sombra de dúvida, a possibilidade de impor responsabilidade objetiva às pessoas jurídicas representa o aspecto mais inovador e polêmico do novo diploma normativo, havendo quem sustente a sua inconstitucionalidade. O Direito Administrativo Sancionador tradicionalmente esteve vinculado ao princípio da culpabilidade, de forma que caberia à Administração, como pressuposto jurídico da imposição de sanção administrativa, a demonstração inequívoca dos elementos subjetivos da conduta, ou seja, dolo ou culpa. É bem verdade que a comprovação do referido pressuposto desde há muito vinha sendo flexibilizado quando em pauta o sancionamento administrativo de pessoas jurídicas, apontando a doutrina que a culpabilidade nesses casos estaria vinculada à evitabilidade do fato e aos deveres de cuidado objetivo.

Não se pode ignorar que as mais atuais leis promulgadas no âmbito do direito comparado já preceituam a responsabilização objetiva de pessoas jurídicas por atos de corrupção. A título de exemplo, a recente legislação do Reino Unido, BriberyAct 2010, que consagra a aplicação do instituto da failureof comercial organizationstopreventbribery (falha em prevenir o suborno), dispensando a necessidade de se avaliar necessariamente os aspectos subjetivos da conduta para fins de responsabilização de pessoas jurídicas. Cabe, pois, aos operadores do direito exame crítico sobre essa nova realidade proposta pela Lei 12.846/13, sem, contudo, perder de vista a nova perspectiva normativa. Novos tempos demandam novos horizontes de entendimentos.

Por outro lado, cumpre anotar que o mecanismo de responsabilidade objetiva traçada no bojo da Lei Anticorrupção possui contornos próprios e que também não devem ser confundidos com os pressupostos clássicos e tradicionais da responsabilidade objetiva definidos no direito civilista, principalmente no quesito da indispensabilidade da demonstração do dano, pois, para certos ilícitos administrativos, o resultado lesivo dispensa o dano ou prejuízo ao erário.

Nos termos da legislação brasileira, para fins de imputação de responsabilidade objetiva a pessoas jurídicas, caberá à Administração Pública demonstrar, por meio do devido processo, a prática de qualquer das infrações elencadas no artigo 5º da Lei Anticorrupção e o nexo de causalidade entre o ilícito e a atuação direta ou indireta da pessoa jurídica. O nexo causal, na hipótese, consistirá na demonstração de que o ato lesivo fora praticado no interesse ou benefício, ainda que indireto, da pessoa jurídica processada. A verificação do binômio responsabilidade X proveito (interesse ou benefício) é justamente o liame causal que conecta a prática da infração administrativa à atuação corporativa de uma determinada pessoa jurídica.

Aqui cabe sucinta observação. Ganha relevo o fato de que o legislador impôs maior comprometimento e participação dos entes privados no combate à corrupção, ponderando que sendo o ato de corrupção um ato complexo a envolver, em regra, a atuação de agente público corrompido e, na outra ponta, agente privado corruptor, legítimo seria determinar mais proatividade e protagonismo aos entes privados. Por isso, um sistema mais rígido de responsabilização jurídica deve ser acompanhado da consideração acerca de mecanismos de incentivo e valorização aos programas de governança e integridade corporativa.

Não é de se estranhar, nesse sentido, que a Lei 12.846/2013 tenha previsto como aspecto de necessária consideração, quando da aplicação das penalidades, “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” (artigo 7º, inciso VIII).

É justamente nesse ponto que se pretende compartilhar questão ainda indefinida: quais os efeitos jurídicos que podem decorrer da efetiva implementação de programas de integridade corporativa (compliance anticorrupção) para fins de responsabilização administrativa de pessoas jurídicas? Dito de forma mais direta: poderia a concreta estruturação de um rigoroso programa de integridade corporativa ser admitida não apenas como um fator relevante de atenuação da pena pecuniária administrativa, mas como hipótese de excludente do nexo de causalidade entre o ato lesivo e a atuação institucional da pessoa jurídica processada?

A lei em análise e o seu respectivo regulamento, o Decreto Federal 8.420/15, numa rápida leitura, somente autorizariam a avaliação do programa de integridade para fins de atenuação da penalidade de multa sobre o faturamento bruto da empresa. Aqui, aproxima-se da legislação norte-americana, ForeignCorruptPraticesAct (FCPA), que não admite a isenção total de responsabilidade, afastando-se, na mesma medida, da lei anticorrupção inglesa, UK BriberyAct 2010, que elenca a robustez de um programa de compliance como espécie de defesa absoluta, capaz de isentar a responsabilidade da pessoa jurídica.

À luz do arcabouço normativo brasileiro, assenta-se como regra geral que a efetiva estruturação e a aplicação de programa de integridade no círculo de desenvolvimento das atividades econômicas e sociais do ente jurídico apresentam-se como relevante fator de atenuação da sanção administrativa pecuniária.

Entretanto, o raciocínio não pode ser reduzido a conclusão absoluta e imune à maior reflexão, ponderação e exame de todas as circunstâncias e peculiaridades afetas ao caso concreto e, especialmente, à finalidade da norma.

Assim, forçoso reconhecer que, uma vez demonstrado pela pessoa jurídica processada a adoção de medidas rigorosas no sentido da mais ampla efetivação e aplicação de um programa de compliance, de modo a comprovar de forma cabal e indiscutível a existência de clara cultura de fidelidade ao Direito e à promoção de valores éticos, a isolada verificação de uma conduta passível de enquadramento administrativo no artigo 5º do diploma legal em exame nem sempre implicará responsabilização jurídica.

Na hipótese, a robustez e a efetividade do programa de integridade corporativa podem revelar-se como fator de exclusão do nexo de causalidade, a afastar o liame jurídico necessário para fins de responsabilização.

Vale mencionar, para fins ilustrativos, que, no rígido sistema norte-americano, já há precedente em que a responsabilização da pessoa jurídica restou afastada pelo fato do ato lesivo ter se mostrado diminuto quando em comparação com o vigoroso programa de compliance levado a efeito pelo ente jurídico, que inclusive foi responsável por identificar a irregularidade e reporta-la às autoridades competentes, demonstrando que a ilicitude consistiu em ato isolado de um preposto que não se compatibilizava com a cultura organizacional verdadeiramente existente.

Percebe-se, pois, a complexidade que o novel sistema de responsabilidade descortina no cenário brasileiro que, certamente, demandará o amadurecimento no enfrentamento da questão aqui versada. Novos tempos, novos horizontes, e que eles sejam compartilhados da forma mais intensa possível.

Autores

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    é sócio do Silveira e Unes Advogados, doutor em Direito Administrativo. coordenador e professor do curso de pós-graduação em Direito Administrativo do IDP. Presidente do Instituto de Direito Administrativo do DF. Ex-assessor de Ministros do STJ, TSE e STF.

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    é especialista em Direito Administrativo. Professor de Direito Administrativo Sancionador (Esaf). Auditor Federal da Controladoria-Geral da União, exercendo suas atividades funcionais na Coordenação-Geral de Responsabilização de Entes Privados.

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